sábado, 15 de outubro de 2011

A minha crença


Do Espírito podemos apenas formular um conceito indefinido, representando o oposto das coisas materiais que são palpáveis e descritíveis. Entre as realidades “espirituais”, invisíveis, apenas reconhecidas por suas manifestações, destaca-se a subjetividade do pensamento, referencial do sujeito consciente. Ao dizer “eu” cada um de nós revela o caráter autoconsciente e intencional do Princípio Espiritual, substrato da realidade psíquica, emocional e cognitiva do ser humano. Um Dinamismo eternamente criativo[1] que também é fonte de tudo quanto existe, presente até na mais ínfima partícula do Universo como razão e finalidade. Conforme a crença em que vivo, o Espírito está “cifrado”[2] na matéria, integrando-a como padrão de formatação[3] que se atualiza no ente[4]. Este, pois, é um modelo de organização, objetivado pela consciência local (do observador), dentre as infinitas possibilidades preexistentes na Consciência Universal. Dessa forma, o Espírito Eterno guarda o esquema abstrato (essencial) de todos os seres e, na estrutura psicobiológica do homem, atualiza as “possibilidades” que Lhe permitem refletir-Se, manifestando-Se na consciência reflexiva. Ou seja, o Universo tomando consciência de si mesmo. A consciência reflexiva pressupõe a coparticipação do finito (contingência) e do infinito (transcendência), no ato de “existir”. No  “vir a ser consciente” o sujeito do conhecimento transcende-se numa abstração, avalia a realidade consciência / mundo e acrescenta-lhe algo “novo” (mudança) mediante escolha criativa entre as possibilidades evolutivas visualizadas pelo sujeito cognoscitivo. Nesse ato se revela no ser consciente um apelo incessante de ultrapassagem da atualidade existencial. A existência será definida, então, como incompletude que se supera instante a instante e só se satisfaz com o absoluto - realização inexcedível. Portanto, o Espírito personificado na Perfeição Absoluta pode ser considerado uma “exigência” existencial, mas, ao mesmo tempo, é um absurdo racional. não se pode discuti-lo no nível do raciocínio lógico, mas não se pode descartá-lo, tampouco, sem deixar de fora a consciência e o mundo, realidades irrecusáveis das quais damos testemunho com nossa presença. Na subjetividade humana esta “exigência” se inscreve como o desejo de “ser mais”, que move o devir pessoal. “Desejo” que, num primeiro momento de sua manifestação, persegue o prazer sensual cuja fugacidade deixa, todavia, insatisfeito o anseio de eternidade. Então, o anelo existencial se prolonga na busca de um sentido que visa algo além do aqui e agora, um “valor” que contextualize o prazer de ser num universo significativo. A satisfação sensual consciente, peculiar ao homem, traduz o registro reflexivo do momento físico senciente da experiência humana atual, numa resposta biopsíquica marcada pelo prazer estético. Mas o “desejo” de transcender que não se esgota no prazer estético induz no ser consciente a necessidade de uma justificativa moral, substrato do sentido que o indivíduo precisa dar a sua “existência”, enriquecendo o prazer estético com a coerência ética. E, finalmente, num último esforço de transcendência o valor ético é ungido com o aval absoluto de Deus, transformando-se num valor éticoreligioso. No texto “Patamares existenciais”, publicado neste blog, já discutimos esta evolução axiológica que tem suas raizes na obra de Kierkegaard[5].
Como essência do ser consciente, o Espírito se entremostra na indelimitação do presente vivencial que permanece como referencial imóvel (eterno – o presente nunca passa), centrado no “agora”[6]. Na dinâmica existencial este presente indemarcável é vagamente pressentido pela consciência, constituindo na subjetividade humana um ponto fixo, referencial indispensável à aferição do tempo cósmico que flui ao ritmo das transformações da corporeidade do mundo aparente, inclusive do ser psicobiológico do homem. Nesse contexto, a corporeidade biofísica do ser humano se esgotará com a morte biológica ao modo de uma imagem holográfica que se desfaz, permanecendo intacta no programa que a projetou, e a retém na comunidade de todas as consciências, inscrita no Espírito Eterno.
