Teoricamente, a Vontade de Deus pode
ser entendida como um dinamismo absoluto eternamente criativo. Como tal é, necessariamente,
atuante em tudo que existe, dado que o universo espaço-temporal não subsiste
por si só, depende de um absoluto criador. Como criatura, o homem alcançou,
todavia, a condição de ser consciente. Distingue-se pela capacidade de saber
que existe e de integrar-se em sua circunstância, contextualizando-se nela para
compor um todo significativo. Paralelamente, percebe a transcendentalidade das
funções psíquicas superiores que lhe asseguram a condição humana, o que abre espaço
para admitir como certo, por um ato de fé, a presença de algo mais no mundo,
que ultrapassa o tempo e o espaço. Dessa forma, desvela-se uma dimensão mística
na qual se espelha a relação entre a imanência do homem (criatura) e a
transcendência absoluta de Deus (criador).
O tema
- a Vontade de Deus - suscita
muitos questionamentos. Afinal, como podemos reconhecer a Vontade Divina no
nosso vir a ser pessoal? Como salvaguardar a liberdade humana (de criatura) no
seio da liberdade absoluta (do Criador)? Nessa questão, em particular, podemos
dizer apenas que o homem tem a liberdade de um pássaro engaiolado; é livre, não
obstante suas limitações como criatura. É evidente que a Vontade Divina é
soberana, mas o homem pode optar por uma das alternativas que Ela oferece para a solução dos problemas
pendentes. Chega-se ao mesmo destino por caminhos diferentes, cabendo ao homem escolher
um deles. Na prática, a identificação final da Vontade Divina está associada ao
reconhecimento e adoção de um valor universal que define a escolha pessoal e se
torna realidade operacional ao ser incorporado no processo em curso do próprio
vir a ser consciente de cada um. Assim, a Vontade de Deus está presente na
História, através do exercício da vontade humana que escolhe e realiza um valor
coerente com a evolução da comunidade dos homens. Nesse contexto, é a parceria
humano-divina que trabalha misteriosamente os acontecimentos dos quais somos
atores. Este trabalho é misterioso, por sua própria natureza. No processo
evolutivo, a presença do absoluto criador se manifesta pela integração dos
níveis cada vez mais complexos da realidade: o da natureza inanimada, o da
biosfera, o psicológico, o social, o cultural e o espiritual. Essa sintonia é
tão complexa que só se explica pela indissociabilidade (incompreensível para a
razão humana) da transcendência divina do Criador e da imanência do ser em
geral e do homem em particular. É impossível definir com precisão os pontos de contato verticais e horizontais entre
todos os níveis da realidade em cada momento do processo que resulta, finalmente, num determinado acontecimento.
Cada evento envolve sempre interações
fenomênicas desconhecidas que foram, todavia, decisivas para o acontecimento em
foco. Elas (as interações desconhecidas)
constituem os elementos imponderáveis que permeiam os antecedentes das ocorrências
que se sucedem no vir a ser do real concreto. A imponderabilidade de algumas
causas possíveis se esconde na limitação do conhecimento humano ao qual escapam
coincidências sutis só identificáveis no exame a posteriori do processo que
culminou em determinado desfecho. A contemporaneidade de dois ou mais
acontecimentos que contribuem para uma ocorrência pode ser atribuída ao mero acaso, ou ser vinculada
a uma intervenção misteriosa intencional de Deus na parceria humano-divina. Eu
prefiro a segunda alternativa arriscando-me às controvérsias inerentes à
questão do destino versus liberdade individual. Neste terreno movediço Calvino
enveredou pelos caminhos da predestinação, enquanto Tomaz de Aquino ficou com a
tese do livre arbítrio. Entre esses posicionamentos eu me sinto mais à vontade
enfatizando a parceria extraordinária, mas necessária, do homem e Deus, que
conta com o livre arbítrio da criatura humana. O diálogo honesto inerente a esta
parceria conduz às grandes decisões humanas, interferindo no rumo da história.
Neste diálogo assimétrico, Deus (transcendência absoluta) misteriosamente
consubstancial com o homem (imanência) é o mago da transubstancialidade,
que opera no ser humano o milagre do entendimento, da compaixão, do amor e da
solidariedade, biologicamente inexplicáveis.
