sábado, 15 de abril de 2017

O tempo e a existência



Habitualmente vivemos o tempo como se ele fora algo independente de nossa realidade pessoal. Por isso o tempo nos dá a impressão de ser uma alteridade capaz de interagir conosco favorável ou desfavoravelmente, impondo-nos situações boas ou más, respectivamente. Mas o tempo, reconhecido como condição do nosso vir a ser existencial,  é apenas uma  dimensão de nós mesmos e como tal dele podemos dispor livremente. Nossas decisões é que moldam o que acontece agora e acontecerá nas horas e dias que estão por vir. O tempo não tem independência e muito menos autonomia para mudar o rumo das nossas vidas. As mudanças decorrem de nossas ações e omissões no curso da existência que construímos dia após dia. Só assim, encarnando o próprio  tempo conseguimos  viver em plenitude as experiências específicas dos momentos de alegria, tristeza, criatividade ou abulia, vivenciando-as com sabedoria e bom senso. Não cabe, pois, dizer  que a alegria dura pouco ou que a tristeza é duradoura, porque uma e outra não são entidades autônomas; elas são consequências do nosso modo de conduzir a própria existência, conscientemente, como seres temporais que somos, com nossas virtudes e defeitos. A alegria e a tristeza se atualizam através da realidade psicossocial pela qual  somos todos responsáveis; portanto, o tempo é uma dimensão indispensável porém não determinante do que fazemos. Todavia, vivendo as nossas decisões, eternizamos o momento das experiências vividas uma vez que o vetor temporal é unidirecional, apontando sempre para o futuro. O tempo não volta atrás. Por isso o passado é radical; algo acontecido há alguns segundos é tão passado quanto o é o domínio dos dinossauros sobre a Terra (ocorrido há 230 milhões de anos). Diante da imutabilidade do que passou sobressai a importância de saber lidar com as lembranças boas ou más; sobretudo para evitar a influência das  más (lembranças) no dinamismo do presente. Contra o mau uso destas lembranças  opõe-se a convicção de que somos seres imperfeitos, porém perfectíveis. Nesse contexto, ser misericordioso consigo mesmo não é negar o mal praticado, mas conviver com a lembrança desagradável da má ação, reconhecendo a própria participação condenável, sem esquecer, porém, de que é capaz de aperfeiçoar-se; para não correr o risco de envolver-se com a repulsa ao mal praticado no passado ao ponto de “jogar fora a criança com a água do banho”; ou seja livrar-se da lembrança desagradável, empobrecendo a capacidade criativa do próprio vir a ser perfectível. As boas recordações são sempre estimulantes e potencializam a criatividade. As más, obviamente, deprimem e não produzem estímulos criativos e positivos; mas  serão úteis se estivermos alerta para analisar o comportamento lembrado num contexto novo, valendo-nos da experiência anterior para reelaborar a conduta atual nas circunstâncias presentes.
Como depositário de entidades abstratas, das quais apenas se percebem as consequências, a tendência do homem que não analisa o próprio vir a ser é o empoderamento da lembrança de sua má ação que ganha o poder de sugar sua atenção (do homem que não se analisa), fortalecendo e eternizando o impacto negativo produzido (por sua má ação), o que deforma a visão  que tem de si mesmo e do mundo.
Analogamente, apegado aos padrões da juventude, o homem pode encarar a anosidade comparando-a aos parâmetros estéticos da mocidade; então, a máscara da velhice torna-se um ícone disforme cujas características predispõem a expectativas desanimadoras, empobrecendo a vivência do agora.   O idoso precisa reelaborar sua autoavaliação estética a cada década para não perder o “time” de sua existência; ele é tão mais autônomo e esperançoso, quanto mais integrado na realidade que inclui a própria idade, e menos submisso à influência dos parâmetros estéticos de décadas anteriores.
Suponho que os antecessores do H. Sapiens viviam cada momento muito mais integralmente. Suas lembranças de conquistas coletivas[1] solidárias na salvaguarda da sobrevivência enriqueciam a sabedoria inconsciente de comportamentos voltados para a defesa da própria vida. Não havia tempo para trelas subjetivas fantasiosas. O desenvolvimento do mundo subjetivo coincidiu com a revolução agrícola e a domesticação de animais que antes eram caçados sob a tensão das necessidades alimentares. O domínio da lavoura e a criação de reses (para o consumo humano) libertaram o homem do trabalho exaustivo, permanente, de catador de frutos e caçador, do que dependia até então para sobreviver; depois destas conquistas o homem passou a ter mais tempo para as atividades subjetivas. Só então foi possível a revolução cognitiva que permitiu ao H. Sapiens falar de coisas que só existem na sua imaginação. Começaram então a pesar no vir a ser humano as contradições[2] da existência.  Dessa forma o H sapiens passou a conferir status de realidade a fantasias deificadoras ou demoníacas capazes de influir no seu próprio vir a ser. A capacidade de viver realidades ficcionais facilitou, também, a cooperação de centenas e milhares de seres humanos em torno de ideias muitas delas impulsionadoras do processo civilizatório.
Durante séculos predominou uma concepção teocêntrica da humanidade, ensejando cogitações metafísicas sobre o homem, sua origem, missão histórica e transcendental. Seguiu-se uma visão antropocêntrica da história humana mediante a valorização da participação do homem na construção da própria existência, a partir da compreensão de  que o tempo é uma dimensão do seu próprio ser no mundo. Isso implica, a nosso ver, numa perspectiva espiritualista representada pela intervenção divina (princípio criador)[3] que assegura a manutenção da existência através do dinamismo interno do próprio homem.

Everaldo Lopes



[1] Os primeiros homens viviam em grupos solidários para garantir a própria sobrevivência.
[2] Desejar ser eterno e saber-se finito; desejar tudo conhecer e reconhecer que terá sempre um saber limitado; desejar poder tudo e perceber as próprias limitações.
[3] Da mesma forma que o cosmo não se criou a si mesmo, nenhuma criatura, inclusive o homem, tem o poder de subsistir por conta própria.