Faz
algum tempo, um velho amigo de saudosa memória me disse como quem duvida, alimentando,
porém, a esperança de ser verdadeira a sua afirmação: “- Meu cachorrinho está me dando aulas de fidelidade em
tempo integral”! Inteligente e culto o amigo sabia lá no íntimo de
si mesmo que estava projetando sua própria condição de ser consciente e
reflexivo, desejando partilhá-la com o animal ao qual dedicava grande estima! Embora
não pudesse descartar a ideia de estar fantasiando, quis conhecer mais sobre a
semântica da palavra “fidelidade” vulgarmente utilizada para caracterizar o
comportamento do cão em relação ao seu dono. Propôs-se, então, a examinar
mais profundamente
o conceito em questão. E sobrestimando
minha competência pediu-me que
escrevesse algo a respeito. Fiz ver que ele mesmo, inteligente
e perspicaz como
era faria melhor do que
eu o ensaio que me
pedira. Mas, desatendendo à minha sugestão, o meu amigo colheu subsídios bibliográficos na Internet,
vasculhou a Enciclopédia Britânica, do Oriente desencavou antigas tradições
culturais e no Ocidente ressuscitou as lucubrações filosóficas dos existencialistas.
Depois me passou o resultado
da sua pesquisa sobre
a natureza do comportamento fiel,
insistindo no pedido que me fizera. Não tive como fugir e, à época, espremi os miolos para escrever alguma coisa
a fim de atender ao seu pedido.
Ao pesquisar os verbetes
dicionarizados dos vocábulos fidelidade e lealdade
percebi de chofre que embora tidos como
sinônimos há uma diferença substancial entre ambos.
Os dois implicam constância e firmeza nas posturas intelectuais, nas afeições e nos sentimentos; porém
a ideia de fidelidade
está mais comprometida com a exatidão na
observância da verdade objetiva. É um conceito mais ligado à concordância com a razão. Enquanto
a lealdade se refere ao comportamento
de uma pessoa em
relação a outra,
a uma instituição ou a uma crença. É um conceito mais ligado ao compromisso
vinculado a preocupações éticas e implica na submissão ao objeto de um culto. Por
isso mesmo,
o desenho conceitual
da lealdade é mais
carregado de emoção
e de influências culturais. Nesse
contexto a prática religiosa cultiva nos
crentes a lealdade a Deus. O comportamento leal admite inclusive a violação da lei orgânica que rege o Estado leigo quando esta fere
a crença cultuada. Tomemos a prática religiosa como
paradigmática da lealdade. Esta conduta é característica de uma práxis configurada como “devoção” que implica na submissão total
a uma entidade sobrenatural ou a uma pessoa, e não
a um princípio
racional de verdade. Por
ai já se vê
o envolvimento emocional do comportamento leal.
Para tanto se
requer a fé intransigente
que dispensa qualquer
explicação. Quando pratico a lealdade
sou leal porque
sou e pronto; distancio-me assim da fidelidade
a qualquer princípio
inteligível. Enquanto a fidelidade à
verdade racional
amplia a independência da escolha
que se louva em
critérios objetivos,
e não em
determinantes afetivos inconscientes, na prática
da lealdade há uma defecção da liberdade
pessoal quanto a decidir
de acordo com
critérios racionais,
delineando-se a incondicionalidade da relação
leal em que há sujeição do crente ao objeto de fé. Dir-se-ia que a fidelidade
aos princípios racionais
liberta, enquanto
a lealdade às pessoas e instituições de fé escraviza ao império
de uma autoridade absoluta, através
de determinismos inconscientes. Isso não desqualifica a lealdade, porém a
coloca num nível diferente daquele em que pontifica a fidelidade. Nessa
perspectiva, a infidelidade redunda num
descompromisso com a verdade
racional, é a mãe
do sofisma; se proposital é um comportamento reprovável, resume-se na mentira. Mas não se pode considerar
infidelidade a mudança
de comportamento decorrente da
reinterpretação objetiva de uma mesma realidade à luz de novos elementos
elucidativos, pois
a fidelidade é o compromisso
com a verdade
objetiva e portanto,
admite esta flexibilidade na medida em que se aprofunda o conhecimento dos
fatos reais. A deslealdade, por
outro lado
é um “pecado”,
sempre, enquanto se configura como desrespeito
a uma dignidade intocável (Deus, ou senhor). Disso tudo já se deduz, senso estrito, que a fidelidade, por definição, não pode se manifestar num animal
irracional. Tanto a fidelidade como a lealdade exige adesão consciente; no
primeiro caso mediante respeito a uma verdade racional, e no segundo por
submissão consentida a uma verdade de fé. Na ausência da consciência reflexiva (como é o
caso destes animais) o que se poderia interpretar como lealdade é puro condicionamento psicobiológico.
Voltando ao início do texto, a
pergunta é: pode o animal irracional dar lição de fidelidade a um ser humano? Por
definição, obviamente, não!
O comentário do amigo sobre a docência
do seu animalzinho de estimação entende-se (e disso sabia ele
muito bem) como uma atribuição
bondosa conferida ao comportamento do animal, associado aos mimos recebidos. Os
animais de estimação ganham personalidade aos olhos
dos donos. Eles
passam a fazer parte
do universo subjetivo
dos seus amos
e neste nível se transformam em entidades autônomas, assumindo a condição
de alter ego no diálogo do dono consigo mesmo. E
esta fantasia faz bem a ambos emocionalmente e até, por via de consequência,
fisicamente, mas não muda a realidade. Não
podemos negar aos animais
irracionais a capacidade de sentir
emoções primárias, como ter medo, sentir fúria ou bem estar. Mas não dispomos
de elementos convincentes para atribuir-lhes sentimentos
mais elaborados como
o amor,
o dever, a
solidariedade, a fidelidade e a lealdade
que demandam participação da consciência reflexiva. Embora os animais tenham comportamentos
que podem simular tais
sentimentos, estes (comportamentos) não passam de simples
reflexos condicionados, a despeito do antropomorfismo linguístico
frequentemente utilizado para defini-los. Não sendo reflexiva nem intencional no
animal, a reciprocidade base psicológica de comportamentos
analogicamente associados à fidelidade e
à lealdade é apenas aparente. Todavia, é preciso reconhecer que o determinismo implícito no comportamento condicionado
gera uma conduta até
mais constante,
porque não sofre as flutuações de uma relação interpessoal, livre. Aliás, considerando
as diferenças assinaladas antes entre os vocábulos em discussão, o
comportamento canino está mais próximo do conceito original de “lealdade” (que
se hipoteca a um “senhor”), do que de “fidelidade”
(pelo reconhecimento de um princípio objetivo de verdade).
Everaldo
Lopes