terça-feira, 29 de dezembro de 2015

O homem e a Evolução



É um desafio invencível desvendar o elo entre as manifestações psíquicas superiores[1] e a estrutura biológica do homem. Como acontece a transição entre os fenômenos neuronais de natureza material (bioquímica) e o pensamento, imaterial?  Permanece inacessível à razão a intimidade do processo psíquico que culminou com o exercício da consciência reflexiva e do livre arbítrio, os marcos mais avançados da evolução no mundo conhecido. Essas conquistas mudaram o rumo da Evolução. Elas tornaram possível ao homem fazer escolhas e tomar decisões conscientes que ultrapassam as possibilidades evolutivas limitadas aos determinismos físico químicos  e aos feedbacks biológicos.  Dessa forma, o homem perdeu a condição de um ser natural; sua existência é uma construção cultural representada pelo “...  conjunto de características humanas que não são inatas, e que se criam e se preservam ou aprimoram através da comunicação e cooperação entre indivíduos, em sociedade”[2]. O processo evolutivo desviou-se do aprimoramento individual para a excelência da organização social.
A Evolução alcançou a máxima complexidade biológica no homem; agora, para garantir a sobrevivência da espécie deverá encaminhar-se no sentido social, desenvolvendo a capacidade humana de organização solidária  em uma comunidade universal.
O exercício do livre arbítrio exige responsabilidade nas escolhas pessoais, mediante a utilização de critérios totalmente confiáveis.  Ora, os critérios estéticos e éticos não preenchem este requisito porque não têm a garantia de uma autoridade absoluta. Depois de viver o nível ético de existência o homem sente necessidade de ultrapassá-lo, arrimando sua decisão num valor absoluto transcendental mediante experiência de fé em um todo perfeito cuja harmonia encerra a verdade suprema. Kierkegaard definiu essa situação como o nível religioso da existência.  Ante essa realidade, evidencia-se que o fenômeno humano tem um fundamento místico. Nesse contexto,  a afirmação de Jesus: “Eu sou  o caminho a verdade e a vida”[3] ganha sua dimensão própria  decisiva no processo evolutivo.  Ao fazer essa declaração, Jesus ultrapassa sua imanência biológica para confirmar definitivamente o perfil sobrenatural do homem, sabendo que não haveria outra forma  de fazê-lo senão, assumindo, ele mesmo, como homem, o caráter divino. E tomou para si a responsabilidade de anunciar-se o modelo  existencial exemplar, arrematando em caráter definitivo o perfil do ser humano e o critério supremo para suas escolhas. Para autenticar sua proposta Jesus consagrou-a, testemunhando-a de forma terminante, ao deixar-se crucificar até a morte. Desde então o apelo do seu exemplo divide os homens entre os que creem nele e os que não lhe creditam confiança total. Na verdade somos todos divinos; o Criador permanece necessariamente na sua criatura, pois esta é incapaz de subsistir por  conta própria. Assim, Deus está presente em todo homem. A diferença é que no contexto bíblico a fé na divindade de Jesus é reforçada pela confirmação durante toda vida do Nazareno das profecias que constam do Antigo Testamento sobre sua pessoa. Presságios feitos com tanta antecedência uma vez confirmados ganham foros de verdade com  repercussões místicas inevitáveis. Assumir ou não o modelo cristão do homem continua sendo uma questão de fé na palavra de Jesus.
