quarta-feira, 29 de julho de 2015

A experiência mística



Desde os tempos mais remotos de sua evolução o homem sente  necessidade de compreender o mundo e a si mesmo. Com esse objetivo empenha-se na busca de respostas para as interrogações que desafiam sua curiosidade. Ao longo do tempo criou enredos mitológicos explicativos, fez filosofia, metafísica, teologia, e mais recentemente espera que a ciência satisfaça seu desejo de desvendar os segredos da Natureza e da vida consciente. As realidades cósmica e humana o põem, respectivamente, diante da matéria em transformação permanente e de fenômenos abstratos como o pensamento e o amor-caridade[1] que transcendem os limites da experiência sensível.  Tudo isso perfaz uma complexidade difícil de penetrar que frustra os esforços da razão humana no sentido de alcançar uma explicação científica sobre  a origem do mundo físico e a natureza da consciência. A falta de um esclarecimento objetivo acerca destas questões abre espaço para conjecturas coerentes. Especulando sobre o acervo  das  informações que já possui, o pensador  sente-se autorizado a afirmar: o processo evolutivo da matéria desde o big bang se fez no sentido de uma “complexificação crescente”[2] que chegou ao seu mais alto nível na perfeição estrutural no Sistema Nervoso Central (SNC) do homem, tornando possível a manifestação da consciência. A ordem evolutiva desde as partículas subatômicas até a vida consciente pressupõe uma intenção (não há ordem sem intenção), e esta por sua vez só existe no âmbito da consciência que, portanto, no caso, teria de ser universal. Isso supõe a preexistência do espírito desde todo o sempre,  que finalmente se manifesta através do SNC objetivando no homem as funções psíquicas superiores (percepção, memória, atenção, raciocínio lógico etc.). Aliás, no monólogo dialogal do ser consciente, o caráter apriorístico conferido ao alter ego que reconhecemos como a “voz da consciência pessoal”, sugere uma transcendência absoluta implícita na experiência subjetiva.  A própria consciência, “atributo pelo qual o homem toma em relação ao mundo (e, posteriormente, em relação aos chamados estados interiores, subjetivos) aquela distância em que se cria a possibilidade de níveis mais altos de integração”[3] não se explicaria mediante reações físico químicas dos neurônios corticais, suposta sede da consciência.
Dotado de consciência e livre arbítrio como um prolongamento de sua evolução individual toca ao homem, agora, a responsabilidade de promover a organização social solidária da coletividade humana, envolvendo todos os homens. Fora disso a espécie Homo Sapiens não sobreviveria, e a própria Evolução interromper-se-ia. Dessa forma com o homem o vetor da Evolução desvia-se, obrigatoriamente, do aperfeiçoamento individual para a mais perfeita organização social.
Há exemplos de participação coletiva organizada em outras espécies animais notadamente entre os insetos. Essas experiências evolutivas que se caracterizam pela divisão do trabalho e certa hierarquia social demonstraram vantagens  incontestáveis para o processo evolutivo. Entre as espécies sociais não humanas prevalece, porém, um comportamento extremamente rígido o que as torna vulneráveis às variações ambientais. Falta-lhes a liberdade para criar e escolher comportamentos adequados de adaptação às mudanças que se sucedem. Ao contrário, a espécie humana privilegiada com a consciência, a razão e o livre arbítrio, ganhou flexibilidade comportamental, ampliando a capacidade de resolução dos problemas emergentes, inclusive, lançando mão da cooperação consciente entre os seus membros. Assim o homem se tornou capaz de superar eventuais dificuldades  intercorrentes no curso  do seu desenvolvimento. Valendo-se de respostas inteligentes é capaz  de trabalhar a Natureza para servir aos seus próprios interesses, e de criar mecanismos intermediários que garantam sua sobrevivência quando as condições ambientais forem hostis. Não é à toa que o Homo sapiens é a única espécie animal que sobrevive em todos os climas do