sábado, 14 de dezembro de 2013

Espiritualidade em perspectiva

Para o filósofo, o espírito é uma essência incorpórea pensante, princípio absoluto[1] criador do tempo e do espaço, que rege o Universo e a vida. O espírito manifesta-se na consciência reflexiva, oferecendo ao homem a capacidade de transcender-se[2], compatível com a manifestação temporal deste princípio absoluto imaterial, incompreensível para a razão humana. Sua manifestação misteriosa cria no homem a possibilidade de viver o distanciamento subjetivo entre o “eu sujeito” observador e o objeto de sua observação (o mundo e a vida).  Experiência que constitui o cerne da própria consciência reflexiva. Surge assim o pensamento; processo mental que se concentra na formulação de conceitos e no relacionamento logico das ideias. Desenvolve-se então a possibilidade da crítica construtiva que dá suporte a escolhas criteriosas favoráveis a mudanças oportunas nas relações do homem com o mundo, consigo mesmo, e com os outros. É óbvio que o pensamento não é redutível a uma explicação fenomenológica. Mas ele justifica o ser consciente, fundamentando-o. O simples fato de o homem ser capaz de pensar leva-o à conclusão inevitável de que existe[3]. A partir da confirmação de sua própria existência o homem se dá conta de que não se criou a si mesmo nem o mundo que habita. Daí a especulação filosófica sobre o Criador, um absoluto que permanece necessariamente inscrito na sua criação uma vez que esta não possui o poder de subsistir. Obviamente, em face da incapacidade de a criatura subsistir por conta própria não se pode separar a Criação (o cosmo e a vida), do seu Criador. Todavia, o Princípio espiritual absoluto que cria e permanece cifrado na sua criação só se manifesta mais ostensivamente no homem. O Espírito fundamento da consciência reflexiva paralela à liberdade utilizou a organização psicobiológica complexa do homem (Sistema Nervoso Central) para manifestar-se ostensivamente. Ambas, consciência e liberdade se implicam mutuamente; a consciência reflexiva não existe sem liberdade e a prática desta obriga o ser consciente a assumir responsavelmente os valores éticos de uma existência[4] sustentável. Esta implicação envolve a dinâmica subjetiva entre a razão[5], os sentimentos e a  vontade, oferecendo ao homem a oportunidade de fazer escolhas e de produzir mudanças evolutivas construtivas. Mas, ao mesmo tempo, o ser consciente reflexivo se expõe ao conhecimento das incertezas decorrentes da sua própria finitude, origem da angústia existencial e de outros medos. A maior angústia do ser humano resulta do reconhecimento da fragilidade inerente à contingência de ser no mundo sem garantias. O que implica em defrontar a incerteza do seu vir a ser sem poder abrir mão de uma proposta existencial na qual faz suas escolhas pessoais, mesmo correndo riscos. A experiência demonstra que a plenitude existencial inexcedível só acontece quando amamos verdadeiramente, ou criamos dando asas à inspiração artística e inventiva; então, o tempo não conta, ou não o sentimos passar. Por isso a capacidade de amar incondicionalmente se acompanha de maior felicidade do que a que nos pode proporcionar o sentimento de ser amado! Ser amado é uma consequência; quem ama a vida a Natureza e os outros é também amorável e recebe com naturalidade a retribuição ao seu comportamento amoroso! Todavia, o amor e a criação artística, assim como a prática solidária não são ações manipuláveis, envolvem integração exemplar das funções psíquicas superiores, e talento; equilíbrio e virtude que não resultam apenas de um simples esforço voluntário. São dons congênitos que recebemos gratuitamente e apenas podemos cultivá-los. Nas relações humanas a dinâmica psíquica afetiva é muito complexa, não é facilmente administrável, e o melhor resultado depende ainda da participação do outro mediante sintonia  espontânea e recíproca que não acontece com a frequência desejável. A base da experiência amorosa é a prática do respeito ao outro e da responsabilidade social; até este ponto os comportamentos individuais são controláveis pela vontade.  Mas o amor se torna uma elaboração heroica quando se trata de viver a intersubjetividade de almas gêmeas[6], o encontro ideal que todos almejam realizar um dia!
Na subjetividade humana transitam pensamentos, sentimentos, intuições, desejos que convergem na definição e assimilação de um sentido para a existência pessoal, que passa necessariamente pela relação eu-tu. Nesse processo todos aspiram à plenitude, substrato da felicidade. Porém a instabilidade e incertezas da existência interferem na intersubjetividade inerente à relação “eu-tu” [7]. Interferência relevante uma vez que o homem só nasce como pessoa mediante a possibilidade deste relacionamento.
            Nas dúvidas e inquietações que o assaltam, o homem se sente desamparado diante da fragilidade da vida e do seu vir a ser existencial precário. E se não for capaz de resistir à vivência de abandono diante dos riscos inerentes à própria vida, no mínimo tornar-se-á torturado pelo medo, e ficará permanentemente assustado, incapaz de arriscar o novo. Privado desta possibilidade corre o risco de sobrenadar a estagnação da mesmice de uma existência insípida. Se o amor é o sal da vida, a coragem de arriscar quando ele o exigir é o oxigênio do amor. Precisamos ter a coragem de afirmar-nos como algo além de uma organização biológica exemplar condicionada à contingência temporal; precisamos transcender o presente fugidio para viver o aqui e agora, sem apego aos bens materiais, convencidos de ter em nós mesmos tudo de que precisamos para dar um sentido à existência. Sentido que inclui necessariamente a presença do outro.
Todos somos dotados de razão, afetividade e vontade. A  afetividade e a vontade trabalham o conhecimento racional influindo nas escolhas que o homem faz e nas decisões que precisa tomar no seu vir a ser temporal. A espiritualidade se desenvolve na medida em que o ser consciente é capaz de lidar com as funções psíquicas superiores (razão, afetividade e vontade), integrando-as de forma criativa e equilibrada tendo em vista a construção da comunidade humana. E dela (a espiritualidade) faz parte a busca e assimilação de um sentido imanente e transcendente que enobreça a existência.  Para não nos desgarrarmos nessa jornada há que projetar a relação “eu-tu”, temporal, numa relação “eu-Tu” transcendental em que o eu dialoga na subjetividade com um Alter ego absoluto criador. A intersubjetividade com uma transcendência absoluta demanda um ato de fé. Esta é a única forma de construirmos um porto seguro no mais íntimo da nossa realidade biopsíquica e espiritual. Neste sentido crer equivale a criar o objeto de fé, vivenciando-o como um poder absoluto que a todos nos ampara. Esta aventura existencial  não se resume apenas na indução racional da necessidade de um poder absoluto, mas assumindo-O por um vínculo afetivo que O abraça, sem conhece-Lo, confiante em que n´Ele tudo faz sentido. A espiritualidade plena se confunde com a sabedoria, estado de espírito em que há uma integração harmônica da razão, da afetividade e da vontade na busca da plenitude existencial inerente à participação do “eu” pessoal no absoluto significativo onde reina a iluminação[8] e a paz. É óbvio que esta paz ilimitada só existe numa dimensão transtemporal o que implica ter fé na participação pessoal em uma realidade que transcende o mundo sensível. Essa experiência é pacificadora na medida em que integrado no absoluto, necessariamente único, o ser consciente se liberta de todas as contradições e dúvidas, assim como do medo induzido pela própria finitude. No contexto da espiritualidade que vimos de descrever, a sabedoria e a santidade andam de braços dados. O sábio e o santo são homens simples e humildes.   Ambos encontraram o sentido da vida e o arremate significativo da existência, fazendo de suas fraquezas o trampolim da perfectibilidade humana. Entendendo-se que a perfeição só existe na comunidade de todas as consciências integradas na unidade do absoluto criador (Deus).              Everaldo Lopes             