 O reconhecimento da complexificação crescente da matéria primitiva, caótica, que caminhou no sentido da organização dos corpos compostos, da vida e da própria consciência reflexiva permite alinhar especulações sugestivas da necessidade lógica de um ordenador supremo inscrito na própria Criação como um dinamismo absoluto eternamente criativo. Mas esse voo intelectual não é suficiente para aquietar as dúvidas existenciais. Só a vivência de fé numa vinculação pessoal harmoniosa com um todo absoluto transcendental pode conferir ao homem a segurança a que ele aspira diante da consciência da própria finitude. O ato de fé confirma a “Presença ignorada de Deus”[4] no inconsciente pessoal mediante abraço emocional consciente que cinge uma realidade interior transcendental irredutível ao conhecimento objetivo.
No seguimento das especulações sobre a “complexificação crescente da matéria”[5] podemos dizer que o homem não é um animal que se espiritualiza, mas a manifestação do espírito pré-existente que organizou a matéria até a complexidade do ser humano.  Todavia, por mais inteligente que o homem fosse não poderia dizer a última palavra sobre si mesmo e o mundo. No seu acontecer histórico a razão humana se restringe à temporalidade, mas a realidade que abrange o princípio e o fim de tudo que existe é transcendental.
A leitura fiel, compreensiva, da linguagem cifrada pelo absoluto  na sua criatura revelaria o mistério do ser. Mas esta leitura não se exaure à luz dos recursos puramente racionais; exige a fé que amarra o homem à transcendência infinita, num transe místico,  sem  sacrificar sua unidade pessoal enquanto participa da temporalidade. Nesta linha de pensamento na afirmação de Jesus, já citada, no Evangelho de João está implícita a consciência de que se algum homem jamais assumisse histórica e dogmaticamente a dignidade do próprio Criador para definir o perfil do verdadeiro homem, certamente não teríamos como  fazê-lo, uma vez que deste não há um protótipo na Natureza.  O recém nascido vem ao mundo com os atributos que lhe permitem desenvolver a condição humana, a consciência crítica, o livre arbítrio e a responsabilidade; com esses atributos, cada um constrói sua humanidade.
A Filosofia jamais alcança o conhecimento da essência do mundo e do homem. A razão humana não consegue dissipar os contrastes da realidade visível que esconde a essência unitária do homem representada pela síntese universal perfeita do cosmo e da consciência. Todavia, encarnando o exemplo de Jesus reproduzimos na nossa própria existência o perfil do verdadeiro homem.  Obviamente, a vivência dessa experiência só se torna existencialmente efetiva numa entrega incondicional do sujeito consciente ao absoluto criador através de  autêntico ato de fé.   É preciso ir além do real palpável para viver o fenômeno humano em plenitude.
A consciência reflexiva demanda uma distância virtual (descontinuidade subjetiva) entre o objeto e o sujeito do conhecimento.  Essa falha da continuidade processual inerente ao exercício da consciência  reflexiva choca-se com a linearidade fenomênica biológica do Sistema Nervoso Central através do qual se manifesta o pensamento reflexivo. Todavia a distância virtual entre o sujeito e o objeto do conhecimento é fundamental para  o exercício da liberdade  que preside as escolhas pessoais compatíveis com a passagem para níveis mais altos de integração do homem na ordem evolutiva. Esta distância virtual) permite ao sujeito do conhecimento uma observação detida da realidade percebida, para aprimorá-la. A consciência transcende, pois, os fenômenos biológicos complexos do Sistema Nervoso Central, constituindo-se num salto de qualidade irredutível a uma explicação fenomênica convencional. O exercício da consciência e do livre arbítrio confere ao homem a capacidade de influir no rumo da Evolução, e dessa forma colaborar para a construção de uma sociedade solidária indispensável à continuidade da própria Evolução.  
Everaldo Lopes


