quinta-feira, 20 de julho de 2017

A inconformidade com a finitude - nossa fragilidade



O poeta inspirado pela beleza da Natureza ou da mulher amada escreve um soneto apaixonado, sente a ventura da criatividade e desfruta a paz da harmonia interior, num momento privilegiado da existência. O mesmo poeta, num outro instante de lucidez existencial, descobre-se, sobrenadando o vazio do seu vir a ser quando não está amando nem criando. Certamente, a paixão episódica e o arroubo criativo isolado não se confundem com o amor sem fronteiras que integra o ser consciente no contexto do todo perfeito da unidade divina. E a experiência deste amor é fundamental para resgatar o homem de sua inconformidade com a própria finitude.
            A limitação temporal é sempre objeto de preocupação do homem; pois a consciência de a qualquer momento ser tragado pelo não ser é a expressão de uma realidade incontornável. O sofrimento moral correspondente é para muitos um incômodo que tolda a alegria de viver. Por isso a aceitação emocional deste desfecho será sempre um desafio para o ser consciente. O medo de morrer está na raiz do próprio instinto de conservação, manifestação normal em todo ser vivo, que se agrava dramaticamente no homem por sua capacidade de imaginar, com antecedência, o próprio fim. Teoricamente só o presente é real, mas, não raro nos surpreendemos ocupados com boas ou más lembranças do passado e preocupados com as incertezas que nos aguardam no futuro, realidades virtuais que deslocam a atenção sobre o presente real.
A inconformidade com a finitude é uma “loucura” peculiar da condição humana. Porque no homem a autoconsciência do ser biológico o expõe inevitavelmente à vivência de sua temporalidade constitutiva e, consequentemente, à previsão do envelhecimento e da própria morte.   Na dialética existencial vive-se morrendo, de tal modo que processualmente vida e morte estão sempre entrelaçadas, ou seja, é preciso morrer este minuto que passa agora, para poder vivê-lo. Todavia, sempre pensamos a morte em termos absolutos como o fim definitivo da vida. Daí a ansiedade da espera sem data prevista do desfecho fatal.
É insensato tentar escapar da provisoriedade da vida biológica e, no entanto, é notório o medo de morrer considerado por muitos estudiosos como o maior de todos os medos que afligem o homem. Por isso, na vida íntima de cada um, torna-se evidente a necessidade de encontrar uma forma de superar a angústia do ser humano de saber-se mortal. Analisando a questão em todos os seus aspectos, na tentativa de amenizar a angústia existencial a proposta mais razoável será contextualizar a existência numa dimensão mística, projetando-a para além do tempo.
O medo inerente ao sentimento de finitude é exacerbado pela saudade da vida, tão mais forte quanto maior o número de décadas vividas. É confortante para o homem, pois, a força aquietadora da esperança de transcender a vida biológica, vivência que encontra um amparo efetivo na crença em uma realização transtemporal da essência espiritual do eu histórico. Esta expectativa remete necessariamente a uma experiência mística contextualizada na fé em um absoluto transcendental que tudo envolve na sua perfeição. 
Assim, a existência[1] implica numa contradição vivida subjetivamente entre o desejo de viver e o medo de morrer. Oposição cuja única forma de contornar sem estresse é a doação pessoal do ser consciente a um absoluto transcendental que o inclua. O que corresponde a uma experiência mística embalada por fé ingênua (sem questionamentos). Embora possamos afirmar a existência de Deus mediante especulação filosófica a partir do conhecimento profundo do Universo e do processo evolutivo, a relação que podemos estabelecer com o Criador é puramente intuitiva e emocional. Dessa experiência a razão participa apenas remotamente; uma vez que o fundamento da fé unificadora da consciência com o mundo é essencialmente místico. Para que a fé produza seu efeito redentor não há que buscar razões para crer. Quem crê realmente em Deus afirma: creio porque creio, e me entrego cegamente à vontade absoluta do supremo Criador plenamente confiante no imenso amor que me faz existir como beneficiário de Sua infinita misericórdia. Daí ser fundamental uma crença ingênua para viver em plenitude a experiência mística, animado pela certeza de experimentar a eternidade na presença majestosa de Deus.
Racionalmente Deus não pode ser confundido com uma realidade objetiva, mas à luz de uma especulação metafísica O reconhecemos necessária[2] e misteriosamente presente no universo palpável e em nossa própria realidade pessoal na qual se dá a conhecer, obscuramente, pela manifestação das funções psíquicas superiores[3], só possível depois da supercomplexificação da matéria no Sistema Nervoso Central no homem.
            As pessoas sofrem mais ao confrontar seu limite temporal, quando são pessimistas, não aprenderam a amar, não praticam a generosidade, ou não se sentem amadas. É compreensível que, em luta contra seus medos e incertezas elas se perguntem: - Como reverter esta situação? A resposta é óbvia: Optando pelo otimismo na prática existencial; aprendendo a respeitar e cuidar do outro, dando assim um passo largo em direção ao amor; praticando a generosidade que começa quando fazemos empatia com o outro e descobrimos em nós mesmos as suas fraquezas, assumindo que somos capazes de amar ou, pelo menos, respeitar o outro. Evidentemente, todos esses movimentos interiores só produzem os efeitos esperados quando vividos emocionalmente e não apenas como uma formalidade.
