Desvio da maturidade pessoal
O comportamento de quem não
reconhece os próprios limites é inconsequente e ridículo, ao mesmo tempo. A
farsa se revela quando o protagonista desta incoerência supervaloriza-se, minimizando
o compromisso de solidariedade necessária ao convívio ético da coletividade
humana. Uma pessoa com essa característica acaba malversando suas
potencialidades sociais através de
manifestações que não retratam a simplicidade dos sentimentos autênticos
de fraternidade e liberdade dignificantes do ser humano. Embalada pela ambição
de “ser mais”, ela tenta esconder as próprias limitações, e recorre à manipulação de seus
pares para obter deles a aprovação. Seu objetivo maior é passar uma autoimagem valorizada mais sólida
e virtuosa do que na realidade é. Tal pessoa pode até não ter consciência da
própria má fé, sendo seu procedimento autopromocional resultado de uma visão
infantil das relações sociais; por isso mesmo quando falha na sua realização
pessoal ela se queixa da falta de colaboração dos circunstantes; frequentemente
arrepende-se das próprias escolhas, e lamenta-se
por não haver sido orientada em tempo hábil para agir no sentido de obter o
sucesso desejado; está, sempre, a explicar-se ou a justificar-se, deslocando para
longe de si a responsabilidade pelo insucesso.
Nunca se sabe o que tal
pessoa pretende com seu discurso:
transmitir o que diz, explicitamente, ou escamotear algo inaceitável que tenta
esconder. Ela se inclui entre as que não suportam a própria carência e insistem
em confundir fantasia e realidade nos seus projetos de vida, esperando que os
outros aceitem naturalmente seu descompromisso com a realidade.
Este perfil além de
risível e patético é profundamente
desagradável para os circunstantes, colegas ou familiares que desejem levar a
sério uma relação intersubjetiva sincera. O convívio prolongado com esta pessoa
pode se tornar um desafio para os mais próximos empenhados na construção de uma
intimidade confiável, porque se lhes exigirá, a todo instante, desconsiderar o equívoco
proposto pelo outro. Submeter os circunstantes a esse constrangimento é já um
desrespeito à sua integridade intelectual e moral. Pior é que a tentativa de desmascarar a farsa,
certamente daria início a uma discussão interminável da qual o farsante subtrai
a objetividade de um julgamento honesto para encobrir o próprio erro. Faz-se
necessária muita disciplina interior para não denunciar o logro da pessoa dissimulada,
e não repudiá-la de pronto, jogando fora suas virtudes juntamente com as cavilações.
Ela é uma mistura esquisita de carência
ousada na prática de manipulações improvisadas em arrebatamentos românticos que
se desfazem, no convívio subsequente ao primeiro encontro efusivo. Esta mescla
de tendências mal articuladas condiciona contrastes inevitáveis. A incoerência é
a marca registrada desse comportamento. Não é raro, por exemplo, ver a pessoa dissimulada
humilhar um subalterno ou mesmo um “igual” depois de participar (?), piamente, de um ritual
comunitário na Igreja que frequenta; propalar ideal elevado, mas fracassar em
realizá-lo, atribuindo o insucesso, tal qual uma criança, à
falta de colaboração dos circunstantes, nunca a si mesma. É possível que sofra
ao tomar consciência da própria incoerência. Mesmo assim não nos deixa ajudá-la
porque a sua vaidade não lhe permite abandonar os próprios enganos, preferindo pousar
de rebelde a confirmá-los publicamente. Mas, tão pouco, se pode odiá-la porque, eventualmente, tem
gestos de doação que por vezes refletem um cuidado genuíno com o próximo; embora,
torne-se invasiva da autonomia do outro pela insistência autoritária no gesto
de ofertar algo a alguém, a título de ajuda. Resistente à aceitação dos seus
limites, essa pessoa não consegue dosar
nas suas manifestações os componentes racional e emocional. Isto não a ajuda a
construir uma cosmovisão dentro da qual se realizem, por excelência, todas as
potencialidades humanas. A personalidade inconsequente luta para edificar uma existência significativa,
mas falha por conta do seu comportamento incongruente. Para ser autêntico alguém
precisa viver o sentido que dá à própria vida na convergência de todas as virtualidades
da alma (racional, sentimental, estética e ética), uma elaboração difícil para
quem cede à ilusão de ser mais do que realmente é. Na esteira desta trajetória ela
não consegue largar pelo caminho desejos
interditos pelo exercício coerente da consciência reflexiva e vai caminhando
entre o ser e o nada, subestimando a
própria malevolência, com os olhos
postos em objetivos inalcançáveis. Nesta caminhada cada passo pretende ser uma
conquista, mas a cada instante um escorrego revela a farsa encenada. Escapar
desse risco custa uma ascese laboriosa que depende, fundamentalmente, da
coragem de ser, no caso, mascarada pelo desejo incontrolável de autovalorização
e prestígio pessoal.
É óbvio que para o ser
humano, a consciência dos limites pessoais é dolorosa e exige saber praticar a
liberdade, responsavelmente, assumindo o
risco de errar no encaminhamento do próprio vir a ser; demanda o reconhecimento
do erro eventualmente praticado
voltando atrás para corrigi-lo se possível. Eis o sinete da existência
autêntica. Entende-se desta forma o porquê algumas pessoas se escondem em estereótipos
culturais ou transferem para outrem a responsabilidade dos seus insucessos. Esse
comportamento reflete o medo de ser livre que também sepulta a própria
originalidade. Então, para compensar, criam-se fantasias gratas à vaidade de
exibir uma imagem valorizada, embora falsa, marcada pela inautenticidade. Diante
do desejo imenso de sucesso um recurso frequente para suprir a própria
incompetência é o apelo infantil aos poderes mágicos de rituais obsessivos. Obviamente,
este recurso não se confunde com a vivência da unidade mística do absoluto
intangível, única abertura salutar para a solução das antinomias existenciais
que a razão não pode resolver sozinha. Nesta
perspectiva, a unidade mística do absoluto repousa na lógica complexa que rege
a integração de tudo que existe, na qual se anulam todas as diferenças, e torna-se
transparente que tudo tem a ver com tudo. Este vislumbre racional abre as
portas para a fé no criador e na providência divina.
Na plenitude da maturidade pessoal a verdadeira atitude mística não se propõe a
pedir favores, consiste, sim, na doação de cada um à realização do plano de
Deus, atitude em que se afirma a transcendentalidade do todo absoluto. Processualmente,
essa entrega se confunde com o apelo dos
simples ou dos sábios para o encontro definitivo do homem com seu alter ego,
com o seu Deus inconsciente. A fé que esse processo exige implica em cultivar uma
ingenuidade adulta, com a seriedade de
um crítico realista. Ela (a fé) é necessária para transcender o absurdo lógico
de um absoluto inexplicável pela razão prática, para escapar do absurdo
existencial (desnaturante) de ser para a morte ou para nada. A fé repousa na ingenuidade
necessária para deixar-nos invadir pela vivência numinosa do absoluto cifrado
no UNIVERSO. Perseguindo o mesmo objetivo, as Religiões se esforçam para concentrar
todo esforço catequético na promoção do encontro do homem consigo mesmo sob o
signo do sagrado. E isso faz sentido, demonstrando que a solução do problema humano se resume numa
experiência mística. Quem não tem a humildade necessária para prolongar os
próprios limites históricos numa realidade transtemporal inexplicável pela
razão, malversa cada vez mais a capacidade de construir um arremate existencial
definitivo por um ato de fé que cria aquilo em que se crê, mesmo sem entender.
Everaldo Lopes (1)