[1] Consciência reflexiva, inteligência racional, vontade  e criatividade.
[2] Aurélio
[3] João 14;6
[4] Título de um livro publicado por Victor Frankl
[5] Tese defendida por Teilhard de Chardin em “O fenômeno himano”.

sábado, 24 de outubro de 2015

Amor e ódio



Amor e ódio são emoções inseparáveis na complexidade psicodinâmica das relações humanas. É surpreendente essa química entre sentimentos aparentemente opostos que se alimentam reciprocamente, ora predominando um, ora prevalecendo outro. Quando um deles reina isoladamente o outro se esconde na profundidade subjetiva. A intimidade entre estas duas emoções revela que elas não são opostas porque não se anulam e até, de certa forma, se reforçam... Pode haver antipatia à primeira vista, mas ao ódio antecede sempre uma relação amorosa ou, pelo menos, de conhecimento. Por isso diz-se com toda propriedade que o verdadeiro oposto do amor é a indiferença e não o ódio que é apenas a sua outra face. Ambos, porém, por motivos psíquico-afetivos complexos mantêm os seus protagonistas unidos. É impossível desliga-los enquanto estiverem empolgados pelo amor ou pelo ódio. A  diferença é que a experiência amorosa é prazerosa, enquanto a do ódio é dilacerante, aflitiva.
As formas de amar se distinguem pelo comportamento dos amantes. O amor selvagem que envolve as pessoas apaixonadas faz suas próprias leis. Ele se apresenta sob a forma de forte emoção e dessa experiência arrebatadora a literatura nos traz exemplos emblemáticos de amores consumptivos e trágicos. Em contraponto com paixões avassaladoras, também há registros literários de ódios destrutivos alimentados por toda uma vida.
Por outro lado, o amor conjugal, berço da família, segue outra linha comportamental. É responsável, comporta a prática do bom senso na sua evolução, submete-se aos padrões éticos do grupo, portanto é disciplinado e controlável. Ele se distingue porque se constrói no convívio respeitoso, carinhoso, terno e responsável dos seus  protagonistas. Metaforicamente, compararíamos a paixão com uma fogueira que produz calor intenso, consumindo-se em cinzas; enquanto o amor conjugal se compararia a um sistema de calefação  autossustentável que mantém estável a temperatura indefinidamente. Nesse último caso, o amor perde sua tonalidade egoísta, purificando-se ao calor da solidariedade que preside os  laços de família nos quais sobressaem a responsabilidade, a amizade e o amor-caridade que busca o bem do outro sem a obrigatoriedade de qualquer recompensa.
O amor selvagem (paixão) é incompatível com o compromisso necessário à preservação da estabilidade social da coletividade humana. Aliás, é oportuno registrar que, por definição, a condição humana se caracteriza pelo exercício da consciência livre e responsável. A coerência dessa prática implica na construção de uma ordem indispensável à sobrevivência da humanidade, o que faz do amor selvagem (paixão) um comportamento marginal do ser humano, ou seja, uma conduta que retarda a evolução da espécie. Por ser indisciplinada, a paixão[1]  cria  entre os seres humanos situações incompatíveis com a própria humanização. A liberdade, diferencial da condição humana, fica coarctada pela paixão. E a consequência disso é fatal. Suprimida a liberdade, o homem perde a dignidade de pessoa reduzindo-se à condição de objeto, e como tal não pode amar. Porque sem liberdade o amor perde seu caráter essencial, transformando-se num sentimento de posse ou de submissão. Ora, o  par apaixonado, por definição, nega-se mutuamente a dignidade de ser livre na medida em que  se deixa escravizar pela paixão. É esta escravidão que transforma os apaixonados em objetos, um para o outro, e como tais, sem liberdade, portanto, privados da possibilidade de amar. Só nessa situação justifica-se a afirmação de Sartre: “o amor é uma fraude”.
Por outro lado, a paixão por um absoluto unificador, objeto de fé,  comporta outras considerações. Nesse caso a paixão corresponde a um ato de entrega consciente, incondicional, ao poder supremo, acolhedor, perfeito por sua própria natureza. Consiste na consagração a um absoluto significativo. Esta doação é a saída mais adequada para a angústia existencial marcada pela vivência torturante da finitude biológica que martiriza o homem. A imersão do homem no contexto de uma totalidade transcendental significativa torna-o participante de uma comunidade universal em que as fronteiras interpessoais são superadas pela intersubjetividade amorosa na qual todos se realizam plenamente numa comunidade solidária.
O amor selvagem e o ódio não são, porém, necessariamente fatais. Mediante rigorosa disciplina da razão e da vontade, funções psíquicas superiores que marcam o ser consciente, é possível controlar as catexes[2] que alimentam as paixões, redirecionando a energia psíquica em favor de ações construtivas da paz coletiva. Esse processo de “sublimação”[3] favorece a atualização da condição humana. Impõe-se, pois, ao homem lutar, com todas as reservas psíquicas, para transcender as paixões menores em favor da paixão maior vivida numa experiência mística.
O grande problema do homem é a conquista da harmonia entre as antinomias implícitas na sua condição de ser consciente livre e responsável. Nessa situação reconhece sua finitude, mas aspira à eternidade, quer tudo conhecer e sabe que seu conhecimento será sempre limitado, deseja poder tudo e tem de admitir a impotência de sua própria contingência. Diante destas contradições insolúveis à luz da consciência clara, estamos convencidos de que o remate do problema humano é místico e não racional. A participação apaixonada  num absoluto transcendental significativo integra o homem na realização suprema de uma comunidade universal solidária onde não há contradições e o amor reina absoluto.
Everaldo Lopes


[1] Sentimento que se sobrepõe à lucidez e à razão
[2] “Aplicação, consciente ou não, de energia psíquica em pessoa, coisa ou ideia” (Aurélio)
[3] Processo inconsciente que consiste em desviar a energia da libido (q. v.) para novos objetos, de caráter útil.