O Espírito cifrado no ser consciente ultrapassa em todos os sentidos os limites históricos do homem ao qual dá forma e vida próprias. O Espírito é unitário, absolutamente consistente em si mesmo e livre, senhor de todas as possibilidades. Escapa a qualquer definição, mas cada um pode ter d´Ele um vislumbre vivencial na experiência singular de unidade com um todo inexcedível. Disto a experiência mística é o paradigma exemplar. Extrapolando o sentido estritamente religioso convencional, esta experiência se reproduz no êxtase fugaz que nos assalta, ao ouvir uma harmonia inspirada, ou viver os encontros existenciais que realizam um “nós” maiúsculo. Nestes momentos embarcamos no túnel da atemporalidade e vivemos a eternidade no tempo, como eco da experiência vivencial de unidade com o Universo. Enfim, em sua essência, “imagem e semelhança” do Espírito eterno, o homem conserva o Dinamismo Criativo, no elã de transcender ao exercitar a consciência reflexiva individual, diferençando-se de todos os demais entes da Natureza. Esta singularidade encontra sua plena realização quando o Espírito “cifrado” no ser psicofísico do homem rompe a barreira do tempo (morte física), libertando-se da limitação imposta pela entidade biológica contingente que O manifesta.
Assim, depois de mortos, todos nos encontraremos na intimidade do Espírito Eterno no qual se homogeneízam todas as experiências acumuladas durante nossa vida temporal, pessoal e coletiva.  Não perdemos a identidade, após a morte biológica, mas a viveremos, integrada numa comunidade perfeita, transfigurada pela interdependência e reciprocidade instantâneas de todas as consciências pessoais, integradas numa só realidade – o Espírito Eterno – Deus. Obviamente, esta expectativa pressupõe que a humanidade como de resto todo o Universo é uma centelha divina.
Entendo agora...  O “amoroso desapego à vida” que um dia imaginei como objetivo do crescimento existencial é um mergulho profundo na compreensão da precariedade do prazer dos sentidos, enquanto cresce a expectativa de alcançar a plenitude da comunhão universal, na unidade e liberdade absolutas da perfeição do “ser em si”. Este entendimento ainda não tranquiliza, porém, o ser consciente instalado no tempo, vítima da angústia ante o vir a ser histórico incerto, e o fim biológico inevitável. Para a total pacificação do homem na sua peregrinação temporal é necessário vivenciar a “intimidade” do Espírito Eterno com o “ser de existência”, vivida como um diálogo no qual a criatura, livre de determinismos, tem consciência, clara ou nebulosa de que não subsistirá sem a concordância com a vontade divina identificada como a “voz da consciência”. Neste intervalo existencial se insere a prática ritual simbólica apaziguadora própria das religiões convencionais. os ritos religiosos tranquilizam, embora muitas vezes estejam associados a uma espiritualidade primária.
A coerência absoluta da Consciência Universal está presente no Universo, intimamente e eternamente, conduzindo o processo criativo.  Esta afirmação não é passível de confirmação científica; não obstante arrima-se numa especulação coerente. Considerando a ordem presente na Evolução desde a matéria primitiva até a vida consciente seria no mínimo inconsistente descartar uma intenção Suprema inerente à Consciência Universal.
Confiante no arremate apoteótico da existência, o ser consciente deverá fazer escolhas e tomar decisões compatíveis com a perfeição do Dinamismo Absoluto Eternamente Criativo indistinguível da Consciência Universal. Diante da precariedade do vir a ser temporal, nem sempre a consciência individual responsável alcançará resultados imediatos satisfatórios compatíveis com o esforço perfectivo realizado, porém é preciso que insista em ultrapassar-se, criativamente, na busca da perfeição. A postura subjetiva mais sábia resulta numa atitude de entrega humilde à vontade do Criador, confiante em que tudo tem sentido na Unidade da perfeição absoluta.
