Desde os tempos mais remotos de sua evolução o homem sente necessidade de compreender o mundo e a si
mesmo. Com esse objetivo empenha-se na busca de respostas para as interrogações
que desafiam sua curiosidade. Ao longo do tempo criou enredos mitológicos
explicativos, fez filosofia, metafísica, teologia, e mais recentemente espera
que a ciência satisfaça seu desejo de desvendar os segredos da Natureza e da
vida consciente. As realidades cósmica e humana o põem, respectivamente, diante
da matéria em transformação permanente e de fenômenos abstratos como o
pensamento e o amor-caridade[1]
que transcendem os limites da experiência sensível. Tudo isso perfaz uma complexidade difícil de
penetrar que frustra os esforços da razão humana no sentido de alcançar uma
explicação científica sobre a origem do
mundo físico e a natureza da consciência. A falta de um esclarecimento objetivo
acerca destas questões abre espaço para conjecturas coerentes. Especulando sobre
o acervo das informações que já possui, o pensador sente-se autorizado a afirmar: o processo
evolutivo da matéria desde o big bang se fez no sentido de uma “complexificação
crescente”[2]
que chegou ao seu mais alto nível na perfeição estrutural no Sistema Nervoso
Central (SNC) do homem, tornando possível a manifestação da consciência. A
ordem evolutiva desde as partículas subatômicas até a vida consciente pressupõe
uma intenção (não há ordem sem intenção), e esta por sua vez só existe no
âmbito da consciência que, portanto, no caso, teria de ser universal. Isso
supõe a preexistência do espírito desde todo o sempre, que finalmente se manifesta através do SNC objetivando
no homem as funções psíquicas superiores (percepção, memória, atenção,
raciocínio lógico etc.). Aliás, no monólogo dialogal do ser consciente, o
caráter apriorístico conferido ao alter ego que reconhecemos como a “voz da
consciência pessoal”, sugere uma transcendência absoluta implícita na
experiência subjetiva. A própria
consciência, “atributo pelo qual o homem toma em relação ao mundo (e,
posteriormente, em relação aos chamados estados interiores, subjetivos) aquela
distância em que se cria a possibilidade de níveis mais altos de integração”[3]
não se explicaria mediante reações físico químicas dos neurônios corticais,
suposta sede da consciência.
Dotado de consciência e livre arbítrio como um prolongamento de sua
evolução individual toca ao homem, agora, a responsabilidade de promover a
organização social solidária da coletividade humana, envolvendo todos os homens.
Fora disso a espécie Homo Sapiens não sobreviveria, e a própria Evolução interromper-se-ia.
Dessa forma com o homem o vetor da Evolução desvia-se, obrigatoriamente, do
aperfeiçoamento individual para a mais perfeita organização social.
Há exemplos de participação coletiva organizada em outras espécies
animais notadamente entre os insetos. Essas experiências evolutivas que se caracterizam
pela divisão do trabalho e certa hierarquia social demonstraram vantagens incontestáveis para o processo evolutivo. Entre
as espécies sociais não humanas prevalece, porém, um comportamento extremamente
rígido o que as torna vulneráveis às variações ambientais. Falta-lhes a
liberdade para criar e escolher comportamentos adequados de adaptação às mudanças
que se sucedem. Ao contrário, a espécie humana privilegiada com a consciência,
a razão e o livre arbítrio, ganhou flexibilidade comportamental, ampliando a capacidade
de resolução dos problemas emergentes, inclusive, lançando mão da cooperação
consciente entre os seus membros. Assim o homem se tornou capaz de superar
eventuais dificuldades intercorrentes no
curso do seu desenvolvimento. Valendo-se
de respostas inteligentes é capaz de
trabalhar a Natureza para servir aos seus próprios interesses, e de criar
mecanismos intermediários que garantam sua sobrevivência quando as condições ambientais
forem hostis. Não é à toa que o Homo sapiens é a única espécie animal que
sobrevive em todos os climas do Planeta. Mas esse poder lhe impôs,
concomitantemente, a responsabilidade de assegurar a sustentabilidade da Terra,
o seu lar. As especulações que vimos de fazer deixam claro que o destino da
Evolução está agora entregue ao próprio homem que pode fazer da Terra um
paraíso, ou destruí-la. Enorme responsabilidade cujo cumprimento demanda
necessariamente uma postura de respeito à Natureza e solidariedade dos homens
entre si. Mas para isso, como sujeito criativo e crítico de suas próprias ações o homem enfrenta a
dificuldade de existir harmonizando as dimensões intelectual e afetiva do seu
comportamento. Em outras palavras, ele é
capaz de imaginar alternativas comportamentais inspiradas em desejos conflitantes com a ordem natural e com sua
própria visão de mundo. Mas baseado em
critérios éticos sente-se obrigado a dizer “não” aos desejos que não se integram numa proposta
existencial comunitária. E tropeça muitas vezes na responsabilidade que lhe
toca de respeitar a Natureza e a própria integridade existencial. Em verdade, por
ignorância ou pura indisciplina, nos dez milênios de História escrita há
registros de que o homem tem poluído a Terra cada vez mais agressivamente e por
conta disso já se observam alterações
climáticas importantes, bem como catástrofes ambientais que ameaçam a vida no
planeta.
A prática virtuosa é exigente,
mas garante a tão sonhada paz interior. Sobrenadando as incertezas e as dúvidas
angustiantes, a paz existencial depende,
em última análise, da disponibilidade de o sujeito consciente abraçar intelectual
e afetivamente a transcendência universal
que se entremostra na experiência
subjetiva. Aliás, esta Transcendência essencialmente
criadora é a única forma de explicar a origem do cosmo e da consciência. Por
isso tenho repetido, para estranheza de muitos, que a solução do problema
humano é mística e não racional, embora reconheça a participação da razão em
especulações filosóficas coerentes que apoiam indiretamente a postura mística[4].
Mas o homem não sente a plenitude existencial representada pelo alinhamento do
pensamento e da subjetividade afetiva enquanto a experiência mística não
alcança a proporção de uma paixão avassaladora. Só esta paixão o torna pleno em si mesmo, tranquilo e feliz. A
oração vazia desta experiência de plenitude não tranquiliza o espírito. No
entanto, insistindo na prece o homem
espera vivenciar no mais íntimo da alma a ressonância do Deus criador que
habita sua criatura. Insistindo na oração o crente espera, finalmente, abrir
uma brecha na sua carapaça materialista para sentir os eflúvios do espírito
eterno, mais íntimo do que o seu próprio ego. Compenetrado da expectativa do
final apoteótico da comunidade de todas
as consciências em Deus, o homem aprofunda essa ideia numa experiência mística.
Esse discurso ganha envergadura quando o ser humano se ressente da consciência
angustiante de que tudo é provisório, reconhecendo a própria finitude que o faz
refém de ameaça permanente à sua integridade
física e moral. Não é possível a descrição fenomênica da vivência mística inspirada pela presença do
Absoluto criador na sua criatura, mas pode-se afirmar que por seu caráter
divinal ela é magnífica e inexcedível. Experimentando-a o homem realiza superlativamente
a homeostase psicobiológica fruindo a verdadeira paz individual e social ainda na
existência temporal. Empolgado pelo ideal social comunitário o indivíduo
transcende-se para conviver solidariamente
com seu próximo; esquece as próprias carências doando-se à causa comum. Levando essa realidade às últimas
consequências cada um vive a esperança de gozar a realização cabal da comunidade
dos homens na unidade transtemporal de Deus. Afirma essa comunhão e nela crê, vivendo-a
como uma atitude filosófica consolidada na experiência mística.
Everaldo Lopes