domingo, 27 de setembro de 2015

Hino à vida



A paixão pelo conhecimento tem que ver com o desejo de explicar o mistério do cosmo e da vida sobre o qual se desdobra o vir a ser existencial[1]. Daí o esforço intelectual que absorve o pensador em busca de respostas para suas indagações. E mais, quanto mais conhecimento tiver maior será sua compreensão da realidade, corroborando o acerto das escolhas que faz.  Arrebatado pela curiosidade o homem aspira a saber cada vez mais sobre a verdade conjuntural, ciente porém de que esta aspiração nunca será completamente satisfeita. O pensador percebe os seus limites racionais e Incapaz de superá-los  é levado a projetar a atenção num Absoluto[2]  criador a fim de explicar a existência do mundo e a sua própria.  Nessa perspectiva, o indivíduo cria uma realidade que não pode objetivar,  vivendo-a como crença que só se torna uma verdade existencialmente consistente quando é consumada  emocionalmente com grande convicção.
O ser consciente, reflexivo, é capaz de usar os próprios recursos racionais para manipular sua circunstância, tendo em vista a conquista de objetivos escolhidos em função de necessidades práticas, ou da afirmação de um ideal. Esta capacidade se acompanha de flexibilidade comportamental construtiva, excepcional na história da vida.  Mas o dom especial do pensamento reflexivo e da consciência inclui a percepção da finitude pessoal, o que gera conflitos racionalmente insolúveis, ponto de partida da ansiedade e angústia existenciais. Para superar esse mal-estar psíquico o homem confia em poder experimentar uma  vivência mística que o  faça sentir-se absorvido na paz de uma transcendência na qual encontre o sentido de sua própria existência. Isso implica ter fé num Absoluto que sustenta o ego  inseguro diante da consciência da finitude.  A necessidade de o homem transcender-se só se satisfaz neste Absoluto que preenche a “falta” ontológica da qual o ser consciente se ressente, confusamente percebida pela razão e afetivamente perturbadora para o eu pensante.
Indiferente às especulações metafísicas, o Poeta propõe ao homem inquieto: “Dorme teu sono, coração liberto, dorme na mão de Deus, eternamente”[3]. Entendendo que dormir na mão de Deus é conviver intimamente com Ele na plenitude de uma experiência mística. Esta convivência é vivenciada psicologicamente como a intimidade subjetiva com uma intuição reveladora da transcendência absoluta.
Na visão de mundo  espiritualista, monista, criacionista, a morte não é mais do que uma passagem para outro nível de existência. Nas cogitações metafísicas que esta visão suscita vive-se neste mundo a liberdade do espírito, incompletamente, como um estado d´alma, “o estado ideal: alma, o estado divino da matéria”[4]. Pode-se especular sobre  a transfiguração da identidade pessoal, consolidada depois da morte biológica na comunidade de todas as consciências em comunhão com o dinamismo absoluto criativo  de Deus. Mas no nível do vir a ser temporal, o homem consciente da própria finitude só se libertará da angústia existencial mediante a maturidade pessoal forjada no “Amor”[5], no sentimento de coparticipação com seus semelhantes num todo absoluto significativo que transcenda a dicotomia Consciência / Mundo. Este sentimento vivido com todas as potências da alma se exprime numa experiência amorosa que dá corpo à raiz ontológica transcendental do homem, exorcizando o medo da morte e das fantasias acompanhantes, pelo reconhecimento de que o óbito é apenas uma passagem no retorno do ser consciente ao Absoluto que o criou. Poder-se-á, então, dizer com Santo Agostinho: “A morte não é nada. / O que eu era para vocês, continuarei sendo. / Passei a viver no mundo do Criador / enquanto vocês continuam vivendo no mundo das criaturas./ Que o meu nome seja pronunciado como sempre foi, / sem ênfase de qualquer tipo, / sem qualquer traço de sombra ou tristeza. / Pense, sinta, reze por mim. / O fio não foi cortado, / somente passei para o outro lado do caminho. / E vocês que ficaram sigam em frente. / A vida continua sendo linda e bela, como sempre foi”. Com essa linguagem simples o Bispo de Hipona desmistifica a morte biológica, e celebra a beleza da vida temporal que se prolonga na plenitude da vida eterna.
Dentro de uma visão de mundo espiritualista monista criacionista a plenitude humana se constitui num ato de amor, uma entrega incondicional. Não se pode controlar voluntariamente a vivência desta entrega do sujeito consciente ao Dinamismo Absoluto eternamente criativo. A prática amorosa é dom sublime que vai além de um ato voluntário. A rendição pessoal a um absoluto transcendental implica na comunhão amorosa dos homens entre si e com o Criador, experiência existencial inexcedível de fé, vivenciada mercê de uma graça[6] particular. Portanto, o conhecimento não basta para preencher o abismo sobre o qual se constrói a existência, é preciso amar; “Sendo que amar é muito mais que  crer”[7].


