A consciência reflexiva
coloca o homem no centro da incerteza. A existência, modo de ser consciente e
responsável peculiar do homem envolve escolhas e decisões. Elaboradas a partir do
confronto de cada indivíduo com sua circunstância, elas devem atender aos desejos
pessoais, respeitando os valores éticos assumidos por seus atores. Este
processo disciplinar não é pacífico; o comportamento moral encerra interdição de
anseios, ambições e apetites que contrariam os valores eleitos. Assim se define
o vir a ser pessoal que implica em contínua vigilância. Mas nem sempre temos o conhecimento exato dos
elementos da escolha que fazemos. As dúvidas são frequentes. E em função da
sensibilidade moral de cada um diante de suas opções, a autoavaliação
comportamental resulta em vivências de paz interior, ou de culpa e
arrependimento. Nesse contexto se desenvolve a responsabilidade existencial.
Paralelamente aos conflitos
éticos, o homem sabe que o seu equilíbrio biológico é instável, e está
permanentemente ameaçado pela probabilidade maior ou menor de doenças e
acidentes. A insegurança resultante da consciência desse fato é fonte de
temores e angústias. Diante das incertezas existenciais e da precariedade
biológica, é latente no subjetivismo humano a aspiração a poder amenizar a consciência
aflitiva das dúvidas diante das alternativas existenciais conflitantes, e a
suavizar o impacto provocado pela noção da fragilidade biológica. O homem aspira à vivência do momento libertador
de aceitação tranquila de todos os percalços derivados da sua vulnerabilidade como
ser contingente, inclusive a própria finitude. Ao mesmo tempo se impõe a
pergunta inquietante: seria isso possível?
Pela
consciência de sua temporalidade, o ser humano
está condenado a viver o drama da
insegurança diante da possibilidade de riscos imprevisíveis, inclusive o de
morrer sem qualquer aviso prévio. Seguramente, no vir a ser incerto há uma
margem variável de controle sempre limitada. Porém, mesmo quando as dificuldades desse
devir sem garantia são superadas durante toda uma vida, o homem sofre, inevitavelmente, como qualquer ser perecível, os
efeitos da corrosão do tempo. A idade lhe
vai roubando, uma após outra, as probabilidades de desfrutar as alegrias do
viver apaixonado. Até mesmo os que ultrapassam a década dos oitenta com
vitalidade para apaixonar-se e atuar socialmente são vistos por muitos como
exemplares raros que provocam nos circunstantes, no mínimo, a emoção de quem se
depara com um fenômeno incomum. É difícil evitar a comoção disfarçada do
observador mais jovem ante o interlocutor envelhecido! Suficientemente crítico dos
seus limites biológicos e culturais, o próprio idoso se retrai, para não se
expor a paixões consideradas extemporâneas. Por outro lado é melancólico o
espetáculo do longevo ingênuo que estimulado por uma observação admirativa
exibe sua vitalidade decadente. Ainda ontem, numa loja de produtos naturais,
presenciei o comportamento ingênuo de um homem negro idoso. A balconista
certamente para ser agradável declarou sua avaliação favorável à “juventude” do
cliente que, ato contínuo, anunciou vaidoso estar nos seus “85 janeiros”. Lia-se
na sua afirmação o desejo de causar admiração; e de repente fez uns dois
agachamentos rápidos para justificar o acerto do julgamento de que fora alvo.
Era um homem do povo cujo grau de instrução não pude avaliar bem, mas seguramente
não era analfabeto e, por sua indumentária me pareceu ter condição financeira
para viver decentemente. Ingênuo ou crítico em relação às próprias limitações
indeclináveis o homem vai elaborando como pode as incertezas e inseguranças, de acordo com sua personalidade e seu nível
intelectual.