Ressalvada a soberania de
Deus, é necessário registrar que a parceria humano-divina é responsável pelo
processo histórico pondo em cheque o papel específico do homem na Evolução do
Universo. Este papel conta com sua ação criativa no sentido de estruturar a
comunidade humana universal. Justificar tudo que acontece, sob a alegação de que
expressa a Vontade de Deus é um sinal da demissão humana, incompatível com a
autonomia inerente ao livre arbítrio da criatura consciente. Precisamos,
portanto, assumir nossa cota de responsabilidade histórica ao agir ou não no
nosso devir em benefício da convivência humana comunitária. Esta forma de encarar
a Vontade divina, reservando ao homem a avaliação das situações em evolução
para agir coerentemente em prol dos valores universais, diferencia a fé crítica
da que se configura como uma fé ingênua;
esta simplesmente crê. Caso em que a análise processual da realidade vai além
da razão lógica para dar lugar à intuição,
complementando assim a alquimia da espiritualidade humana. Não se trata,
portanto, de irracionalizar a fé, porém de tornar-nos sensíveis a uma
interpretação intuitiva das manifestações de Deus na sua parceria preciosa e
magnânima com o homem. No fundo, sobressai a convicção de que a paz e
felicidade verdadeiras tão almejadas só
serão alcançadas pela submissão à Vontade Divina. O que não significa,
necessariamente, escravidão a um determinismo fatal, considerando a
possibilidade humana de dizer não às alternativas que se apresentam além daquela escolhida, ética e solidariamente.
O
ponto de partida do comportamento crítico é a capacidade de bem utilizar a
inteligência lógica para definir, classificar e lidar com as mais variadas
situações psicossociais e ambientais dentro das quais assumimos a decisão de escolher.
Sabendo que a engrenagem multifatorial da realidade, extensiva a todo universo encerra
a complexa integração holística do ser
humano empenhado na tarefa de empreender a cada instante um todo significativo
que envolve a consciência e o mundo.
Na
malha da realidade, são muitos os fatores que contribuem para cada situação
específica; e entre eles estão os nossos próprios interesses pessoais que devem
ser julgados e disciplinados com imparcialidade tendo em vista a consistência do
todo social e ambiental no qual nos inserimos. Nessa perspectiva emerge a
intuição de que tudo tem a ver com tudo.
O que foi dito até agora evidencia que,
dadas a complexidade e abrangência do real concreto, nem mesmo o trabalho
analítico mais exaustivo deixa à mostra com clareza meridiana a complexidade da
situação analisada. Assim, nossas
escolhas guardam sempre elementos desconhecidos inevitáveis. No fim, sobram
dúvidas residuais irredutíveis que associam a qualquer decisão um risco presumível.
Este é o momento em que a intuição é decisiva para o reconhecimento da Vontade
divina consubstanciada na convicção de estarmos tomando a decisão correta. Um
momento místico no qual a fé preenche os vazios da alma. Na vivência resultante
o que percebemos, porém, é apenas um movimento subjetivo que se resolve numa
atribuição de valor, decisiva para definir o critério que determina o
comportamento final. Para sustentar o equilíbrio comportamental nestes termos é
preciso manter uma relação muito íntima com a consciência pura, anterior à vivência
de experiências pessoais, numa intimidade de fé com o próprio Deus, fonte de
verdade e amor. No fundo isso acaba sendo uma relação profunda do indivíduo consigo
mesmo, na qual a loucura da fé cura a loucura do absurdo vivencial de ser para a
morte. A razão temporal, encolhida, treme impotente a um canto do espaço subjetivo
indelineável, e a fé procura afirmar sem restrições um apoio transcendental na estrutura
profunda do “eu” inquieto, que lhe garanta a convicção de abraçar uma realidade
imarcescível[1]
muito além das verdades empíricas mutáveis conhecidas. Neste clima, como diria
Unamuno, “crer é criar o que não se vê”, no caso, construindo um ancoradouro na
profundeza abissal da psique em busca da paz e felicidade que só uma verdade
absoluta proporciona mediante opção de fé.
Obviamente, a Vontade de Deus é normativa, consagrando
os valores universais que, necessariamente, são os que guardam o caráter
divino. Todavia, esta normatividade oferece alternativas mais amplas do que as sugeridas
pelo conjunto de regras que compõem os códigos da ética oficial. A corresponsabilidade
social embasada no amor-caridade envolve recursos que propiciam um perfil
comportamental mais generoso e fiel a um todo significativo, do que o
comportamento eticamente codificado. O amor ao próximo amplia ao infinito as
possibilidades de interação humana. Para o místico, a harmonia desta interação denuncia a
compatibilidade entre a vontade humana e a Vontade Divina. Não há conflito entre ambas
quando elas se dimensionam reciprocamente como expressões do amor universal. Na
ausência deste, o máximo da harmonia a que chegamos decorre do diálogo ético
entre os homens num esforço louvável para manter a dignidade das relações
interindividuais, salvaguardando o respeito mútuo. Na prática, a Vontade Divina
poderá ser interpretada eticamente, mas sua verdadeira natureza se revela no
exercício amoroso da solidariedade humana comunitária.
Everaldo Lopes