sábado, 11 de dezembro de 2010

Construção do texto



  O “artesanato da palavra” é uma atividade criativa de aperfeiçoamento do texto. Trabalho em que a imaginação o vai moldando a partir de uma primeira redação, mediante revisões repetidas.  O objetivo é encontrar as palavras mais adequadas ao rigor da exposição de uma idéia, atendendo o propósito estético do escritor. A linguagem escrita, ao tempo em que veicula informações também toca a sensibilidade. Nisso ela se supera, fixando com engenho e arte as cintilações do espírito humano...
A intenção de quem escreve é a de transmitir uma idéia, mas, também, produzir uma emoção estética. No curso desta atividade o escritor tateia os recôncavos da memória e adeja os altiplanos da imaginação, em busca de palavras, imagens, símbolos que melhor traduzam a idéia que quer transmitir. Esforço construtivo em que a memória e a fantasia vão trabalhando resíduos de experiências vividas, coadjuvando a intenção atual de dar forma a uma mensagem. Nesse movimento subjetivo vão se arrumando no papel frases, períodos de um texto com o qual se pretende não apenas apresentar o pensamento com clareza, mas também dar-lhe beleza plástica.
Cada escritor tem um jeito próprio de fazê-lo. Uma estratégia é descrever, num primeiro momento, o conteúdo espontâneo do espírito despertado por inspiração momentânea. Então, traduzem-se em palavras, sem muito esmero, sentimentos, vivências, e pensamentos que ocorrem ao escritor. Provavelmente, desta primeira tentativa resultam períodos longos, adjetivação excessiva, uso abusivo de advérbios, e de substantivos que apenas se aproximam do conceito que se tem em mente. Num segundo momento, a releitura revela as falhas que obrigam aos acréscimos cabíveis, ou à supressão de redundâncias cansativas e supérfluas. A operação se repete uma, duas, três, tantas vezes quantas necessárias. O texto vai assim ganhando corpo e o instantâneo inicialmente revelado ao espírito vai se desenhando na escrita, com traços cada vez mais fortes e precisos. Pela substituição de um termo por outro mais exato, ou após correções eventuais de deslizes gramaticais emerge uma noção mais completa da realidade representada!...
Com as palavras arrumando-se na ordenação lógica das frases encadeadas em períodos coerentes entre si, o pensamento por vezes adquire vida própria. De repente, com o acréscimo de uma palavra, complementar, mas indispensável à ordenação lógica de uma oração, amplia-se a compreensão da realidade descrita... ou, a reordenação dos elementos da mesma oração deixa o texto mais leve... Isso justifica dizer que escrever com propriedade ajuda a melhor compreender o pensamento expresso. Mesmo no linguajar corrente é surpreendente como se ilumina o pensamento com o encaixe significativo de um substantivo mais adequado, ou com uma adjetivação que o transcendentalize. Desse processo criativo resulta um prazer estético dos mais puros.
No vídeo da imaginação do escritor as palavras vão-se acomodando na topografia da oração, adequando-se e harmonizando-se no conjunto. Momento glorioso em que a forma e o conteúdo da prosa se misturam clarificando a mensagem e criando efeitos estéticos.  Instante mágico em que o espírito se compraz não apenas com a retidão da estrutura lógica, mas também com a sonoridade e a harmonia plástica da expressão literária.
Há palavras que reproduzem a idéia que temos no espírito, com precisão milimétrica e dão colorido agradável ao rigor do sentido. Assim como existem outras cuja musicalidade deslumbra a sensibilidade de quem escreve ou lê, murmurando detalhes nas entrelinhas do texto logicamente concatenado. Cabe ao escriba evitar os deslizes de uma modelagem afetada.
No fim, saciado, ou, pelo menos apaziguado na sua busca de verdade e de beleza, o espírito repousa na alegria da criação.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Amor e ética


