terça-feira, 22 de outubro de 2013

Dramas da vida consciente



A consciência reflexiva coloca o homem no centro da incerteza. A existência, modo de ser consciente e responsável peculiar do homem envolve escolhas e decisões. Elaboradas a partir do confronto de cada indivíduo com sua circunstância, elas devem atender aos desejos pessoais, respeitando os valores éticos assumidos por seus atores. Este processo disciplinar não é pacífico; o comportamento moral encerra interdição de anseios, ambições e apetites que contrariam os valores eleitos. Assim se define o vir a ser pessoal que implica em contínua vigilância.  Mas nem sempre temos o conhecimento exato dos elementos da escolha que fazemos. As dúvidas são frequentes. E em função da sensibilidade moral de cada um diante de suas opções, a autoavaliação comportamental resulta em vivências de paz interior, ou de culpa e arrependimento. Nesse contexto se desenvolve a responsabilidade existencial.
Paralelamente aos conflitos éticos, o homem sabe que o seu equilíbrio biológico é instável, e está permanentemente ameaçado pela probabilidade maior ou menor de doenças e acidentes. A insegurança resultante da consciência desse fato é fonte de temores e angústias. Diante das incertezas existenciais e da precariedade biológica, é latente no subjetivismo humano a aspiração a poder amenizar a consciência aflitiva das dúvidas diante das alternativas existenciais conflitantes, e a suavizar o impacto provocado pela noção da fragilidade biológica.  O homem aspira à vivência do momento libertador de aceitação tranquila de todos os percalços derivados da sua vulnerabilidade como ser contingente, inclusive a própria finitude. Ao mesmo tempo se impõe a pergunta inquietante: seria isso possível?
            Pela consciência de sua temporalidade, o ser humano  está condenado  a viver o drama da insegurança diante da possibilidade de riscos imprevisíveis, inclusive o de morrer sem qualquer aviso prévio. Seguramente, no vir a ser incerto há uma margem variável de controle sempre limitada.  Porém, mesmo quando as dificuldades desse devir sem garantia são superadas durante toda uma vida, o homem sofre,  inevitavelmente, como qualquer ser perecível, os efeitos da corrosão do tempo. A idade  lhe vai roubando, uma após outra, as probabilidades de desfrutar as alegrias do viver apaixonado. Até mesmo os que ultrapassam a década dos oitenta com vitalidade para apaixonar-se e atuar socialmente são vistos por muitos como exemplares raros que provocam nos circunstantes, no mínimo, a emoção de quem se depara com um fenômeno incomum. É difícil evitar a comoção disfarçada do observador mais jovem ante o interlocutor envelhecido! Suficientemente crítico dos seus limites biológicos e culturais, o próprio idoso se retrai, para não se expor a paixões consideradas extemporâneas. Por outro lado é melancólico o espetáculo do longevo ingênuo que estimulado por uma observação admirativa exibe sua vitalidade decadente. Ainda ontem, numa loja de produtos naturais, presenciei o comportamento ingênuo de um homem negro idoso. A balconista certamente para ser agradável declarou sua avaliação favorável à “juventude” do cliente que, ato contínuo, anunciou vaidoso estar nos seus “85 janeiros”. Lia-se na sua afirmação o desejo de causar admiração; e de repente fez uns dois agachamentos rápidos para justificar o acerto do julgamento de que fora alvo. Era um homem do povo cujo grau de instrução não pude avaliar bem, mas seguramente não era analfabeto e, por sua indumentária me pareceu ter condição financeira para viver decentemente. Ingênuo ou crítico em relação às próprias limitações indeclináveis o homem vai elaborando como pode as incertezas e inseguranças,  de acordo com sua personalidade e seu nível intelectual.
