O prazer
dos sentidos se esgota na sua própria fugacidade,
e escraviza por despertar a necessidade de repetir a experiência prazerosa. Tem
suas raízes no egoísmo. E o ego insaciável coisifica o “outro” quando o procura
como objeto do desejo numa abordagem puramente sensual. Isto significa destituir
o “outro” da dignidade de que se reveste como ser humano. Comportamento
equivocado não raro presente no desfrute do prazer sexual. Nesta perspectiva os
indivíduos envolvidos ficam expostos à manipulação recíproca, mesmo quando haja
a intenção de respeitarem-se. O respeito imposto pela vontade não é o mesmo que,
originalmente, se manifesta como atributo inerente
ao amor entre as pessoas. A consideração
ao “outro”, forjada pela vontade disciplinada, em termos psicodinâmicos é um expediente
para atenuar a inquietação ética, e não uma virtude. Além disso, a observância
forçada de preceitos e regras nem sempre é suficiente para filtrar a
perversidade do impulso egoico. Só a interação
humana de gêneros, que represente uma
relação interpessoal calorosa e criativa fundamento existencial do amor, garante
a intersubjetividade respeitosa dos pares humanos ao se permitirem intimidades
sensuais prazerosas. Na experiência amorosa, o prazer
alcançado através da intimidade física é secundário. Quando os parceiros se
procuram como pessoas, a experiência física revela-se apenas coadjuvante. Neste
contexto a sensualidade em si mesma não é um fim, porém um meio de comunicação.
O contrário de quando a aproximação do par humano não tem profundidade
existencial e busca, freneticamente, a intimidade física... caso em que a formalidade afetiva se denuncia como um disfarce apenas do objetivo
sensual prioritário. A prática da sensualidade sem amor é uma maneira grosseira
de aproximar os indivíduos, que não deve ser confundida com a grandeza de uma
relação amorosa autêntica. E a diferença não é apenas ética, mas também factual
na medida em que havendo ternura e envolvimento afetivo o prazer é muito mais
intenso do que o proporcionado pela intimidade apenas erótica.
Na
aproximação entre um homem e uma mulher, a procura
do outro pode começar pelo desejo sensual,
porém só se consolida pela riqueza afetiva e amadurecimento emocional das
pessoas envolvidas. Só o amor consegue integrar
na libido o respeito pelo “outro”, configurando a legitimidade de uma intimidade
física completa. E mesmo assim, este roteiro está sempre ameaçado pela demanda
dos sentidos ávidos de prazer. É preciso vigiar. Por outro lado, a experiência sensual
legitimada pelo amor pode ser empobrecida pelo zelo ético escrupuloso que
suprime a liberdade criativa da libido. O equilíbrio é muito sutil. A
moralidade formal suaviza o egoísmo com a prática disciplinada do
respeito ao “outro”, mas não pode ser
priorizada quando existe o amor verdadeiro, marcado em sua própria natureza
pela estima e pelo respeito mútuo. Expressão emblemática desta verdade é a
célebre afirmação de Santo Agostinho: “Ama e faze o que quiseres!”. Obviamente
o Santo referia-se ao amor-caridade[1] respeitoso
e responsável, liberto da tirania dos
sentidos. Quando a moralidade do encontro não leva o sinete deste amor, mantém-se
vivo o risco da satisfação egoísta da libido, ameaçando o altruísmo do verdadeiro
sentimento amoroso... então, já não é lícito fazer tudo que se quer!
Diante do desejo egoico, avaro,
a consciência equânime defronta uma alternativa... Negar radicalmente, por
esforço da vontade, a satisfação do desejo
que explode fora
do contexto afetivo
de sentimentos superiores, ou, na ausência destes, permitir-se arriscar atendê-lo, monitorando
cuidadosamente a satisfação inerente mediante auto avaliação judiciosa e respeito
ao livre consentimento esclarecido do outro! A segunda alternativa exige muita
maturidade para não degenerar numa acomodação cínica. Mas uma análise mesmo
superficial demonstra que a atitude radical
inibidora, necessariamente moralista, não
acrescenta nada ao indivíduo como pessoa,
embora garanta o controle da libido. Sob
este ponto de
vista se torna
um procedimento socialmente útil... porém
frustra muitas vezes a promessa de um
encontro existencial profundo, responsável, autêntico. É o que acontece quando
a exclusão radical da experiência sensual interrompe a aproximação de parceiros
potencialmente capazes de desenvolver um vínculo amoroso, embora ainda não experimentem
um “nós” maiúsculo. Desde que resguardada a dignidade humana pelo consentimento
desejado, livre e esclarecido de ambos, a satisfação
da sensualidade entre parceiros adultos, não
só enche de alegria
as pessoas envolvidas, como faculta-lhes
a oportunidade
de virem a experimentar afeição, zelo e compaixão mútuos, consumando afinal a experiência do
“nós”, essencialmente amorosa. A decisão de optar pela exclusão radical da
intimidade promissora vincula-se geralmente à rigidez dos parceiros submissos aos
preceitos morais inflexíveis de caráter religioso, para fugir à tortura íntima do
sentimento de culpa.
No
nível da sensualidade, a disciplina do ego na satisfação dos parceiros sexuais
é a marca inconfundível da dimensão humana. Seja a disciplina que emerge
naturalmente do encontro amoroso, seja a resultante da intervenção do componente
ético assumido livremente. Em qualquer dos casos, a condição humana exige que os
parceiros do encontro sexual participem deste por inteiro (corpo e alma) livre,
consciente e responsavelmente. Quando eles não estão pessoal e mutuamente ligados
em prol do pleno bem estar recíproco, a relação equivale a uma masturbação a
dois. A meia verdade afetiva numa relação sensual afunda na pobreza da
realização pessoal de ambos os participantes do encontro.
Os sentidos são as lentes
através das quais a subjetividade humana percebe o mundo circundante. São,
portanto, instrumentos de comunicação que se priorizados em detrimento da
integração intelectual, afetiva e volitiva das informações obtidas desservem a
unidade existencial. E só o amor legítimo realiza esta integração. Portanto, não
há realização existencial (pessoal) sem amor. A autonomia dos sentidos subverte
a ordem dos valores que dignificam a condição humana fundamentada no exercício
da consciência responsável. A relação interpessoal essencialmente amorosa capaz
de dominar os sentidos externos, disciplinando a própria sensualidade caracteriza
a legitimidade do encontro sexual entre os seres humanos.
Everaldo
Lopes
[1]
Termo escolhido pelos cristãos antigos para caracterizar o amor que move a
vontade à busca efetiva do bem de outrem.