O amor a uma causa ou a um ideal significativo é o grande antídoto para o medo da morte. E não há causa mais elevada do que a da autoafirmação de cada um de nós, como pessoa, sob a égide da verdade e da justiça, no esforço de buscar, constantemente, o bem honesto. Tarefa heroica que exige autoconhecimento, humildade, disciplina emocional, objetividade, e, tal é sua grandeza, que não dispensa a ajuda da misericórdia divina. Sem a contrapartida de uma personalidade criativa ancorada na perfeição absoluta de Deus, o golpe desfechado pelo sentimento de que tudo é provisório nesta vida tem um poder devastador. Ouso dizer que sem uma visão mística da própria existência, será impossível a realização cabal do ideal humano de serenidade, e se tornará muito deprimente o confronto de cada um com a condição de simples mortal. Fora de um contexto místico, a convivência com os nossos limites resultará sempre na vivência de um todo inacabado, geratriz de expectativa inquieta; e no nível puramente racional a vitória sobre o mal-estar induzido pelo sentimento da finitude será sempre uma “vitória de Pirro”, em que o vencedor amarga enormes perdas com o próprio sucesso.
            A autoafirmação pessoal começa com o reconhecimento de que somos perecíveis, mas temos uma missão a cumprir neste mundo; de que somos contraditórios, mas é-nos possível elaborar, com simplicidade, as antinomias da existência; finalmente, de que somos capazes de acolher com respeito o irmão, sem cultivar mágoas ou ressentimentos.
            Ao meditar sobre essas questões, advirto-me de que no desvario infantilmente crédulo da nossa perspectiva existencial, surpreendemo-nos buscando segurança em fantasias românticas, ancorados em arrimos discutíveis que desejáramos transformar em fortalezas inexpugnáveis. Esgotando nossa expectativa em metas temporais agiríamos como quem se imaginasse seguro porque dispõe de poupança expressiva. Na verdade esta pessoa não está a salvo de nada além da carência financeira imediata. Situação equivalente à do homem que cuida com esmero da alimentação sadia e do seu condicionamento físico para assegurar-se a salvo das doenças que acometem os glutões e os sedentários. A proteção conferida pelos cuidados preventivos realmente existe, mas é limitada, porque há fatores genéticos cujo determinismo o exercício físico e a dieta retardam, mas não anulam totalmente. Todos os cuidados são recomendáveis, mas na avaliação dos resultados não se pode confundir a menor probabilidade de ocorrência de um mal, com a segurança de estar definitivamente livre dele. É bom sentirmo-nos confiantes, com a reserva vital que nos garante um bom condicionamento físico. Porém, mais sábio do que fiar-se em defesas vulneráveis é vivenciar que a maior segurança consiste na aceitação da insegurança total, confiante, porém, no amparo de uma força superior, e num destino transtemporal. Isto equivale a investir num arrimo interior que excede nossa capacidade de entendimento, o sustento íntimo necessário para continuar de pé quando tudo ao redor está ruindo. E amparado neste arrimo interior, ao aceitar com serenidade a insegurança total nada mais sobra para ameaçar a integridade pessoal.
            A consciência reflexiva depende, operacionalmente, do mecanismo de controle automático biopsíquico desenvolvido no homem através da supercomplexificação da matéria na construção do Sistema Nervoso Central. Neste processo singular, na história da vida, há um pseudo-hiato entre a infraestrutura biológica e a superestrutura cultural do pensamento logicamente articulado, do sentimento disciplinado e da vontade determinante. Considerando o todo consciência mundo, esse hiato virtual representa a dobra[4] entre a bioquímica neuronal cerebral e o pensamento, entre o biológico e o espiritual, entre a ciência fenomênica imanente e a metafísica do ser que se transcende pela consciência. É neste pseudo hiato que se insere a experiência mística embasada na fé, desde a prática contemplativa ao êxtase vivenciado por São João da Cruz[5]. Este é o momento em que o espírito onipresente, mas imperceptível, se entremostra da maneira mais ostensiva. Exatamente por isso a complexidade humana não se exaure no fenômeno biopsicológico e exige o arremate místico para consumar-se. No pseudo-hiato entre o biológico e o espiritual se evidencia o Deus inconsciente de que fala Victor Frankel, onipresente, vivenciado no subjetivismo do ser consciente como um Alter Ego que, recursivamente, acaba espelhando o próprio ego individual. É aí que o Absoluto se revela à nossa contingência e conversa conosco na mais total intimidade, embora escutemos apenas a nossa própria voz e vejamos tão só a nós mesmos. É aí que se dá a conhecer o mistério tremendo da parceria entre a imanência e a transcendência, entre o homem e Deus.
            Se a solução do problema humano não é racional, filosófica, porém mística, a oração será o instrumento adequado para proteger o homem contra a devastação da angústia existencial e do medo da morte. Despindo-me do racionalismo frio, retomo a postura ingênua para evocar numa Oração (conversa com Deus) as condições para o momento existencial perfeito.
                                                           Oração

Deus, permite-me a graça de vivenciar a unidade consciência / mundo na intersecção das dimensões imanente e transcendente do meu eu mais profundo. Que sob o mistério da reciprocidade na relação criatura / Criador, encontre em Ti a força necessária para cumprir a missão que me reservaste neste mundo, e a esperança de alcançar a paz interior, acolhendo com respeito meu irmão, sem cultivar mágoas ou ressentimentos, reconhecendo, voluntariamente, na comunhão fraterna a paternidade amorosa de Deus.   
 Everaldo Lopes


[1] Modo de ser peculiar do homem.
[2] O Criador não pode afastar-se de sua criatura porque esta não tem a força da subsistência e sem Ele deixaria de existir.
[3] Consciência reflexiva, pensamento, sentimento e vontade.
[4] Conceito epistemológico definido por Deleuse; a passagem contínua e imperceptível entre duas realidades.  
[5] Grande místico católico.

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