O fato que acabo de
relatar comprova que há uma tendência cultural a sustentar a autoestima alimentando
a fantasia de prolongar a juventude que do ponto de vista biológico é
impossível conservar indefinidamente. Essa disposição, só pode levar, mais cedo
ou mais tarde a uma decepção dolorosa. Antes que as limitações físicas e
intelectuais que acometem a maioria dos
que vivem muitos anos os incapacitem, algumas fantasias transitórias ainda inflam
o ego de muitos dos maiores de sessenta, e os compensam, momentaneamente, do
sentimento de envelhecimento irreversível. Porém uma forma mais efetiva de
driblar a saudade da juventude é a projeção do idoso nos seus descendentes ou,
na falta destes, nos seus discípulos. E, melhor ainda será, havendo condições, que
o longevo mantenha uma atividade criativa, seja de ordem prática, intelectual
ou artística. Obviamente, todo esforço empreendido, com dignidade, no sentido
de elaborar a vivência depressiva induzida pela ação corrosiva do tempo representa
um conjunto de atitudes e ações que convergem, contribuindo para manter elevada
a autoestima. Esta convergência, idealmente, alinha as potencialidades
intelectivas, intuitivas, emocionais e volitivas no sentido de alimentar o
sentimento de integração pessoal num todo significativo. Afinal a existência se
constrói em torno de valores, e apoiar neles o sentido de sua vida é a missão
de todo homem. O fracasso desta empreitada heroica é aflitivo; de tão
devastador, arrisco-me a dizer que o fato de não conseguir dar um sentido para
a própria vida é uma das principais razões porque alguns homens se matam. Sentido
que corresponde a um ideal transcendental, não cabe num objetivo temporal. Pelo
que se sabe não há registro cientificamente comprovado da evidência de que o
animal irracional ponha fim aos seus dias de vida, deliberadamente. O homem é o
único animal que comete suicídio; e também o único ao qual é conferido o poder
de dar um sentido à própria vida. Por isso, seja qual for sua explicação, o
suicídio nunca será uma resposta ética no roteiro da Evolução da vida.
Ao homem cabe alimentar a
aspiração ao ideal do perfeito equilíbrio da razão, do sentimento e da vontade,
necessário à aceitação criativa dos percalços da existência. O coroamento desta
aceitação é o sentimento de amoroso desapego à vida, do qual santos e heróis nos
deixaram testemunhos inolvidáveis. Conquista laboriosa que tangencia a experiência mística e se constitui numa
resposta definitiva às dificuldades existenciais. Um apoio racional para esse
apelo à fé numa transcendência é a especulação metafísica sobre a “ordem”
impressa na evolução da matéria desde o big-bang. A constatação dessa ordem leva
à conclusão da necessidade racional de admitir a preexistência de uma intenção
(não há ordem sem intenção) que por sua vez demanda necessariamente a
consciência universal (não há intenção sem consciência) de um plano perfeito,
que se define como entidade eminentemente espiritual. Neste Blog já falamos, detalhadamente,
sobre o que pensamos a esse respeito, nos
três textos nomeados “Devaneios especulativos I, II e III”. A alternativa materialista
seria a atitude estoica de viver os limites inevitáveis da vida, corajosa e
desamparadamente, respeitando os valores universais numa postura nobre, porém
muito solitária e triste.
Racionalmente, é fácil
conceber a necessidade lógica de um “dinamismo absoluto eternamente criativo”
que, pela perfeição do projeto em execução é uma garantia de que nada existe em
vão e de que os males do mundo são intervalos entre um bem menor e outro maior.
Mas para que o homem absorva, emocionalmente, uma postura de entrega à
perfeição desse “dinamismo” é preciso que ocorram no seu subjetivismo mudanças
psicodinâmicas profundas representadas pela integração das potências psíquicas.
A dificuldade maior do homem para mergulhar numa experiência mística é sua
incapacidade de se auto induzir os eflúvios de um envolvimento afetivo que
preencha os espaços da relação confiante com uma transcendência absoluta vivenciada
como seu Alter Ego. Íntimo e
misericordioso este Alter Ego tem a mesma natureza da Transcendência indispensável
à subsistência da própria experiência temporal do ser consciente. A essência espiritual é comum à consciência
reflexiva e ao Alter Ego. Ou seja, a própria experiência temporal só é possível
pela presença dessa transcendência absoluta. Ela garante a subsistência da contingência
psicodinâmica, denunciando-se no “presente eterno” temporalmente indefinível,
comparável a um corte no tempo que se intui como um referencial abstrato, imóvel, a dividir a duração cósmica entre
o passado e o futuro. Sendo atemporal, este corte é percebido, indiretamente no
“agora”, o nosso presente psicológico, representado em cada momento pela
vivência do passado e do futuro imediatos.
Everaldo Lopes