Planeta. Mas esse poder lhe impôs, concomitantemente, a responsabilidade de assegurar a sustentabilidade da Terra, o seu lar. As especulações que vimos de fazer deixam claro que o destino da Evolução está agora entregue ao próprio homem que pode fazer da Terra um paraíso, ou destruí-la. Enorme responsabilidade cujo cumprimento demanda necessariamente uma postura de respeito à Natureza e solidariedade dos homens entre si. Mas para isso, como sujeito criativo e crítico  de suas próprias ações o homem enfrenta a dificuldade de existir harmonizando as dimensões intelectual e afetiva do seu comportamento.  Em outras palavras, ele é capaz de imaginar alternativas comportamentais inspiradas em desejos  conflitantes com a ordem natural e com sua própria  visão de mundo. Mas baseado em critérios éticos sente-se obrigado a dizer “não”  aos desejos que não se integram numa proposta existencial comunitária. E tropeça muitas vezes na responsabilidade que lhe toca de respeitar a Natureza e a própria integridade existencial. Em verdade, por ignorância ou pura indisciplina, nos dez milênios de História escrita há registros de que o homem tem poluído a Terra cada vez mais agressivamente e por conta disso já se  observam alterações climáticas importantes, bem como catástrofes ambientais que ameaçam a vida no planeta.
 A prática virtuosa é exigente, mas garante a tão sonhada paz interior. Sobrenadando as incertezas e as dúvidas angustiantes, a paz  existencial depende, em última análise, da disponibilidade de o sujeito consciente abraçar intelectual e afetivamente a transcendência universal   que se entremostra  na experiência subjetiva. Aliás, esta Transcendência  essencialmente criadora é a única forma de explicar a origem do cosmo e da consciência. Por isso tenho repetido, para estranheza de muitos, que a solução do problema humano é mística e não racional, embora reconheça a participação da razão em especulações filosóficas coerentes que apoiam indiretamente a postura mística[4]. Mas o homem não sente a plenitude existencial representada pelo alinhamento do pensamento e da subjetividade afetiva enquanto a experiência mística não alcança a proporção de uma paixão avassaladora. Só esta paixão o torna  pleno em si mesmo, tranquilo e feliz. A oração vazia desta experiência de plenitude não tranquiliza o espírito. No entanto,  insistindo na prece o homem espera vivenciar no mais íntimo da alma a ressonância do Deus criador que habita sua criatura. Insistindo na oração o crente espera, finalmente, abrir uma brecha na sua carapaça materialista para sentir os eflúvios do espírito eterno, mais íntimo do que o seu próprio ego. Compenetrado da expectativa do final apoteótico da  comunidade de todas as consciências em Deus, o homem aprofunda essa ideia numa experiência mística.   
Esse discurso ganha envergadura quando o ser humano se ressente da consciência angustiante de que tudo é provisório, reconhecendo a própria finitude que o faz refém de ameaça permanente à  sua integridade física e moral. Não é possível a descrição fenomênica da  vivência mística inspirada pela presença do Absoluto criador na sua criatura, mas pode-se afirmar que por seu caráter divinal ela é magnífica e inexcedível. Experimentando-a o homem realiza superlativamente a homeostase psicobiológica fruindo a verdadeira paz individual e social ainda na existência temporal. Empolgado pelo ideal social comunitário o indivíduo transcende-se para conviver  solidariamente com seu próximo; esquece as próprias carências doando-se à causa comum.   Levando essa realidade às últimas consequências cada um vive a esperança de gozar a realização cabal da comunidade dos homens na unidade transtemporal de Deus. Afirma essa comunhão e nela crê, vivendo-a como uma atitude filosófica consolidada na experiência mística.
Everaldo Lopes


[1] O amor que move a vontade à busca efetiva do bem de outrem.
[2] Tema tratado por Teilhard de Chardin em “O Fenômeno Humano”.
[3] Dicionário de Aurélio, 5ª edição
[4] Referente à transcendência da fé, da união com Deus: