domingo, 23 de dezembro de 2012

Aventura humana III



A aventura humana começa com o exercício da consciência reflexiva através da qual o homem dá testemunho da aptidão de transcender-se. Esta disposição inata do ser consciente é incompatível com a lógica fenomênica do universo Newtoniano[1], mas concebível como um salto quântico. Não se tem uma explicação científica para a consciência reflexiva. Especulativamente, podemos avançar a ideia que a capacidade de transcender reflete a atemporalidade do Espírito, suposta entidade que é necessariamente imanente e transcendente à realidade universal[2]. Algo que precede o marco zero do tempo (o big bang), portanto, anterior à matéria. Entidade que permeia a matéria, conferindo-lhe sustentabilidade como seu fundamento ontológico, e através dela[3] se manifesta nas funções psíquicas superiores do homem (pensamento lógico, intuição criativa, amor à verdade, solidariedade). Preservando a unidade sintática, estas funções aparentemente isoladas asseguram a inteireza inconsútil do Espírito, fundamento de todas elas. Na realidade humana o espírito se revela, mas está impedido de manifestar-se em plenitude, dadas as possibilidades limitadas do servomecanismo biopsíquico pelo qual se denuncia.
Ainda especulativamente a intuição de uma cosmogênese monista, espiritualista, leva a crer que o Espírito, substrato da consciência, sobreviverá à morte biológica, embora escape à nossa compreensão o que virá depois. Numa abordagem compreensiva e coerente da condição humana, no fecho da evolução temporal o sujeito consciente deverá alcançar, na melhor hipótese, um “amoroso desapego à vida” ou, pelo menos, a “aceitação compassiva da realidade”. Porém nada se pode dizer com certeza sobre a projeção da existência além do limite temporal! Tudo neste campo são cogitações mais ou menos coerentes sustentadas pela fé nelas depositada.
            O homem teve e tem a possibilidade de fazer da Terra um paraíso. Tragicamente, porém, foi cedendo às falácias do ego ambicioso e dissimulado. E abriu espaço para a desordem, o sofrimento e a morte prematura. A catástrofe[4] que a Humanidade vive hoje é o resultado das más escolhas feitas pelo homem ao longo dos tempos. Ora, ingenuamente alienado (como Chapeuzinho Vermelho que, sem atentar para a própria vulnerabilidade, sorrindo e cantarolando, foi parar na barriga do lobo), ora levado pela má fé (como o próprio lobo, que para satisfazer sua gula seduziu a inocente menina).  Qualquer que seja a resposta do homem à sua circunstância, se estiver marcada pela alienação ou pela má fé, distorcerá o objetivo sublime da existência.
            Relembramos o que já dissemos em “Aventura humana I” sobre a capacidade de escolher responsavelmente. Aí começam as dificuldades de ordem ética. Para escolher é preciso ter critérios que não são dados pela Natureza e sim, definidos pelo próprio homem. É o homem que determina o ponto de corte das suas possibilidades. É o homem que cria as regras do seu comportamento, traçando um perfil ético no próprio vir a ser. Não seria uma afirmação leviana dizer-se que na condição humana[5] preexistem as coordenadas que podem demarcar o certo e o errado, o Bem e o Mal. Assim o homem faz jus a uma dignidade dupla. Pois além de “ser livre”, assume o dever de honrar com rigor a funcionalidade destas coordenadas ao definir as regras para o monitoramento das próprias escolhas. Para fazê-lo responsavelmente precisará dispor de referenciais confiáveis que para serem absolutamente fidedignos devem ser objetos de fé e não de razão. Uma vez que o conhecimento racional é contingente, não oferece segurança total.
 Face à falibilidade da condição humana, a existência será sempre um processo de risco. Nestes  termos ninguém jamais pode ter certeza absoluta sobre o acerto das próprias escolhas, mas é preciso que as faça e viva sua opção até as últimas conseqüências. Não há outra maneira de conhecer a verdade existencial senão experimentando-a. E, então, no momento da decisão, o homem corre o risco total, sem garantias de sucesso, e sem retorno. No fim, encontrará a plenitude ou o desespero. No fundo, tudo se resume em exercitar a liberdade, responsavelmente, na autodeterminação do ser pessoal. E isto envolve, necessariamente, a coragem de ser.
 A fé é um dom que não se pode impor; não obstante, existencialmente, a confiança (fé) na Providência Divina continua sendo o único refúgio para todas as incertezas do homem na sua finitude desamparada. Quem dela não participa deverá assumir o ônus de uma atitude estoica diante dos percalços da vida e da fragilidade existencial.
No plano evolutivo do Universo, a aventura humana representa a transição entre os determinismos físico-químicos e biológicos inconscientes, e as escolhas conscientes livres e responsáveis que devem contribuir para o arremate criativo da realidade universal.
Everaldo Lopes


[1] Concebido como fenômenos físicos  reduzidos aos movimentos de partículas materiais  movidas pela força da gravidade sob a influência de leis mecânicas.
[2] Se a matéria não se auto criou e não tem a força da subsistência, um Dinamismo absoluto eternamente criativo (o Espírito) deve permeá-la necessariamente, sendo-lhe misteriosamente imanente e transcendente.
[3] Sistema Nervoso Central
[4] Desunião, sofrimento, morte prematura
[5] Caracterizada pela consciência reflexiva, racional  e volitiva livre e responsável