terça-feira, 5 de fevereiro de 2019


Desvio da maturidade pessoal
O comportamento de quem não reconhece os próprios limites é inconsequente e ridículo, ao mesmo tempo. A farsa se revela quando o protagonista desta incoerência supervaloriza-se, minimizando o compromisso de solidariedade necessária ao convívio ético da coletividade humana. Uma pessoa com essa característica acaba malversando suas potencialidades sociais através de  manifestações que não retratam a simplicidade dos sentimentos autênticos de fraternidade e liberdade dignificantes do ser humano. Embalada pela ambição de “ser mais”, ela tenta esconder as próprias  limitações, e recorre à manipulação de seus pares para obter deles a aprovação. Seu objetivo maior  é passar uma autoimagem valorizada mais sólida e virtuosa do que na realidade é. Tal pessoa pode até não ter consciência da própria má fé, sendo seu procedimento autopromocional resultado de uma visão infantil das relações sociais; por isso mesmo quando falha na sua realização pessoal ela se queixa da falta de colaboração dos circunstantes; frequentemente arrepende-se das próprias escolhas, e  lamenta-se por não haver sido orientada em tempo hábil para agir no sentido de obter o sucesso desejado; está, sempre, a explicar-se ou a justificar-se, deslocando para longe de si a responsabilidade pelo insucesso.
Nunca se sabe o que tal pessoa  pretende com seu discurso: transmitir o que  diz, explicitamente,  ou escamotear algo inaceitável que tenta esconder. Ela se inclui entre as que não suportam a própria carência e insistem em confundir fantasia e realidade nos seus projetos de vida, esperando que os outros aceitem naturalmente seu descompromisso com a realidade.
Este perfil além de risível e patético  é profundamente desagradável para os circunstantes, colegas ou familiares que desejem levar a sério uma relação intersubjetiva sincera. O convívio prolongado com esta pessoa pode se tornar um desafio para os mais próximos empenhados na construção de uma intimidade confiável, porque se lhes exigirá, a todo instante, desconsiderar o equívoco proposto pelo outro. Submeter os circunstantes a esse constrangimento é já um desrespeito à sua integridade intelectual e moral.  Pior é que a tentativa de desmascarar a farsa, certamente daria início a uma discussão interminável da qual o farsante subtrai a objetividade de um julgamento honesto para encobrir o próprio erro. Faz-se necessária muita disciplina interior para não denunciar o logro da pessoa dissimulada, e não repudiá-la de pronto, jogando fora suas virtudes juntamente com as cavilações. Ela é uma mistura esquisita  de carência ousada na prática de manipulações improvisadas em arrebatamentos românticos que se desfazem, no convívio subsequente ao primeiro encontro efusivo. Esta mescla de tendências mal articuladas condiciona contrastes inevitáveis. A incoerência é a marca registrada desse comportamento. Não é raro, por exemplo, ver a pessoa dissimulada humilhar um subalterno ou mesmo um “igual” depois  de participar (?), piamente, de um ritual comunitário na Igreja que frequenta; propalar ideal elevado, mas fracassar em realizá-lo, atribuindo o insucesso, tal qual uma criança,   à falta de colaboração dos circunstantes, nunca a si mesma. É possível que sofra ao tomar consciência da própria incoerência. Mesmo assim não nos deixa ajudá-la porque a sua vaidade não lhe permite abandonar os próprios enganos, preferindo pousar de rebelde a confirmá-los publicamente. Mas, tão pouco,   se pode odiá-la porque, eventualmente, tem gestos de doação que por vezes refletem um cuidado genuíno com o próximo; embora, torne-se invasiva da autonomia do outro pela insistência autoritária no gesto de ofertar algo a alguém, a título de ajuda. Resistente à aceitação dos seus limites, essa pessoa  não consegue dosar nas suas manifestações  os componentes  racional e emocional. Isto não a ajuda a construir uma cosmovisão dentro da qual se realizem, por excelência, todas as potencialidades humanas. A personalidade inconsequente luta  para edificar uma existência significativa, mas falha por conta do seu comportamento incongruente. Para ser autêntico alguém precisa viver o sentido que dá à própria vida na convergência de todas as virtualidades da alma (racional, sentimental, estética e ética), uma elaboração difícil para quem cede à ilusão de ser mais do que realmente é. Na esteira desta trajetória ela não  consegue largar pelo caminho desejos interditos pelo exercício coerente da consciência reflexiva e vai caminhando entre o ser e o  nada, subestimando a própria malevolência, com  os olhos postos em objetivos inalcançáveis. Nesta caminhada cada passo pretende ser uma conquista, mas a cada instante um escorrego revela a farsa encenada. Escapar desse risco custa uma ascese laboriosa que depende, fundamentalmente, da coragem de ser, no caso, mascarada pelo desejo incontrolável de autovalorização e prestígio pessoal.
É óbvio que para o ser humano, a consciência dos limites pessoais é dolorosa e exige saber praticar a liberdade, responsavelmente, assumindo  o risco de errar no encaminhamento do próprio vir a ser; demanda o reconhecimento do erro eventualmente praticado          voltando atrás para corrigi-lo se possível. Eis o sinete da existência autêntica. Entende-se desta forma o porquê algumas pessoas se escondem em estereótipos culturais ou transferem para outrem a responsabilidade dos seus insucessos. Esse comportamento reflete o medo de ser livre que também sepulta a própria originalidade. Então, para compensar, criam-se fantasias gratas à vaidade de exibir uma imagem valorizada, embora falsa, marcada pela inautenticidade. Diante do desejo imenso de sucesso um recurso frequente para suprir a própria incompetência é o apelo infantil aos poderes mágicos de rituais obsessivos.      Obviamente, este recurso não se confunde com a vivência da unidade mística do absoluto intangível, única abertura salutar para a solução das antinomias existenciais que a  razão não pode resolver sozinha. Nesta perspectiva, a unidade mística do absoluto repousa na lógica complexa que rege a integração de tudo que existe, na qual se anulam todas as diferenças, e torna-se transparente que tudo tem a ver com tudo. Este vislumbre racional abre as portas para a fé no criador e na providência divina.
 Na plenitude da maturidade pessoal  a verdadeira atitude mística não se propõe a pedir favores, consiste, sim, na doação de cada um à realização do plano de Deus, atitude em que se afirma a transcendentalidade do todo absoluto. Processualmente, essa entrega se confunde com  o apelo dos simples ou dos sábios para o encontro definitivo do homem com seu alter ego, com o seu Deus inconsciente. A fé que esse processo exige implica em cultivar uma ingenuidade adulta,  com a seriedade de um crítico realista. Ela (a fé) é necessária para transcender o absurdo lógico de um absoluto inexplicável pela razão prática, para escapar do absurdo existencial (desnaturante) de ser para a morte ou para nada. A fé repousa na ingenuidade necessária para deixar-nos invadir pela vivência numinosa do absoluto cifrado no UNIVERSO. Perseguindo o mesmo objetivo, as Religiões se esforçam para concentrar todo esforço catequético na promoção do encontro do homem consigo mesmo sob o signo do sagrado. E isso faz sentido, demonstrando que  a solução do problema humano se resume numa experiência mística. Quem não tem a humildade necessária para prolongar os próprios limites históricos numa realidade transtemporal inexplicável pela razão, malversa cada vez mais a capacidade de construir um arremate existencial definitivo por um ato de fé que cria aquilo em que se crê, mesmo sem entender.

                                               Everaldo Lopes (1)