domingo, 22 de maio de 2016

A Vontade de Deus



         Teoricamente, a Vontade de Deus pode ser entendida como um dinamismo absoluto eternamente criativo. Como tal é, necessariamente, atuante em tudo que existe, dado que o universo espaço-temporal não subsiste por si só, depende de um absoluto criador. Como criatura, o homem alcançou, todavia, a condição de ser consciente. Distingue-se pela capacidade de saber que existe e de integrar-se em sua circunstância, contextualizando-se nela para compor um todo significativo. Paralelamente, percebe a transcendentalidade das funções psíquicas superiores que lhe asseguram a condição humana, o que abre espaço para admitir como certo, por um ato de fé, a presença de algo mais no mundo, que ultrapassa o tempo e o espaço. Dessa forma, desvela-se uma dimensão mística na qual se espelha a relação entre a imanência do homem (criatura) e a transcendência absoluta de Deus (criador).
O tema  - a Vontade de Deus -  suscita muitos questionamentos. Afinal, como podemos reconhecer a Vontade Divina no nosso vir a ser pessoal? Como salvaguardar a liberdade humana (de criatura) no seio da liberdade absoluta (do Criador)? Nessa questão, em particular, podemos dizer apenas que o homem tem a liberdade de um pássaro engaiolado; é livre, não obstante suas limitações como criatura. É evidente que a Vontade Divina é soberana, mas o homem pode optar por uma das alternativas  que Ela oferece para a solução dos problemas pendentes. Chega-se ao mesmo destino por caminhos diferentes, cabendo ao homem escolher um deles. Na prática, a identificação final da Vontade Divina está associada ao reconhecimento e adoção de um valor universal que define a escolha pessoal e se torna realidade operacional ao ser incorporado no processo em curso do próprio vir a ser consciente de cada um. Assim, a Vontade de Deus está presente na História, através do exercício da vontade humana que escolhe e realiza um valor coerente com a evolução da comunidade dos homens. Nesse contexto, é a parceria humano-divina que trabalha misteriosamente os acontecimentos dos quais somos atores. Este trabalho é misterioso, por sua própria natureza. No processo evolutivo, a presença do absoluto criador se manifesta pela integração dos níveis cada vez mais complexos da realidade: o da natureza inanimada, o da biosfera, o psicológico, o social, o cultural e o espiritual. Essa sintonia é tão complexa que só se explica pela indissociabilidade (incompreensível para a razão humana) da transcendência divina do Criador e da imanência do ser em geral e do homem em particular. É impossível definir com precisão  os pontos de contato verticais e horizontais entre todos os níveis da realidade em cada momento do processo  que resulta, finalmente, num determinado acontecimento. Cada evento envolve sempre  interações fenomênicas desconhecidas que foram, todavia, decisivas para o acontecimento em foco.  Elas (as interações desconhecidas) constituem os elementos imponderáveis que permeiam os antecedentes das ocorrências que se sucedem no vir a ser do real concreto. A imponderabilidade de algumas causas possíveis se esconde na limitação do conhecimento humano ao qual escapam coincidências sutis só identificáveis no exame a posteriori do processo que culminou em determinado desfecho. A contemporaneidade de dois ou mais acontecimentos que contribuem para uma ocorrência  pode ser atribuída ao mero acaso, ou ser vinculada a uma intervenção misteriosa intencional de Deus na parceria humano-divina. Eu prefiro a segunda alternativa arriscando-me às controvérsias inerentes à questão do destino versus liberdade individual. Neste terreno movediço Calvino enveredou pelos caminhos da predestinação, enquanto Tomaz de Aquino ficou com a tese do livre arbítrio. Entre esses posicionamentos eu me sinto mais à vontade enfatizando a parceria extraordinária, mas necessária, do homem e Deus, que conta com o livre arbítrio da criatura humana. O diálogo honesto inerente a esta parceria conduz às grandes decisões humanas, interferindo no rumo da história. Neste diálogo assimétrico, Deus (transcendência absoluta) misteriosamente consubstancial com o  homem  (imanência) é o mago da transubstancialidade, que opera no ser humano o milagre do entendimento, da compaixão, do amor e da solidariedade, biologicamente inexplicáveis.