Everaldo Lopes


[1] Modo de ser próprio do homem.
 [2] Diz-se da realidade plena, ilimitada, essencial, que não depende  senão de si mesma para existir
[3] Antero de Quental in Sonetos :”Na mão de Deus”
[4] Raul de Leoni – do soneto : “De um fantasma”
[5] Ato de doação incondicional do si mesmo a uma causa ou ao próprio Deus.
[6] Dom ou virtude especial concedido por Deus como meio de salvação ou   santificação.

[7] Raul de

domingo, 23 de agosto de 2015

Viver e existir



Na sua marcha inexorável o tempo consome, até a morte, instante a instante, a vida que ganhamos ao nascer. Obviamente, essa consumpção acontece a todo ser vivo. Resulta de fenômenos naturais. Nada há de novo nessas afirmações. Há um detalhe, porém, que também não é novidade mas merece destaque especial: o homem é o único animal que se dá conta da própria vida e de sua finitude. Isso tem implicações. Entre outras, por ser autoconsciente o homem é capaz de avaliar antecipadamente as consequências sobre a saúde do corpo e da alma, decorrentes do seu modo de viver.  Assim ele se torna em certa medida responsável pela manutenção do próprio equilíbrio biológico. Adotando hábitos alimentares sadios, evitando o sedentarismo, dormindo regularmente etc. pode influir beneficamente na conquista de sua saúde física e psíquica. Obviamente, estas medidas salutares não anulam a ação do tempo. O tempo continua soberano, promovendo o envelhecimento que culmina, sempre, com a morte.
Há uma diferença essencial entre viver e existir.  A vida em si é um processo biológico sujeito às leis da Natureza, enquanto a existência é uma construção cultural feita de escolhas pessoais inspiradas no sentimento, analisadas pela razão e executadas por determinação da vontade que ora atende à razão, ora ao sentimento, ou acaba subscrevendo um acordo negociado entre estas potências da alma humana. Então podemos dizer que em grande parte o vir a ser existencial está em nossas mãos.
As situações que envolvem a vida de cada um exigem decisões responsáveis. É razoável que diante dos problemas familiais, sociais e econômicos que assediam o sujeito consciente, em momentos de lucidez ele se detenha para questionar: como estou gerenciando minha existência? Tenho feito o de que realmente gosto, ou apenas sigo um script cultural? Neste caso assumo comportamentos culturalmente induzidos que não me  proporcionam felicidade?... E descubro que para ser responsavelmente livre sou obrigado a policiar o meu comportamento e muitas vezes tomar decisões que me custam algum sacrifício. Isso é necessário porque o que acontece em cada momento além de nos afetar individualmente tem reflexos sociais que podem prejudicar a harmonia do grupo. Habitualmente pautamos a conduta por valores éticos já consagrados. Todavia, em situações limítrofes faltam parâmetros confiáveis para aferir o equilíbrio das respostas aos estímulos que nos assediam. E nestes casos, não raro, ou transgredimos a ordem estabelecida ou nos reprimimos demasiadamente. Então, embora não queiramos podemos criar com nossa conduta situações desconfortáveis para nós mesmos ou para os outros, promovendo comoções sociais ao nosso redor. Contudo, na falta de uma pauta comportamental pré-estabelecida, temos sempre a possibilidade de encontrar o caminho da coerência no exercício da razão, do sentimento e da vontade, respeitando o outro e a nós mesmos, o que sempre repercute positivamente no bem estar coletivo. A disposição de agir equilibrando nobremente o que estamos fazendo e o que sentimos ser moralmente correto é fundamental para a conquista da paz e autoconfiança de que precisamos para existir construtivamente. Mas a busca em que nos empenhamos para alcançar paz e segurança só se completa definitivamente quando prolongamos, pela fé, o esforço ético-racional deixando-nos empolgar por um valor absoluto  transcendental. Embora sabendo-nos incompletos e vulneráveis a ocorrências imprevisíveis, precisamos assumir o comando da nossa própria existência o que implica em riscos cuja expectativa gera insegurança. Para enfrenta-los (os riscos) recorremos em primeira mão ao conhecimento e à competência complementados pela vontade de proceder corretamente. Mesmo assim não ficamos inteiramente a salvo da possibilidade de deslizes comportamentais. E as pessoas sensíveis se ressentem de suas condutas destoantes das próprias convicções éticas.
