sábado, 31 de agosto de 2013

Sensualidade e espiritualidade



                                 “Dignificaste  a espécie, na nobreza
                        Das grandes  sensações  de Harmonia e Beleza
                        Disseste a glória de viver, e, agora,
                        O teu eco a cantar pelos tempos em fora,
                        Dirá aos homens que o melhor destino,
Que o sentido da vida e o seu arcano
                        É a imensa aspiração de ser divino,
                        No supremo prazer de ser humano!”[1]
           
            Ao nascer trazemos ao mundo a “condição humana”[2]. Exercitando-a, enquanto vivemos buscamos alcançar a plenitude da “existência” definida, culturalmente, por escolhas e decisões vinculadas aos valores morais assumidos.  Para atingir sua plena realização a consciência livre e responsável pode trilhar muitos caminhos. Mas sob a influência da cultura vigente a maioria dos homens respeita as normas éticas habitualmente estabelecidas.
O homem é uma construção que só se define depois de  colocado o último tijolinho da sua existência. O que é dado pela natureza,  basicamente, é a “condição humana”; o homem não é um ser natural. Como Natureza a Evolução parou na infraestrutura biopsíquica capaz de sediar reflexões, escolhas e decisões. Desde então o processo evolutivo se mantém numa dimensão predominantemente cultural através do desenvolvimento psicossocial do homem, idealmente, tendo em vista a edificação de uma comunidade. Nesta caminhada o homem constrói sua “existência”, o modo de ser que lhe é próprio.
Permanece impenetrável o mistério de como emergiram na infraestrutura biológica, manifestações noéticas eminentemente espirituais como a consciência reflexiva, o pensamento abstrato e a intuição criativa! Enfim, continua de pé a questão: o homem é a espiritualização da sua ancestralidade animal, ou uma experiência humana do Espírito? A segunda alternativa é a mais coerente com a tese monista espiritualista na qual se propõe que a matéria e sua evolução acabam sendo o resultado da ordem impressa pelo Espírito absoluto.
Não sendo um ser natural, o homem assume alguns modelos culturais que são módulos valiosos enquanto construções trabalhadas pela responsabilidade pessoal. Distinguem-se, entre outros, os modelos estoico, espiritualista religioso ou filosófico, o materialista, o naturalista, etc. Esses modelos resumem formas diferentes de interpretação da realidade, que inspiram princípios fundamentais de normas e costumes disciplinares da conduta.  Fenomenologicamente, da interação das tensões desse confronto entre a Natureza e os Valores éticos resulta a humanização. Os valores éticos assumidos e as tendências naturais agem como forças psíquicas que representam no interior do homem, respectivamente, o “poeta” e o “selvagem" que existem em cada um de nós. Mas, se a luta entre estes polos dinâmicos for radicalizada no sentido da vitória absoluta de um deles, o resultado já não será o homem. Porque este se caracteriza, exatamente, pela tensão permanente nas tentativas de integração dessas forças contrárias, mediante um equilíbrio instável, que resulta na constante criação do “humano”.
“A imensa aspiração de ser divino” e o “supremo prazer de ser humano” se integram no desejo de transcender a dicotomia inerente à polarização existencial entre a “espiritualidade” e a “sensualidade”. Na busca de uma integração destas qualidades cria-se uma expectativa que de algum modo ilumina criativamente os caminhos da “existência” na direção do ser pessoal cada vez mais consciente, livre e responsável. A tentativa do Poeta de unificar a existência Implica em apostar na harmonia essencial entre a inspiração divinatória (espiritualidade), e a sombra da ancestralidade animal (sensualidade). Esta última disciplinada mediante o comportamento ético alcançado inicialmente pela interdição dos instintos primitivos, e depois pela prática solidária inspirada no amor, manifestação do Espírito, que norteia o processo evolutivo desde o começo e se torna explícito no homem através das funções psíquicas superiores.
Historicamente a Filosofia clássica, fiel a uma epistemologia racional não conseguiu anular as oposições existenciais.  Ficou oscilando num movimento pendular do pensamento especulativo, aproximando-se mais, ora do espírito, ora da matéria. Superando esta metodologia do conhecimento baseada em contrastes, o pensamento filosófico existencialista libertou a “existência” das oposições internas, mediante uma visão intuitiva e dinâmica da realidade visível e invisível, unificada na vivência totalizante que se sobrepõe ao entendimento puramente racional objetivo. A experiência existencial vinculada à visão holística[3] da realidade transcende a percepção reduzida a conceitos estanques. A intuição criativa vislumbra a unidade estrutural da realidade universal, e predispõe à experiência de fé[4]. Nesta perspectiva abre-se espaço subjetivo para a aceitação da unidade transtemporal da Natureza e do homem. Então já não nos parecerá infantil ou aparentemente estranho o diálogo de São Francisco de Assis com o “irmão Sol” e com a “irmã Lua”.
Numa perspectiva ética naturalista como dizia Montaigne “Devo o que posso”. Mas a espiritualidade se torna evidente na perspectiva de dependência existencial recíproca e responsável das relações humanas interpessoais, nas quais o homem busca a perfeição comunitária, procurando aproximar-se dela cada vez mais mesmo sabendo-a  inatingível.
Numa tentativa de absorção dos polos existenciais na unidade do Todo universal, diríamos que o êxtase místico é o “orgasmo” espiritual de uma comunicação íntima do homem com o Absoluto criador, enquanto o orgasmo sensual é a confirmação física de um verdadeiro encontro  do par humano. Ambos, o orgasmo espiritual e o sensual, reunidos numa mesma vivência sinalizam a perfeita unidade do Espírito na sua experiência humana. Assim, de alguma forma podemos imaginar que “a imensa aspiração de ser divino” inclui “o supremo prazer de ser humano”. Esta é a minha versão da provocação que o Poeta faz nos três últimos versos da estrofe derradeira de “Ode a um Poeta morto”. O desdobramento das especulações sobre a convergência do “amor divino” e do “prazer humano” pode levar o pensamento a descobertas sutis, surpreendentes, no sentido de aproximar sem conflitos os opostos inerentes à construção do modo de ser peculiar do homem - a “existência”. Desmitificando a espiritualidade da relação pessoal com o absoluto criador, e espiritualizando a sensualidade da relação do par humano ter-se-á o êxtase total numa vivência definitiva de ser pleno. Esta experiência inexcedível arremataria, afinal, o esforço existencial de integração do sujeito consciente na unidade absoluta que se projeta além do tempo.
Everaldo Lopes.


[1] A última estrofe da “Ode a um poeta morto” de Raul de Leoni, dedicado à memória de  Olavo Bilac.
[2] Ser consciente, livre e responsável.
[3] Referente  à tendência que se supõe ser própria do Universo de sintetizar unidades em totalidades organizadas.(Aurélio)
[4] Miguel de Unamuno- “Ter fé não é crer no que não vimos, mas criar o que não vemos.”