Habitualmente vivemos o tempo como se ele fora algo independente de nossa
realidade pessoal. Por isso o tempo nos dá a impressão de ser uma alteridade
capaz de interagir conosco favorável ou desfavoravelmente, impondo-nos situações
boas ou más, respectivamente. Mas o tempo, reconhecido como condição do nosso
vir a ser existencial, é apenas uma dimensão de nós mesmos e como tal dele podemos
dispor livremente. Nossas decisões é que moldam o que acontece agora e
acontecerá nas horas e dias que estão por vir. O tempo não tem independência e
muito menos autonomia para mudar o rumo das nossas vidas. As mudanças decorrem
de nossas ações e omissões no curso da existência que construímos dia após dia.
Só assim, encarnando o próprio tempo conseguimos viver em plenitude as experiências
específicas dos momentos de alegria, tristeza, criatividade ou abulia, vivenciando-as
com sabedoria e bom senso. Não cabe, pois, dizer que a alegria dura pouco ou que a tristeza é duradoura,
porque uma e outra não são entidades autônomas; elas são consequências do nosso
modo de conduzir a própria existência, conscientemente, como seres temporais
que somos, com nossas virtudes e defeitos. A alegria e a tristeza se atualizam
através da realidade psicossocial pela qual
somos todos responsáveis; portanto, o tempo é uma dimensão indispensável
porém não determinante do que fazemos. Todavia, vivendo as nossas decisões, eternizamos
o momento das experiências vividas uma vez que o vetor temporal é
unidirecional, apontando sempre para o futuro. O tempo não volta atrás. Por
isso o passado é radical; algo acontecido há alguns segundos é tão passado
quanto o é o domínio dos dinossauros sobre a Terra (ocorrido há 230 milhões de
anos). Diante da imutabilidade do que passou sobressai a importância de saber
lidar com as lembranças boas ou más; sobretudo para evitar a influência
das más (lembranças) no dinamismo do
presente. Contra o mau uso destas lembranças opõe-se a convicção de que somos seres
imperfeitos, porém perfectíveis. Nesse contexto, ser misericordioso consigo
mesmo não é negar o mal praticado, mas conviver com a lembrança desagradável da
má ação, reconhecendo a própria participação condenável, sem esquecer, porém,
de que é capaz de aperfeiçoar-se; para não correr o risco de envolver-se com a
repulsa ao mal praticado no passado ao ponto de “jogar fora a criança com a
água do banho”; ou seja livrar-se da lembrança desagradável, empobrecendo a
capacidade criativa do próprio vir a ser perfectível. As boas recordações são
sempre estimulantes e potencializam a criatividade. As más, obviamente,
deprimem e não produzem estímulos criativos e positivos; mas serão úteis se estivermos alerta para analisar
o comportamento lembrado num contexto novo, valendo-nos da experiência anterior
para reelaborar a conduta atual nas circunstâncias presentes.
Como depositário de entidades abstratas, das quais apenas se percebem
as consequências, a tendência do homem que não analisa o próprio vir a ser é o
empoderamento da lembrança de sua má ação que ganha o poder de sugar sua
atenção (do homem que não se analisa), fortalecendo e eternizando o impacto
negativo produzido (por sua má ação), o que deforma a visão que tem de si mesmo e do mundo.
Analogamente, apegado aos padrões da juventude, o homem pode encarar a
anosidade comparando-a aos parâmetros estéticos da mocidade; então, a máscara
da velhice torna-se um ícone disforme cujas características predispõem a
expectativas desanimadoras, empobrecendo a vivência do agora. O idoso precisa reelaborar sua autoavaliação
estética a cada década para não perder o “time” de sua existência; ele é tão
mais autônomo e esperançoso, quanto mais integrado na realidade que inclui a
própria idade, e menos submisso à influência dos parâmetros estéticos de
décadas anteriores.
Suponho que os antecessores do H. Sapiens viviam cada momento muito
mais integralmente. Suas lembranças de conquistas coletivas[1]
solidárias na salvaguarda da sobrevivência enriqueciam a sabedoria inconsciente
de comportamentos voltados para a defesa da própria vida. Não havia tempo para trelas
subjetivas fantasiosas. O desenvolvimento do mundo subjetivo coincidiu com a
revolução agrícola e a domesticação de animais que antes eram caçados sob a
tensão das necessidades alimentares. O domínio da lavoura e a criação de reses (para
o consumo humano) libertaram o homem do trabalho exaustivo, permanente, de
catador de frutos e caçador, do que dependia até então para sobreviver; depois
destas conquistas o homem passou a ter mais tempo para as atividades
subjetivas. Só então foi possível a revolução cognitiva que permitiu ao H.
Sapiens falar de coisas que só existem na sua imaginação. Começaram então a
pesar no vir a ser humano as contradições[2]
da existência. Dessa forma o H sapiens
passou a conferir status de realidade a fantasias deificadoras ou demoníacas
capazes de influir no seu próprio vir a ser. A capacidade de viver realidades
ficcionais facilitou, também, a cooperação de centenas e milhares de seres
humanos em torno de ideias muitas delas impulsionadoras do processo
civilizatório.
Durante séculos predominou uma concepção teocêntrica da humanidade, ensejando
cogitações metafísicas sobre o homem, sua origem, missão histórica e
transcendental. Seguiu-se uma visão antropocêntrica da história humana mediante
a valorização da participação do homem na construção da própria existência, a
partir da compreensão de que o tempo é
uma dimensão do seu próprio ser no mundo. Isso implica, a nosso ver, numa
perspectiva espiritualista representada pela intervenção divina (princípio
criador)[3]
que assegura a manutenção da existência através do dinamismo interno do próprio
homem.
Everaldo Lopes
[1]
Os primeiros homens viviam em grupos solidários para garantir a própria
sobrevivência.
[2]
Desejar ser eterno e saber-se finito; desejar tudo conhecer e reconhecer que
terá sempre um saber limitado; desejar poder tudo e perceber as próprias
limitações.
[3]
Da mesma forma que o cosmo não se criou a si mesmo, nenhuma criatura, inclusive
o homem, tem o poder de subsistir por conta própria.