O fato que acabo de relatar comprova que há uma tendência cultural a sustentar a autoestima alimentando a fantasia de prolongar a juventude que do ponto de vista biológico é impossível conservar indefinidamente. Essa disposição, só pode levar, mais cedo ou mais tarde a uma decepção dolorosa. Antes que as limitações físicas e intelectuais que  acometem a maioria dos que vivem muitos anos os incapacitem, algumas fantasias transitórias ainda inflam o ego de muitos dos maiores de sessenta, e os compensam, momentaneamente, do sentimento de envelhecimento irreversível. Porém uma forma mais efetiva de driblar a saudade da juventude é a projeção do idoso nos seus descendentes ou, na falta destes, nos seus discípulos. E, melhor ainda será, havendo condições, que o longevo mantenha uma atividade criativa, seja de ordem prática, intelectual ou artística. Obviamente, todo esforço empreendido, com dignidade, no sentido de elaborar a vivência depressiva induzida pela ação corrosiva do tempo representa um conjunto de atitudes e ações que convergem, contribuindo para manter elevada a autoestima. Esta convergência, idealmente, alinha as potencialidades intelectivas, intuitivas, emocionais e volitivas no sentido de alimentar o sentimento de integração pessoal num todo significativo. Afinal a existência se constrói em torno de valores, e apoiar neles o sentido de sua vida é a missão de todo homem. O fracasso desta empreitada heroica é aflitivo; de tão devastador, arrisco-me a dizer que o fato de não conseguir dar um sentido para a própria vida é uma das principais razões porque alguns homens se matam. Sentido que corresponde a um ideal transcendental, não cabe num objetivo temporal. Pelo que se sabe não há registro cientificamente comprovado da evidência de que o animal irracional ponha fim aos seus dias de vida, deliberadamente. O homem é o único animal que comete suicídio; e também o único ao qual é conferido o poder de dar um sentido à própria vida. Por isso, seja qual for sua explicação, o suicídio nunca será uma resposta ética no roteiro da Evolução da vida.
Ao homem cabe alimentar a aspiração ao ideal do perfeito equilíbrio da razão, do sentimento e da vontade, necessário à aceitação criativa dos percalços da existência. O coroamento desta aceitação é o sentimento de amoroso desapego à vida, do qual santos e heróis nos deixaram testemunhos inolvidáveis. Conquista laboriosa que tangencia a  experiência mística e se constitui numa resposta definitiva às dificuldades existenciais. Um apoio racional para esse apelo à fé numa transcendência é a especulação metafísica sobre a “ordem” impressa na evolução da matéria desde o big-bang. A constatação dessa ordem leva à conclusão da necessidade racional de admitir a preexistência de uma intenção (não há ordem sem intenção) que por sua vez demanda necessariamente a consciência universal (não há intenção sem consciência) de um plano perfeito, que se define como entidade eminentemente espiritual. Neste Blog já falamos, detalhadamente, sobre o que pensamos  a esse respeito, nos três textos  nomeados  “Devaneios  especulativos I, II e III”. A alternativa materialista seria a atitude estoica de viver os limites inevitáveis da vida, corajosa e desamparadamente, respeitando os valores universais numa postura nobre, porém muito solitária e triste.
Racionalmente, é fácil conceber a necessidade lógica de um “dinamismo absoluto eternamente criativo” que, pela perfeição do projeto em execução é uma garantia de que nada existe em vão e de que os males do mundo são intervalos entre um bem menor e outro maior. Mas para que o homem absorva, emocionalmente, uma postura de entrega à perfeição desse “dinamismo” é preciso que ocorram no seu subjetivismo mudanças psicodinâmicas profundas representadas pela integração das potências psíquicas. A dificuldade maior do homem para mergulhar numa experiência mística é sua incapacidade de se auto induzir os eflúvios de um envolvimento afetivo que preencha os espaços da relação confiante com uma transcendência absoluta vivenciada como seu Alter Ego.  Íntimo e misericordioso este Alter Ego tem a mesma natureza da Transcendência indispensável à subsistência da própria experiência temporal do ser consciente.  A essência espiritual é comum à consciência reflexiva e ao Alter Ego. Ou seja, a própria experiência temporal só é possível pela presença dessa transcendência absoluta. Ela garante a subsistência da contingência psicodinâmica, denunciando-se no “presente eterno” temporalmente indefinível, comparável a um corte no tempo que se intui como um referencial  abstrato, imóvel, a dividir a duração cósmica entre o passado e o futuro. Sendo atemporal, este corte é percebido, indiretamente no “agora”, o nosso presente psicológico, representado em cada momento pela vivência do passado e do futuro imediatos.
                                   Everaldo Lopes