A precariedade humana nos expõe à necessidade de amparo moral nos momentos de angústia existencial. Os que têm fé confiam na providência[1]. Aos homens de pouca fé resta confiar na especulação metafísica que sugere uma consciência universal inteligente e eternamente coerente. É ela que garante a ordenação da complexidade crescente da matéria caótica dos primeiros segundos após o “big-bang”, até a vida consciente[2]. Na mística existencial a consciência universal é o próprio Deus que garante a paz do sujeito consciente mediante sua integração na unidade perfeita de tudo que existe. Em ambos os casos o homem alcança a paz interior, sintonizando seu ser mais íntimo com um todo absoluto significativo. Mas esta sintonia só será efetiva quando emocionalmente consumada. Só então o homem sente que o caminho existencial (imanência) se confunde com o ponto de chegada proposto pela fé como uma transcendência absoluta... e sente a paz existencial que a razão sozinha não pode promover.  Este é o mistério da fé.
Dúvidas, incertezas que ensombrecem a paz do vir a ser consciente sempre existirão. Caso a caso, cada um deverá fazer a escolha fundamental entre seguir à risca o que está culturalmente estabelecido, ou vencer a inércia cultural e criar soluções originais no sentido de cumprir a missão da vida consciente no processo evolutivo, ou seja, a de construir uma humanidade solidária. Isso implica em enfrentar a realidade priorizando a responsabilidade de agir eficientemente no sentido da defesa do bem comum, ainda que seja necessário pagar pesado ônus. Essa postura confiante é a mais adequada para a superação da vivência de incerteza que ameaça a integridade subjetiva do homem como protagonista responsável da História. Quando a ameaça é insuportável sobrevém aflição e amargura. Nesses casos, suaviza o sofrimento existencial sabê-lo tão fugaz quanto os momentos de prazer que a vida pode proporcionar. Em última instância, os homens que trilham o caminho místico acreditam em que a realidade mais íntima do ser consciente se projetará além do tempo numa harmonia perfeita na qual encontrará sua plena realização. Essa perfeição já se entremostra na experiência subjetiva do ser consciente, racional e volitivo, mediante a intuição da unidade do todo universal. Este todo é necessariamente um absoluto que é único e perfeito. O referencial dessa totalidade significativa, assumido pela fé, é representado por uma transcendência infinita, totalmente confiável (Deus). Sem esta âncora o projeto existencial fica vinculado a atribuições volúveis, verdades contingentes incapazes de definir com autoridade o papel que cabe ao homem como protagonista da história e da Evolução. Sem um referencial absoluto o homem se perde num relativismo ético perturbador. Uma pauta ética baseada estritamente na razão temporal está sempre sujeita a revisões corretivas. É transitória e não satisfaz a necessidade humana de segurança total. A inquietação resultante deprime o indivíduo que aspira à transcendência absoluta. Na prática, a superação de uma depressão moral, antes que ela se transforme em doença orgânica, implica em o indivíduo erguer a cabeça, deixar de ter pena de si mesmo e buscar alternativas, reavaliando as posturas assumidas.
Até na terceira idade, quando o automatismo biológico começa a falhar, oportunizando a queda da autoestima e reforçando a ameaça de depressão, é possível ter motivação para viver. Para tanto é preciso manter atividade social que contribua para o bem estar das pessoas, exercitar uma ocupação prazerosa e, finalmente, alimentar sonhos e projetos. Esta proposta de uma vida proativa é intrínseca ao exercício coerente da consciência, mas demanda criatividade e determinação. Implica em “apostar todas as fichas” na mobilização dos recursos morais e talentos pessoais, tendo em vista construir um vir a ser capaz de objetivar condições favoráveis para o bem comum. Isso exige um esforço consciente para assumir de forma ativa e confiante atitudes e ações coerentes com um programa social focado na solidariedade.

Everaldo Lopes




[1] A suprema sabedoria com que Deus conduz todas as coisas.
[2] Esta ordem pressupõe uma intenção e consequentemente uma consciência, pois não há intenção sem consciência. No caso teríamos de admitir uma Consciência universal.