terça-feira, 2 de julho de 2013

Fidelidade e lealdade.



            Faz algum tempo, um velho amigo de saudosa memória me disse como quem duvida, alimentando, porém, a esperança de ser verdadeira a sua afirmação: “- Meu cachorrinho está me dando aulas de fidelidade em tempo integral”! Inteligente e culto o amigo sabia lá no íntimo de si mesmo que estava projetando sua própria condição de ser consciente e reflexivo, desejando partilhá-la com o animal ao qual dedicava grande estima! Embora não pudesse descartar a ideia de estar fantasiando, quis conhecer mais sobre a semântica da palavra “fidelidade” vulgarmente utilizada para caracterizar o comportamento do cão em relação ao seu dono. Propôs-se, então, a examinar mais profundamente o conceito em questão. E sobrestimando minha competência pediu-me que escrevesse algo a respeito. Fiz ver que ele mesmo, inteligente e perspicaz como era faria melhor do que eu o ensaio que me pedira. Mas, desatendendo à minha sugestão, o meu amigo colheu subsídios bibliográficos na Internet, vasculhou a Enciclopédia Britânica, do Oriente desencavou antigas tradições culturais e no Ocidente ressuscitou as lucubrações filosóficas dos existencialistas. Depois me passou o resultado da sua pesquisa sobre a natureza do comportamento fiel, insistindo no pedido que me fizera. Não tive como fugir e, à época, espremi os miolos para escrever alguma coisa a fim de atender ao seu pedido.
            Ao pesquisar os verbetes dicionarizados dos vocábulos fidelidade e lealdade percebi de chofre que embora tidos como sinônimos há uma diferença substancial entre ambos. Os dois implicam constância e firmeza nas posturas intelectuais, nas afeições e nos sentimentos; porém a ideia de fidelidade está mais comprometida com a exatidão na observância da verdade objetiva. É um conceito mais ligado à concordância com a razão.  Enquanto a lealdade se refere ao comportamento de uma pessoa em relação a outra, a uma instituição ou a uma crença. É um conceito mais ligado ao compromisso vinculado a preocupações éticas e implica na submissão ao objeto de um culto. Por isso mesmo, o desenho conceitual da lealdade é mais carregado de emoção e de influências culturais. Nesse contexto a prática religiosa cultiva nos crentes a lealdade a Deus. O comportamento leal admite inclusive a violação da lei orgânica que rege o Estado leigo quando esta fere a crença cultuada. Tomemos a prática religiosa como paradigmática da lealdade. Esta conduta é característica de uma práxis configurada como “devoçãoque implica na submissão total a uma entidade sobrenatural ou a uma pessoa, e não a um princípio racional de verdade. Por ai já se vê o envolvimento emocional do comportamento leal. Para tanto se requer a fé intransigente que dispensa qualquer explicação. Quando pratico a lealdade sou leal porque sou e pronto; distancio-me assim da fidelidade a qualquer princípio inteligível. Enquanto a fidelidade à verdade racional amplia a independência da escolha que se louva em critérios objetivos, e não em determinantes afetivos inconscientes, na prática da lealdade há uma defecção da liberdade pessoal quanto a decidir de acordo com critérios racionais, delineando-se a incondicionalidade da relação leal em que há sujeição do crente ao objeto de fé. Dir-se-ia que a fidelidade aos princípios racionais liberta, enquanto a lealdade às pessoas e instituições de fé escraviza ao império de uma autoridade absoluta, através de determinismos inconscientes. Isso não desqualifica a lealdade, porém a coloca num nível diferente daquele em que pontifica a fidelidade. Nessa perspectiva, a infidelidade redunda num descompromisso com a verdade racional, é a mãe do sofisma; se proposital é um comportamento reprovável, resume-se na mentira. Mas não se pode considerar infidelidade a mudança de comportamento decorrente da reinterpretação objetiva de uma mesma realidade à luz de novos elementos elucidativos, pois a fidelidade é o compromisso com a verdade objetiva e portanto, admite esta flexibilidade na medida em que se aprofunda o conhecimento dos fatos reais. A deslealdade, por outro lado é um “pecado”, sempre, enquanto se configura como desrespeito a uma dignidade intocável (Deus, ou senhor). Disso tudo já se deduz, senso estrito, que a fidelidade, por definição, não pode se manifestar num animal irracional. Tanto a fidelidade como a lealdade exige adesão consciente; no primeiro caso mediante respeito a uma verdade racional, e no segundo por submissão consentida a uma verdade de fé.  Na ausência da consciência reflexiva (como é o caso destes animais) o que se poderia interpretar como lealdade é puro condicionamento psicobiológico.
            Voltando ao início do texto, a pergunta é: pode o animal irracional dar lição de fidelidade a um ser humano? Por definição, obviamente, não!
            O comentário do amigo sobre a docência do seu animalzinho de estimação entende-se (e disso sabia ele muito bem) como uma atribuição bondosa conferida ao comportamento do animal, associado aos mimos recebidos. Os animais de estimação ganham personalidade aos olhos dos donos. Eles passam a fazer parte do universo subjetivo dos seus amos e neste nível se transformam em entidades autônomas, assumindo a condição de alter ego no diálogo do dono consigo mesmo. E esta fantasia faz bem a ambos emocionalmente e até, por via de consequência, fisicamente, mas não muda a realidade. Não podemos negar aos animais irracionais a capacidade de sentir emoções primárias, como ter medo, sentir fúria ou bem estar. Mas não dispomos de elementos convincentes para atribuir-lhes sentimentos mais elaborados como o amor, o dever, a solidariedade, a fidelidade e a lealdade que demandam participação da consciência reflexiva. Embora os animais tenham comportamentos que podem simular tais sentimentos, estes (comportamentos) não passam de simples reflexos condicionados, a despeito do antropomorfismo linguístico frequentemente utilizado para defini-los. Não sendo reflexiva nem intencional no animal, a reciprocidade base psicológica de comportamentos analogicamente associados à fidelidade e à lealdade é apenas aparente. Todavia, é preciso reconhecer que o determinismo implícito no comportamento condicionado gera uma conduta até mais constante, porque não sofre as flutuações de uma relação interpessoal, livre. Aliás, considerando as diferenças assinaladas antes entre os vocábulos em discussão, o comportamento canino está mais próximo do conceito original de “lealdade” (que se hipoteca a um “senhor”), do que de “fidelidade” (pelo reconhecimento de um princípio objetivo de verdade).   
 Everaldo Lopes