A consciência reflexiva é o
divisor de águas no curso da Evolução. Ela torna viável a possibilidade de
escolher, decidir e, finalmente, de agir coerentemente. Essa potencialidade
envolve a prática coordenada das funções psíquicas superiores[1]
do ser humano que revelam o estágio evolutivo mais avançado, em complexidade, do
sistema nervoso central. A partir de então o indivíduo evolui no sentido psicossocial
buscando a melhor organização social da coletividade humana. Dessa forma desvia-se
o vetor da Evolução até agora direcionado para o aperfeiçoamento biológico do
indivíduo. O objetivo passa a ser a elaboração de formas cada vez mais
sustentáveis de sociedade. Nesse ponto a Evolução ultrapassa o determinismo físico-químico
assumindo a intervenção do livre arbítrio, característica eminentemente humana.
O homem se constitui, portanto, num colaborador consciente e voluntário da
própria Evolução. A sequência representada pela escolha, decisão e ação
pertinente define uma maneira de ser, a existência[2]
que resulta de uma sucessão de escolhas,
confundindo-se com a manifestação da própria liberdade. Idealmente, estas
escolhas devem ser coerentes com um princípio diretor fonte de valores morais
que delimitam o exercício responsável da liberdade. Mas, na prática há
variações de comportamento concernentes à ideologia inerente ao princípio
diretor assumido, à visão objetiva da realidade e ao compromisso do homem com a
verdade. Por conseguinte o recém-nascido
da espécie Homo Sapiens sapiens deverá tornar-se homem mediante o processo de
individuação[3],
marcado por escolhas pessoais. Assim o homem não é um ser natural, mas um ser
de cultura. Ou seja, não há um modelo de homem na Natureza. Nessa perspectiva,
ao tomar decisões o homem se inventa e
dá consistência de verdade à sua criação (atualização da condição humana[4])
com o testemunho do comportamento pessoal. Isso implica na busca continuada,
nem sempre exitosa, de relações intersubjetivas talhadas pela solidariedade. Ao
longo da história, as escolhas felizes que satisfazem o objetivo dessa busca
constituem modelos culturais perseguidos voluntariamente como um ideal de
convivência. Assim sendo a perfectibilidade humana evolui das relações sociais
respeitosas às solidárias, fundamentadas no amor.
A
razão, a afetividade e a vontade são os recursos psíquicos fundamentais para a
construção da “existência”. Destarte, pelo pensamento o ser consciente
compreende o mundo, pela afetividade liga-se à sua circunstância mediante sentimentos
e emoções, e pela vontade (ânimo, desejo, empenho) prioriza a ação escolhida,
resultado da negociação, sob o signo da verdade, entre o pensamento (razão) e a
afetividade (sentimento) integrados na realização dos Princípios diretores do
vir a ser pessoal. Daí podermos dizer com propriedade que o “homem se inventa a
si mesmo” e por isso é responsável pelo que faz. Todavia o indivíduo não pode
ser original o tempo todo porque muitos comportamentos foram codificados
culturalmente antes do seu nascimento. Constituem hábitos e costumes,
condicionamentos, enfim, aos quais o indivíduo adere naturalmente durante o
processo de individuação. Todavia o padrão cultural cultivado pode ser
questionado e reformulado em qualquer tempo, tendo em vista uma visão mais ampla
do modo de ser-com-os-outros-no-mundo. Nessa situação o homem “se reinventa”
para atender a uma mundividência mais abrangente e o faz afirmando sua verdade ao
protagonizar o segmento histórico da Evolução. Sua participação é fundamental para o arremate
do processo de complexificação crescente desde a matéria primitiva caótica até
a vida consciente. Neste processo a essência do homem é o que ele consegue
fazer de si mesmo, através de suas escolhas e decisões. Em outras palavras, a
essência do homem é definida a partir de sua própria existência, o que
justifica a célebre conclusão de Sartre: “no homem a existência precede a
essência”, o inverso da concepção aristotélica sobre o que acontece nos seres
naturais. Diante de muitas possibilidades cada um decide conscientemente
atualizar esta ou aquela alternativa, e arca com as consequências de sua
decisão, tornando-se, portanto, responsável pelo que “é”. Essa peculiaridade especificamente
humana converge idealmente para a construção de uma comunidade solidária, a
única forma de tornar viável a espécie Homo Sapiens sapiens, “parte
da biosfera mais influenciada pelo universo do pensamento e pela atividade
mental consciente”[5] .
Como
foi dito antes, ao nascer o homem já encontra um ambiente cultural constituído por
usos e costumes para os quais o recém-chegado não contribuiu. Porém, mediante o
pensamento e sua capacidade criativa o ser consciente reflexivo transcende o
momento cultural em que está inserido podendo modifica-lo, modificando-se.
Percebendo melhor a complexidade histórica do seu momento existencial o
indivíduo pode criar novos esquemas para responder às situações existenciais conflitantes
promovendo melhores condições de interação social. Nesse sentido é legítimo
dizer-se que “pensar criativamente é transgredir”... é o passo inicial da
mudança dos comportamentos atuais para outros mais adequados à atualização da
condição humana. Numa perspectiva evolutiva, esse esforço criativo influi no
universo através de relações intersubjetivas que garantam a unidade social. A
sustentabilidade desta unidade exige interação responsável com a natureza,
fechando o ciclo de influências recíprocas entre o homem e o mundo. Afinal, o
cosmo toma consciência de si mesmo através do homem na mesma medida em que a
consciência reflexiva é a imagem especular peculiar de cada um de nós enquanto
somos uma extensão privilegiada do próprio cosmo. Ao lidar, consciente e
responsavelmente com a própria realidade, escolhendo o modo de ser mais
compatível com o pleno desenvolvimento psicossocial, o homem interage, também,
com o mundo, influindo no equilíbrio ecológico. É de certa forma terrificante
para o homem assumir essa responsabilidade sem outro apoio senão o dos seus
próprios recursos finitos. Este é um sentimento aflitivo para os agnósticos que
não dão crédito a uma transcendência absoluta unificadora e significativa na
qual possam encontrar apoio moral para as suas escolhas. Realmente o mundo não
“tem sentido sem o nosso olhar.” Mas não é “este” olhar que dá sentido ao
mundo, e sim, a capacidade deste olhar de reconhecer no mundo a ordem emanada
de uma transcendência absoluta - a “Consciência Universal”. Em se tratando de
um absoluto, a Consciência Cósmica (universal) pode ser fundamentada teoricamente
por uma especulação metafísica, mas dificilmente escapa de ganhar um colorido
místico no imaginário coletivo. A Física Quântica dá suporte teórico às
cogitações racionais que conduzem à necessidade lógica de uma Consciência
Universal, mas para grande parte dos seres pensantes ela é ainda apenas objeto
de fé.
O
tema é deveras fascinante e comporta desdobramentos teóricos e práticos. Muitos
destes desdobramentos estão sendo abordados neste Blog numa linguagem leiga, despretensiosa.
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Everaldo
Lopes
[1]
Consciência reflexiva, razão, sentimento (Disposição afetiva em relação a
coisas de ordem moral ou intelectual) e vontade.
[2]
Modo de ser peculiar do homem.
[3] Processo por meio do qual uma pessoa se torna consciente de sua individualidade,
de acordo com C.G. Jung (1875-1961)
[4]
Ser consciente e responsável
[5]
Pe. Teilhard de Chardin (Arqueólogo, antropólogo e Filósofo)