            Amor e ética
            As exteriorizações comportamentais amorosas e éticas apresentam fortes semelhanças, embora seja muito diferente o conteúdo existencial em cada caso. A indistinção formal dos gestos e das ações que são comuns aos relacionamentos ético  e amoroso oculta a diferença entre os fundamentos da ética e do amor. O psicodinamismo do amor inclui a compreensão e o perdão; o determinismo ético é tributário da culpa e do castigo.  Compreender e perdoar são atividades subjetivas que envolvem liberdade, generosidade e criatividade. O jogo da culpa e do castigo, implícito nas relações éticas, estabelece preceitos a cumprir e punição para os infratores, reduzindo a relação ética a um mercado de benefícios. Na relação amorosa a liberdade criadora é a fonte de ações inéditas, na busca de sínteses existenciais cada vez mais perfeitas. Na relação ética, a submissão à lei, e o medo da punição reduzem a liberdade à prática de condutas policiadas, que inibem a criatividade e a generosidade, refletindo, apenas, obediência à rigidez do estatuto legal. Na relação amorosa, a ação livre ganha luminosidade, emergindo colorida e emocionante.  Na relação ética, a ação estipulada por um cânon inflexível perde a originalidade, manifestando-se esquálida, ensombrecida pela melancolia de renúncias dolorosas.
Palmilhando os caminhos interiores em busca de autenticidade, cada um de nós se depara, ao longo da existência, com a necessidade de distinguir o que faz por amor, do que faz por obrigação moral.  Para a prática moral a grande virtude é o dever vinculado à disciplina da vontade. Ao passo que o amor é imprevisível e irredutível ao comando da vontade... O amor distingue-se por seu caráter de doação... Ora, doar é ofertar, gratuitamente, afeto, e bens que traduzam materialmente o desejo de servir.  Mas, qual o limite que se pode estabelecer na intimidade psíquica entre doar como uma manifestação amorosa, e fazê-lo para cumprir, simplesmente, uma obrigação ética?... É difícil identificar este limite, mas a questão é relevante. Sabe-se que o amor verdadeiro é sempre ético, mas nem toda relação ética é amorosa.
Na evolução histórica da humanidade foi necessário estabelecer a ordem no grupo social mediante o respeito a uma autoridade externa. Era preciso adotar um recurso prático, para o gerenciamento das relações coletivas. O controle ético foi o expediente utilizado, pela facilidade de administrá-lo, gerenciando a aplicação de leis e a punição dos rebeldes... já que a vontade, virtude básica na prática ética, pode ser disciplinada, e é disciplinadora, também.  Porém é notório que uma verdadeira comunidade só se constrói com amor... esse algo mais  sem o qual a prática das virtudes éticas fica empobrecida.
O homem tem a potencialidade de amar e ser amado, mas precisará vencer muitas resistências para tornar realidade seu potencial amoroso. Considerando a conjuntura inerente aos comportamentos ético e amoroso, por mais que um suposto amante se esmerasse em administrar sua conduta segundo regras morais, não conseguiria, por esse caminho, viver o amor, nem fomentá-lo em suas relações interpessoais...
Sendo o amor um dom, que fazer, então, para construir relações amorosas, quando o amor não se faz sentir espontaneamente com o seu brilho peculiar? Uma questão importante porque enquanto não vivemos o amor não alcançamos a felicidade a que todos aspiramos...
A maneira mais adequada de enfrentar esta situação é tentar compreender o outro, com determinação. Não podemos impor-nos amar.  Mas podemos diligenciar compreender o outro mediante os recursos intelectuais que possuímos e pelo aprendizado da compaixão através do esforço de avaliar com justa imparcialidade o sofrimento do próximo, sabendo-nos expostos às mesmas dores... Este é o caminho que nos sensibiliza para a solidariedade com o nosso semelhante, nas alegrias e desventuras. Compreendendo-o a partir do reconhecimento de nossa própria fragilidade, será mais fácil perdoá-lo, se for o caso, e com ele confraternizar. Neste esforço compreensivo perceberemos como o outro, tal como nós mesmos, está perdido nos seus caminhos interiores, e como ele sofre diante da sua própria miséria afetiva. Daí à compaixão é um passo. E se nos libertarmos dos equívocos culturais preconceituosos, acabaremos por sentir a força da solidariedade. Identificar-nos-emos de forma efetiva e simpática com o outro em sua fraqueza que é nossa, também, participantes que somos todos da mesma condição humana... E quase, insensivelmente, começaremos a amá-lo.
Dir-se-ia que enquanto nos queremos mutuamente felizes, e assumimos responsavelmente nossa participação no processo social, somos “um” com os outros, somando o prazer dos sentidos e a aspiração à perfeição humana, na convivência comunitária. A existência plena se consuma nas relações interpessoais vazadas no amor à liberdade e no respeito à dignidade do outro.


   

