sexta-feira, 8 de junho de 2012

Sensualidade, amor e sexo


O prazer dos sentidos se esgota na sua própria fugacidade, e escraviza por despertar a necessidade de repetir a experiência prazerosa. Tem suas raízes no egoísmo. E o ego insaciável coisifica o “outro” quando o procura como objeto do desejo numa abordagem puramente sensual. Isto significa destituir o “outro” da dignidade de que se reveste como ser humano. Comportamento equivocado não raro presente no desfrute do prazer sexual. Nesta perspectiva os indivíduos envolvidos ficam expostos à manipulação recíproca, mesmo quando haja a intenção de respeitarem-se. O respeito imposto pela vontade não é o mesmo que, originalmente, se manifesta como atributo inerente ao amor entre as pessoas. A consideração ao “outro”, forjada pela vontade disciplinada, em termos psicodinâmicos é um expediente para atenuar a inquietação ética, e não uma virtude. Além disso, a observância forçada de preceitos e regras nem sempre é suficiente para filtrar a perversidade do impulso egoico. Só a interação humana de gêneros, que represente uma relação interpessoal calorosa e criativa fundamento existencial do amor, garante a intersubjetividade respeitosa dos pares humanos ao se permitirem intimidades sensuais prazerosas. Na experiência amorosa, o prazer alcançado através da intimidade física é secundário. Quando os parceiros se procuram como pessoas, a experiência física revela-se apenas coadjuvante. Neste contexto a sensualidade em si mesma não é um fim, porém um meio de comunicação. O contrário de quando a aproximação do par humano não tem profundidade existencial e busca, freneticamente, a intimidade física... caso em que a formalidade afetiva se denuncia como um disfarce apenas do objetivo sensual prioritário. A prática da sensualidade sem amor é uma maneira grosseira de aproximar os indivíduos, que não deve ser confundida com a grandeza de uma relação amorosa autêntica. E a diferença não é apenas ética, mas também factual na medida em que havendo ternura e envolvimento afetivo o prazer é muito mais intenso do que o proporcionado pela intimidade apenas erótica.
            Na aproximação entre um homem e uma mulher, a procura do outro pode começar pelo desejo sensual, porém só se consolida pela riqueza afetiva e amadurecimento emocional das pessoas envolvidas.  Só o amor consegue integrar na libido o respeito pelo “outro”, configurando a legitimidade de uma intimidade física completa. E mesmo assim, este roteiro está sempre ameaçado pela demanda dos sentidos ávidos de prazer. É preciso vigiar. Por outro lado, a experiência sensual legitimada pelo amor pode ser empobrecida pelo zelo ético escrupuloso que suprime a liberdade criativa da libido. O equilíbrio é muito sutil. A moralidade formal suaviza o egoísmo com a prática disciplinada do respeito ao “outro”, mas não pode ser priorizada quando existe o amor verdadeiro, marcado em sua própria natureza pela estima e pelo respeito mútuo. Expressão emblemática desta verdade é a célebre afirmação de Santo Agostinho: “Ama e faze o que quiseres!”. Obviamente o Santo referia-se ao amor-caridade[1] respeitoso e responsável, liberto da tirania dos sentidos. Quando a moralidade do encontro não leva o sinete deste amor, mantém-se vivo o risco da satisfação egoísta da libido, ameaçando o altruísmo do verdadeiro sentimento amoroso... então, já não é lícito fazer tudo que se quer!
Diante do desejo egoico, avaro, a consciência equânime defronta uma alternativa... Negar radicalmente, por esforço da vontade, a satisfação do desejo que explode fora do contexto afetivo de sentimentos superiores, ou, na ausência destes, permitir-se arriscar atendê-lo, monitorando cuidadosamente a satisfação inerente mediante auto avaliação judiciosa e respeito ao livre consentimento esclarecido do outro! A segunda alternativa exige muita maturidade para não degenerar numa acomodação cínica. Mas uma análise mesmo superficial demonstra que a atitude radical inibidora, necessariamente moralista, não acrescenta nada ao indivíduo como pessoa, embora garanta o controle da libido. Sob este ponto de vista se torna um procedimento socialmente útil... porém frustra muitas vezes a promessa de um encontro existencial profundo, responsável, autêntico. É o que acontece quando a exclusão radical da experiência sensual interrompe a aproximação de parceiros potencialmente capazes de desenvolver um vínculo amoroso, embora ainda não experimentem um “nós” maiúsculo. Desde que resguardada a dignidade humana pelo consentimento desejado, livre e esclarecido de ambos, a satisfação da sensualidade entre parceiros adultos, não só enche de alegria as pessoas envolvidas, como faculta-lhes a oportunidade de virem a experimentar afeição, zelo e compaixão mútuos, consumando afinal a experiência do “nós”, essencialmente amorosa. A decisão de optar pela exclusão radical da intimidade promissora vincula-se geralmente à rigidez dos parceiros submissos aos preceitos morais inflexíveis de caráter religioso, para fugir à tortura íntima do sentimento de culpa.
            No nível da sensualidade, a disciplina do ego na satisfação dos parceiros sexuais é a marca inconfundível da dimensão humana. Seja a disciplina que emerge naturalmente do encontro amoroso, seja a resultante da intervenção do componente ético assumido livremente. Em qualquer dos casos, a condição humana exige que os parceiros do encontro sexual participem deste por inteiro (corpo e alma) livre, consciente e responsavelmente. Quando eles não estão pessoal e mutuamente ligados em prol do pleno bem estar recíproco, a relação equivale a uma masturbação a dois. A meia verdade afetiva numa relação sensual afunda na pobreza da realização pessoal de ambos os participantes do encontro.
Os sentidos são as lentes através das quais a subjetividade humana percebe o mundo circundante. São, portanto, instrumentos de comunicação que se priorizados em detrimento da integração intelectual, afetiva e volitiva das informações obtidas desservem a unidade existencial. E só o amor legítimo realiza esta integração. Portanto, não há realização existencial (pessoal) sem amor. A autonomia dos sentidos subverte a ordem dos valores que dignificam a condição humana fundamentada no exercício da consciência responsável. A relação interpessoal essencialmente amorosa capaz de dominar os sentidos externos, disciplinando a própria sensualidade caracteriza a legitimidade do encontro sexual entre os seres humanos.
Everaldo Lopes


[1] Termo escolhido pelos cristãos antigos para caracterizar o amor que move a vontade à busca efetiva do bem de outrem.