[1] Algo que existe em si e por si.
[2] O próprio ato de pensar, refletir, implica em transcender  (ultrapassar) o conhecimento imediato associando-o a outros para articular o pensamento lógico.
[3] René Descarte depois de duvidar dos próprios sentidos concluiu “Eu duvido, logo penso, logo existo” (1596 - 1650).
[4] Modo de ser peculiar do homem segundo Kierkegaard (1813-1855) e no existencialismo contemporâneo,
[5] Inteligência linguístico-matemática, intrapessoal e interpessoal (emocional), espacial, cinestésica, existencial , naturalística.
[6] Se você sentir por uma  pessoa vontade de ficar junto,  ternura, saudade de vez em quando, e prazer de conversar com ela, dialogar, esta pessoa reúne condições para ser sua  alma gêmea. Tal  sintonia é a primeira condição para um encontro intersubjetivo verdadeiro. Se, além disso, existe entre vocês o diálogo indispensável à pratica do bom senso podemos afirmar que acabam de encontrar a verdadeira alma gêmea. E se esta experiência se prolonga numa forte atração sensual, e parceria sexual afetuosa, cúmplice e respeitosa  está configurado o amor conjugal exemplar.

[7]“Eu e tu” de Martin Bubber .( 1878 –1965)
[8] Segundo sto Agostinho, comunicação da luz divina à alma do homem, pelo que a inteligência se torna capaz de atingir um conhecimento verdadeiro.