domingo, 5 de dezembro de 2010

Desmistificando a morte


O medo da morte é o arquétipo de todos os medos. Para poupar-se do desgosto de saber-se mortal, o homem anseia a impassibilidade. Esta indiferença em face do fim inevitável é rara. Mas, tranquiliza-nos saber que a sabedoria da Natureza nos ampara nesse transe. Confirmando-a, diz  Montaigne em seus ensaios. “A Natureza nos ensina sair do mundo como nele entramos. Nascemos sem que fosse por força da nossa vontade e sem temores; esperemos conduzir-nos da mesma maneira ao passar da vida à morte.” Certo. A Natureza é pródiga. Virgem de influências estranhas às suas próprias leis, ela não se propõe problemas que não possa resolver, e não nos faltará com seu apoio. É o próprio Ensaísta que adverte:  “Ao conduzir-nos pela mão, devagar, por entre o medo e a expectativa desagradável da morte, a Natureza nos familiariza com essa fatalidade.” Ademais, “a morte súbita não nos dá tempo para temê-la... e a doença terminal que antecede, demoradamente, a morte, nos prepara para a aceitação tranquila.”
Mais adiante, o Filósofo francês assinala que “O salto da mocidade à velhice, conquanto marcado por perdas irrecuperáveis, é menos impressionante do que o que separa uma vida miserável do seu fim.” E acrescenta: “A morte liberta o homem de todos os sofrimentos e sortilégios... por que, ainda assim a repudiamos e tememos perder uma coisa (a vida) que uma vez perdida já não podemos lamentar?” Estes comentários põem em evidência quanto é irracional o medo da morte... Todavia, usando as palavras do mesmo autor, “a morte é parte integrante de nós mesmos; durante a vida estamos moribundos.”  Portanto, é  mais sensato absorver a idéia de que a vida e a morte são duas faces de uma mesma moeda (realidade), e  encarar com naturalidade a perfeição do ciclo biológico do qual a morte participa o tempo todo.  
Na mesma obra o Ensaísta nos brinda com jóias de bom senso: “Podemos sair da vida saciados e dir-nos-emos satisfeitos. Mas se a nossa vida foi inútil, que importa perdê-la? E se ela continuasse, em que a empregaríamos? Para que prolongar dias de que não se saberá tirar melhor  proveito do que no passado?”.  “Não será tolice condenar uma coisa que não conheceis, nem pessoalmente, nem através de outrem?” Contrastando o anseio humano de imortalidade, o Filósofo  declara: “Considerando as limitações da contingência humana não seria a imortalidade mais penosa?”. E reforçando esta dúvida, ressuscita uma passagem mitológica: “Quiron, filho de Saturno recusou a imortalidade...” ou melhor... cansou  de viver!!!
O Filósofo sabe que é libertador pensar a morte, de todos os ângulos, familiarizar-se com ela até o ponto de compreender-lhe a natureza, e seu significado no ciclo da vida. Esta prática é algo parecido com uma dessensibilização progressiva que acaba por reduzir o medo a níveis toleráveis. Por fim, o filósofo não reconhece a morte como um mal, mas como um evento necessário à organização biológica complexa, e à sustentabilidade da cadeia de eventos que integram a biosfera. Por isso Cícero dizia que filosofar é aprender a morrer.
Vamos pensar um pouco sobre a morte...
Mal damos partida nesta investigação deparamos com um fato aparentemente contraditório: para viver é preciso morrer. Ao existir morremos o tempo em que estamos vivendo... Morremos para viver este tempo. Todavia não nos damos conta de estar morrendo enquanto vivemos, até o momento em que se desfizer o determinismo morte / vida. Então, deixaremos de morrer aos poucos e, conseqüentemente, de viver, também... Morrer minuto a minuto é a condição para viver. A morte é indispensável para podermos fruir a vida que levamos. Todavia, enquanto a vida rouba a cena, cria-se a ilusão da vida plena. A vida parece, então, independente e autônoma, ficando a morte reduzida à condição de um evento futuro, que o homem espera esteja tão distante quanto possível. Conhecendo quanto lhe custa o tempo de viver, o homem percebe a necessidade de vivê-lo, criativamente, buscando coerência no seu vir a ser, voltado para a construção de uma existência significativa. Nesta perspectiva se coloca a ética existencial, cerne da dignidade pessoal, idealmente, centrada na verdade, na beleza e na justiça... E se revela a necessidade que o homem tem de dar um sentido à sua existência. Empreendimento heroico cuja realização está sujeita a um cronograma inflexível. Na esteira desta empresa ele pode brindar a vida, bem utilizando seus talentos, colhendo as alegrias de que for capaz, e (des)dramatizando as tristezas inevitáveis.
  O desejo de sentido sugere que a realidade humana não se esgota no servomecanismo biológico... Aliás, aprofundando a análise da condição humana, destacam-se características que transcendem o fenômeno biológico: o pensamento, a criatividade, a consciência reflexiva, o senso de valor... Estas características transcendentais e a vocação humana para ser feliz sugerem que “algo mais” está misteriosamente “cifrado” na realidade biológica do homem. Eclode, então, a idéia de que este “algo mais” sobreviverá à exaustão física! Uma vez que o Universo e o homem não se explicam por si mesmos, haveria, então, outro nível de existência !?!?... Ganha fôlego assim, o discurso espiritualista centrado na crença da imortalidade da alma. O que atenua, para alguns, a consciência trágica de ser para a morte como o fim definitivo  do “existir”. Suponho que é disso que fala o Poeta inspirado quando diz “Vai ver até que esta vida é morte / E a morte é / A vida que a gente quer![1]...” . Um questionamento que desborda o tema título  desse texto cujo objetivo é, apenas, despir o medo arquetípico do seu aspecto trágico, mostrando como a morte se integra no ciclo da vida.


[1] Do poema “Um refém da solidão de Paulo Cesar Pinheiro