A aventura humana começa com
o exercício da consciência reflexiva através da qual o homem dá testemunho da
aptidão de transcender-se. Esta disposição inata do ser consciente é
incompatível com a lógica fenomênica do universo Newtoniano[1], mas
concebível como um salto quântico. Não se tem uma explicação científica para a
consciência reflexiva. Especulativamente, podemos avançar a ideia que a
capacidade de transcender reflete a atemporalidade do Espírito, suposta
entidade que é necessariamente imanente e transcendente à realidade universal[2]. Algo
que precede o marco zero do tempo (o big bang), portanto, anterior à matéria.
Entidade que permeia a matéria, conferindo-lhe sustentabilidade como seu
fundamento ontológico, e através dela[3] se manifesta
nas funções psíquicas superiores do homem (pensamento lógico, intuição
criativa, amor à verdade, solidariedade). Preservando a unidade sintática, estas
funções aparentemente isoladas asseguram a inteireza inconsútil do Espírito,
fundamento de todas elas. Na realidade humana o espírito se revela, mas está impedido
de manifestar-se em plenitude, dadas as possibilidades limitadas do
servomecanismo biopsíquico pelo qual se denuncia.
Ainda especulativamente a intuição de
uma cosmogênese monista, espiritualista, leva a crer que o Espírito, substrato
da consciência, sobreviverá à morte biológica, embora escape à nossa
compreensão o que virá depois. Numa abordagem compreensiva e coerente da condição
humana, no fecho da evolução temporal o sujeito consciente deverá alcançar, na
melhor hipótese, um “amoroso desapego à vida” ou, pelo menos, a “aceitação
compassiva da realidade”. Porém nada se pode dizer com certeza sobre a projeção
da existência além do limite temporal! Tudo neste campo são cogitações mais ou
menos coerentes sustentadas pela fé nelas depositada.
O
homem teve e tem a possibilidade de fazer da Terra um paraíso. Tragicamente,
porém, foi cedendo às falácias do ego ambicioso e dissimulado. E abriu espaço
para a desordem, o sofrimento e a morte prematura. A catástrofe[4] que a
Humanidade vive hoje é o resultado das más escolhas feitas pelo homem ao longo
dos tempos. Ora, ingenuamente alienado (como Chapeuzinho Vermelho que, sem
atentar para a própria vulnerabilidade, sorrindo e cantarolando, foi parar na barriga
do lobo), ora levado pela má fé (como o próprio lobo, que para satisfazer sua
gula seduziu a inocente menina).
Qualquer que seja a resposta do homem à sua circunstância, se estiver
marcada pela alienação ou pela má fé, distorcerá o objetivo sublime da
existência.
Relembramos
o que já dissemos em “Aventura humana I” sobre a capacidade de escolher responsavelmente.
Aí começam as dificuldades de ordem ética. Para escolher é preciso ter
critérios que não são dados pela Natureza e sim, definidos pelo próprio homem.
É o homem que determina o ponto de corte das suas possibilidades. É o homem que
cria as regras do seu comportamento, traçando um perfil ético no próprio vir a
ser. Não seria uma afirmação leviana dizer-se que na condição humana[5] preexistem
as coordenadas que podem demarcar o certo e o errado, o Bem e o Mal. Assim o
homem faz jus a uma dignidade dupla. Pois além de “ser livre”, assume o dever
de honrar com rigor a funcionalidade destas coordenadas ao definir as regras para
o monitoramento das próprias escolhas. Para fazê-lo responsavelmente precisará
dispor de referenciais confiáveis que para serem absolutamente fidedignos devem
ser objetos de fé e não de razão. Uma vez que o conhecimento racional é
contingente, não oferece segurança total.
Face à falibilidade da condição humana, a
existência será sempre um processo de risco. Nestes termos ninguém jamais
pode ter certeza absoluta sobre o acerto das próprias escolhas, mas é preciso
que as faça e viva sua opção até as últimas conseqüências. Não há outra maneira
de conhecer a verdade existencial senão experimentando-a. E, então, no momento
da decisão, o homem corre o risco total, sem garantias de sucesso, e sem
retorno. No fim, encontrará a plenitude ou o desespero. No fundo, tudo se
resume em exercitar a liberdade, responsavelmente, na autodeterminação do ser
pessoal. E isto envolve, necessariamente, a coragem de ser.
A fé é um dom que não se pode impor; não
obstante, existencialmente, a confiança (fé) na Providência Divina continua
sendo o único refúgio para todas as incertezas do homem na sua finitude
desamparada. Quem dela não participa deverá assumir o ônus de uma atitude
estoica diante dos percalços da vida e da fragilidade existencial.
No plano evolutivo do
Universo, a aventura humana representa a transição entre os determinismos
físico-químicos e biológicos inconscientes, e as escolhas conscientes livres e responsáveis
que devem contribuir para o arremate criativo da realidade universal.
Everaldo Lopes
[1]
Concebido como fenômenos físicos reduzidos
aos movimentos de partículas materiais
movidas pela força da gravidade sob a influência de leis mecânicas.
[2] Se
a matéria não se auto criou e não tem a força da subsistência, um Dinamismo
absoluto eternamente criativo (o Espírito) deve permeá-la necessariamente,
sendo-lhe misteriosamente imanente e transcendente.
[3] Sistema
Nervoso Central
[4]
Desunião, sofrimento, morte prematura
[5] Caracterizada
pela consciência reflexiva, racional e
volitiva livre e responsável