segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Tributo a Raul de Leoni II

TRIBUTO AS RAUL DE LEONI II 
Longa é a caminhada humana, nesse vale de lágrimas... No começo, o homem carrega uma alma simples, amante do amor, pura como o mármore intocado pelo cinzel do escultor. Um passado emoldurado pela ingenuidade infantil e um futuro antecipado pelos sonhos de nobres grandes feitos. Foi assim que todos começamos a nossa jornada, “Dentro da formidável ilusão / Da fantasmagoria universal”.[1]

“Eu era uma alma fácil e macia,
Claro e sereno espelho matinal
Que a paisagem das cousas refletia,
Com a lucidez cantante do cristal.

Tendo os instintos por filosofia,
Era um ser mansamente natural,
Em cuja meiga ingenuidade havia
Uma alegre intuição universal.

Entretinham-me as ricas tessituras
Das lendas de ouro, cheias de horizontes
E de imaginações maravilhosas.

E eu passava entre as cousas e as criaturas,
Simples como a água lírica das fontes
E puro como o espírito das rosas. ”[2]
 
  Mas o contato diuturno com as realidades vivas, dentro da dinâmica complexa dos desejos, paixões e ambições humanas, acaba apagando o sonho virginal dos jovens anos, ou desfigurando-os. Ninguém escapa à tentação do egoísmo, triste ranço animal que embaça a alma humana...

“Não se pode sonhar impunemente
Um grande sonho pelo mundo afora,
Porque o veneno humano não demora
Em corrompê-lo na íntima semente...

Olhando no alto a árvore excelente,
Que os frutos de ouro esplêndidos enflora,
O sonhador não vê, e até ignora
A cilada rasteira da Serpente.

Queres sonhar? Defende-te em segredo.
E lembra, a cada instante e a cada dia,
O que sempre acontece e aconteceu:

Prometeu e o abutre no rochedo,
O Calvário do Filho de Maria
E a cicuta que Sócrates bebeu! ”[3]

  Entre os extremos, o cósmico e o espiritual, a consciência divaga... o homem cria teorias e procura abrigo nos ideais ilibados, na expectativa de encontrar uma saída para as antinomias que encerra no seu ser dividido.
A própria consciência se reconhece como uma brecha no universo sensível, um “nada” criativo, potencialidade, berço de possibilidades que só se atualizarão numa construção existencial. Neste contexto o homem se esforça na tentativa de elaborar seu próprio perfil. Movido por necessidades espirituais imperiosas, faz suas próprias regras, e, por suposto, assume-as, responsavelmente...

“Para possuíres a filosofia
Das cousas como um cético risonho
Cheio de uma bondade comovida,
É preciso que tenhas algum dia
Escapado da vida para o sonho
E voltado do sonho para a vida.

Procura o espaço livre e as macias alfombras
E vive sem pensar! Basta que o sentimento
Te una à Vida e a renove, quando em quando...
As idéias enganam como as sombras,
São as sombras das cousas flutuando
No espelho mágico do teu pensamento...

Pratica os teus sentidos nobremente
Na sensação das cousas belas e harmoniosas
E assim educarás melhor uma alma linda,
Parecida com tudo que sentires!

Por que esse desespero de que falas?
Se não crês bem nas cousas nem descrês.
Ama-as embora, porque o teu prazer
Lhes  dará a mais viva das verdades!
Não é preciso crer nas cousas, basta amá-las,
Sendo que amar é muito mais que crer...

Cada alma, sem sentir e sem querer,
Fia através dos dias, urde, tece
O seu destino – a inextrincável teia!
Vive, faz e desfaz, passa e se esquece...
Mas os frutos que colhe em sua messe
São bem filhos dos germes que semeia...

A alma da gente muda tanto nesta vida,
Na sua história escrita sobre a areia,
Que um dia, ao recordar-se de si mesma,
Numa hora esquecida,
Já nem se reconhece mais e sente,
Estranhamente
Que tudo aquilo que ela está lembrando,
São recordações de uma alma alheia...

Teu horóscopo está em ti, seja onde for
- Sem que o saibas ou o pesquises -
Na sombra do teu ser mais íntimo, interior,
Como presos ao solo áspero e duro,
Estão bem dentro da alma das sementes,
Na natureza eterna das raízes,
O gosto original de cada fruto
E o perfume sutil de cada flor...

Escuta: Pelo bem que tu fizeres
Espera todo o mal que não farias!
Essa é a mais triste das filosofias
Que aprendi entre os homens e as mulheres!