                     Ressalvada a soberania de Deus, é necessário registrar que a parceria humano-divina é responsável pelo processo histórico pondo em cheque o papel específico do homem na Evolução do Universo. Este papel conta com sua ação criativa no sentido de estruturar a comunidade humana universal. Justificar tudo que acontece, sob a alegação de que expressa a Vontade de Deus é um sinal da demissão humana, incompatível com a autonomia inerente ao livre arbítrio da criatura consciente. Precisamos, portanto, assumir nossa cota de responsabilidade histórica ao agir ou não no nosso devir em benefício da convivência humana comunitária. Esta forma de encarar a Vontade divina, reservando ao homem a avaliação das situações em evolução para agir coerentemente em prol dos valores universais, diferencia a fé crítica  da que se configura como uma fé ingênua; esta simplesmente crê. Caso em que a análise processual da realidade vai além da razão lógica  para dar lugar à intuição, complementando assim a alquimia da espiritualidade humana. Não se trata, portanto, de irracionalizar a fé, porém de tornar-nos sensíveis a uma interpretação intuitiva das manifestações de Deus na sua parceria preciosa e magnânima com o homem. No fundo, sobressai a convicção de que a paz e felicidade  verdadeiras tão almejadas só serão alcançadas pela submissão à Vontade Divina. O que não significa, necessariamente, escravidão a um determinismo fatal, considerando a possibilidade humana de dizer não às alternativas que se apresentam  além daquela escolhida, ética e solidariamente.
         O ponto de partida do comportamento crítico é a capacidade de bem utilizar a inteligência lógica para definir, classificar e lidar com as mais variadas situações psicossociais e ambientais dentro das quais assumimos a decisão de escolher. Sabendo que a engrenagem multifatorial da realidade, extensiva a todo universo encerra a complexa  integração holística do ser humano empenhado na tarefa de empreender a cada instante um todo significativo que envolve a consciência e o mundo.
      Na malha da realidade, são muitos os fatores que contribuem para cada situação específica; e entre eles estão os nossos próprios interesses pessoais que devem ser julgados e disciplinados com imparcialidade tendo em vista a consistência do todo social e ambiental no qual nos inserimos. Nessa perspectiva emerge a intuição de que tudo tem a ver com tudo.
         O que foi dito até agora evidencia que, dadas a complexidade e abrangência do real concreto, nem mesmo o trabalho analítico mais exaustivo deixa à mostra com clareza meridiana a complexidade da situação  analisada. Assim, nossas escolhas guardam sempre elementos desconhecidos inevitáveis. No fim, sobram dúvidas residuais irredutíveis que associam a qualquer decisão um risco presumível. Este é o momento em que a intuição é decisiva para o reconhecimento da Vontade divina consubstanciada na convicção de estarmos tomando a decisão correta. Um momento místico no qual a fé preenche os vazios da alma. Na vivência resultante o que percebemos, porém, é apenas um movimento subjetivo que se resolve numa atribuição de valor, decisiva para definir o critério que determina o comportamento final. Para sustentar o equilíbrio comportamental nestes termos é preciso manter uma relação muito íntima com a consciência pura, anterior à vivência de experiências pessoais, numa intimidade de fé com o próprio Deus, fonte de verdade e amor. No fundo isso acaba sendo uma relação profunda do indivíduo consigo mesmo, na qual a loucura da fé cura a loucura do absurdo vivencial de ser para a morte. A razão temporal, encolhida, treme impotente a um canto do espaço subjetivo indelineável, e a fé procura afirmar sem restrições um apoio transcendental na estrutura profunda do “eu” inquieto, que lhe garanta a convicção de abraçar uma realidade imarcescível[1] muito além das verdades empíricas mutáveis conhecidas. Neste clima, como diria Unamuno, “crer é criar o que não se vê”, no caso, construindo um ancoradouro na profundeza abissal da psique em busca da paz e felicidade que só uma verdade absoluta proporciona mediante opção de fé.
Obviamente, a Vontade de Deus é normativa, consagrando os valores universais que, necessariamente, são os que guardam o caráter divino. Todavia, esta normatividade oferece alternativas mais amplas do que as sugeridas pelo conjunto de regras que compõem os códigos da ética oficial. A corresponsabilidade social embasada no amor-caridade envolve recursos que propiciam um perfil comportamental mais generoso e fiel a um todo significativo, do que o comportamento eticamente codificado. O amor ao próximo amplia ao infinito as possibilidades de interação humana. Para o  místico, a harmonia desta interação denuncia a compatibilidade entre a vontade humana e  a Vontade Divina. Não há conflito entre ambas quando elas se dimensionam reciprocamente como expressões do amor universal. Na ausência deste, o máximo da harmonia a que chegamos decorre do diálogo ético entre os homens num esforço louvável para manter a dignidade das relações interindividuais, salvaguardando o respeito mútuo. Na prática, a Vontade Divina poderá ser interpretada eticamente, mas sua verdadeira natureza se revela no exercício amoroso da solidariedade humana comunitária.       
 Everaldo Lopes


[1] Incorruptível, inalterável (Aurélio)