A interrupção da vida, contra o desejo fantasioso de permanência que se insinua na subjetividade humana, torna urgente a superação da antinomia “vida e morte”... Nisto ajuda a certeza de que ao fim da existência temporal, o momento da “transição” se esgotará em uma fração do segundo, e, transposto o portal do tempo haverá vida plena na eternidade do Espírito. Esta é a minha crença.
Em termos especulativos, todavia, as alternativas possíveis do depois são o Esquecimento eterno, ou a plenitude. Abraçando a segunda, confiante na perfeição do Espírito Eterno, encontro a paz que me assistirá no último alento, antes do mergulho no desconhecido. Aposto na participação pessoal na vida eterna (um Absoluto) por ser esta alternativa mais compatível com uma visão de mundo consequente. Para sustentá-la apoio-me em especulações coerentes com a realidade... pois, do ponto de vista estritamente racional nada se pode afirmar ou negar de uma transcendência absoluta. Admito, porém, que, arriscar conscientemente nesta “aposta” (como dizia Pascal), não é a única forma de manter a dignidade ao pular sobre o “abismo” diante do qual a temporalidade coloca os seres conscientes da própria finitude. Pode-se deixar de lado a questão do “depois”, assumindo uma postura estoica diante do fim inevitável, mitigada pelo sentimento vago de ajuda anônima e gratuita da Natureza, ao encerrar-se o calendário da existência de cada um. “A Natureza sabe como resolver seus problemas”, dizia Montaigne[7] em um dos seus ensaios... Atitude confiante que apraz a quem aguarda, simplesmente, o esvaziamento da ampulheta do tempo, sofreando, estoicamente, o tumulto e a agitação inerentes à expectativa da morte. Nisto consiste o estoicismo de quem aposta em que tudo acaba com a morte biológica. “Aposta” que é, também, uma opção, porque não há como provar que a morte biológica é o fim definitivo do homem...
Vivo a crença em um Deus pessoal, opondo  ao elemento de dúvida que toda crença comporta, os argumentos especulativos que a justificam como probabilidade eleita. Não tenho certeza de coisa alguma, mas assumo o risco, acreditando, ajudado pela fé na perfeição da Consciência Universal, garantia de que tudo tem sentido no Dinamismo Absoluto Eternamente Criativo. Eis a minha crença!
Everaldo Lopes    



[1] A Teologia cristã apresenta este dinamismo na doutrina da Santíssima Trindade; três pessoas em um só Deus... A interação dinâmica do Pai, do Filho e do Espírito Santo é a essência do próprio dinamismo divino.
[2] Escrito em código
[3] Não é isto que está implícito na linguagem quântica quando afirma que o Universo é feito de “possibilidades” e o real concreto é o resultado do “congelamento” das possibilidades escolhidas pela “consciência local”? Esta “consciência local” determinaria a ordenação (formatação) de algumas possibilidades em cada campo do Universo; ordenação já inscrita
(codificada) na “Consciência Cósmica” - Espírito Eterno - que harmoniza todas as possibilidades.
[4] Cada um dos múltiplos seres existentes e concretos da realidade circundante (os seres humanos, os seres vivos, os objetos do pensamento e da natureza etc.) que não se confundem com o ser em si, o Ser ou a realidade absoluta. Houaiss3

[5] Kierkegaard, Sören Aabye - Filósofo dinamarquês existencialista (1812 – 1855).
[6] Contextualização, na linha do tempo, do passado e do futuro imediatos, separados por um corte (o presente) indelimitável (eterno) e sempre o mesmo.
[7] Montaigne, Michel Eyquem – Ensaista francês (1533 – 1592)