Queres saber a minha história?
Não na tenho de memória...
Não tem fim, não teve fundo:
É a lenda da humanidade,
É própria história do Mundo!.”[4]

Em busca de um aval definitivo para as normas que adota ao definir o seu perfil existencial, o homem nutre o anelo de uma garantia absoluta, para suas decisões magnas. Antes encontrava respaldo no testemunho dos Profetas, pela fé; hoje, espera alcançá-lo (o respaldo) no conhecimento objetivo da Natureza, pela Ciência. Corre, então, empós as promessas do Cientificismo, de tudo explicar, desvendando os mistérios do ser. Mas passada a euforia de cada descoberta, descortina um novo horizonte de mistérios, e vivencia desapontado as dúvidas perturbadoras da alma humana...
 “Ator e espectador do drama humano,
- Homem, Filho do Bem, Filho do Mal -
Sei de tudo, desci ao fundo amargo
Das idéias, das cousas, das criaturas.
E dentro da tragédia universal,
Fui anjo, fui réptil e o vôo largo
Das águias suspendi pelas alturas
Eternas das idéias infinitas.

Sofri as leis humanas e divinas...
Pensei, senti, vivi profundamente
Todas as grandes realidades vivas
E encontrei as verdades cristalinas
Do universo visível e aparente
No coração das horas fugitivas...

Nada escapou à minha penetrante
Impressão da Existência. Vivi tudo!...
E tudo que eu vivi, do claro ao misterioso,
Foi destilado na palheta latejante
E passou pelo filtro íntimo e mudo
De um alto pensamento generoso.

Despindo as formas leves e vaidosas,
Rasgando as superfícies ilusórias,
A minha alma alongou suas raízes
Insinuantes, sutis, silenciosas
Pelas intimidades infelizes
De tudo quanto viu dentro da Vida.

E cresceu, floresceu, sorvendo gota a gota
Essa seiva de fel, ácida e ingrata
Que há no fundo sombrio das Verdades
E dentro dos seus frutos coloridos,
Que um meigo vento lírico desata,
Ainda há vivos venenos diluídos,
Que o puro azul dos céus serenos ameniza.

Sei de tudo! Conheço a vida a fundo!
Sei o que quer dizer uma existência humana!...
O meu sereno ser já não se engana
Com cousa alguma dentro deste mundo.

Entretanto, não sei... Cada manhã que nasce,
Cheia de virgindade e adolescência,
Eu saio para a Vida,
Levando uma alma nova e um sorriso na face,
Sentindo, vagamente, que esse dia
É o meu primeiro dia de Existência.”[5]
O poeta não pode ocultar um certo aturdimento resultante da visão crítica de sua realidade inacabada, cheia de contrastes. Porém, debruçado sobre o abismo do seu próprio ser ambíguo, não se deixa abater pelo pessimismo e pela desesperança. No mesmo poema, contorna essa visão melancólica, e finaliza, decantando a vida como um renascer permanente.
  Escudado, assim, por esse ânimo combativo, o Leoni enfrenta o seu dia a dia, cheio de uma vontade otimista amparada na esperança obstinada, sem ocultar o caráter virtual da existência...

“O Homem desperta e sai cada alvorada,
Para o acaso das cousas... e à saída
Leva uma crença vaga, indefinida
De achar o ideal nalguma encruzilhada...

As horas morrem sobre as horas... Nada!
E ao Poente, o Homem, com a sombra recolhida
Volta pensando: Se o Ideal da Vida
Não veio hoje virá na outra jornada...

Ontem hoje, amanhã, depois e, assim,
Mais ele avança, mais distante é o fim,
Mais se afasta o horizonte sobre a esfera:
E a vida passa... efêmera e vazia:
Um adiamento eterno que se espera,
Numa eterna esperança que se adia...”[6]
Everaldo Lopes
(Continua)


[1]  Raul de Leoni -  “Instinto”, in Luz Mediterrânea
[2]  Raul de Leoni – “Adolescência”, in Luz Mediterrânea
[3]  Raul de Leoni – “Aos que sonham”  in Luz Mediterrânea
[4] Raul de Leoni – “Do meu Evangelho”, in Luz Mediterrânea
[5] Raul de Leoni – “Gaia Ciência”, in Luz Mediterrânea
[6] Raul de Leoni – “Legenda das horas”, in  Luz Mediterrânea