É na
subjetividade de cada um que se define o
ponto de corte das virtudes que presidem as relações familiares e sociais. Nesse
nível, as interações psicodinâmicas são complexas e nem sempre somos capazes de
perceber claramente as motivações subconscientes do nosso vir a ser. Isso é uma
pedra no caminho do amadurecimento do caráter.
A
tolerância desenvolvida por cada um no convívio coletivo depende do grau de
maturidade alcançado pelos interlocutores. Tolerância que varia de acordo com a
capacidade pessoal de disciplinar a
vontade para manter o equilíbrio racional e emocional das relações
interindividuais. Enfim, o limite de tolerância das pessoas envolvidas em
situações sociais problemáticas está sempre na dependência da flexibilidade que
elas têm de trabalhar o próprio potencial de integração psicodinâmica mediante a atualização do
autoconhecimento, da compaixão, do respeito ao outro e do amor à liberdade.
Funcionalmente, a influência dos dois primeiros itens amplia o horizonte das
relações intersubjetivas e preserva o equilíbrio existencial, enquanto os dois últimos favorecem a superação do
comportamento exclusivista dos
interlocutores diante das diferenças que os distinguem. Quanto mais integradas,
maduras, autoconfiantes, capazes de compreender o outro, tanto mais
compassivas serão as pessoas nas suas respostas aos estímulos sociais. Nesse
processo ocorrem grandes variações. Cristo fez doação integral de si mesmo à
causa da bondade e do perdão, porém a maioria dos mortais estabelece um limite menos arrojado que
coincide com sua própria capacidade de doação. Ou seja, sua disponibilidade para
amar ou pelo menos respeitar o próximo, mesmo quando ele se apresente como agressor.
Despindo
as diferenças pessoais culturais, nos identificamos com os nossos semelhantes. Percebemos,
então, serem comuns as ambiguidades em que incorremos todos, nas nossas
relações interindividuais, e nos tornamos mais compassivos. Entrevemos as virtudes
que a voz da consciência reclama, e nos damos conta dos desejos egoicos que
delas nos afastam. Reconhecendo nossas demandas egoístas, avaliamos o quanto de
autodisciplina emocional precisamos desenvolver para exercitar o equilíbrio
desejável na elaboração das relações
interpessoais. Este equilíbrio deverá ser orquestrado por valores universais assumidos
plenamente para aferir nosso comportamento social. Quando abandonamos a ética
dogmática e descobrimos o fim das certezas, reconhecemos também a dificuldade inerente
à construção de uma ética racional, e caímos, facilmente, na descrença absoluta[1]
caótica, vazia de valores.
Eliminando
a fé num absoluto criador (suporte dos valores universais), nos deparamos com a
ameaça do absurdo existencial de ser
para objetivos que se esgotam no tempo. Para
fugir dessa situação incômoda depositamos nossa esperança de ser-para-algo
definitivo, significativo numa dimensão transtemporal, integrando-nos num absoluto
intangível (objeto de fé), fonte de perfeição. Dessa forma cultivamos o ânimo
de dar um sentido transcendental à existência mediante o ato de fé numa
consciência universal (divina) que, aliás, encontra apoio racional em especulações
metafísicas[2]. A crença nesse
absoluto abre caminho para a experiência mística de uma realidade atemporal que
acolhe o homem, protegendo-o contra a angústia existencial, e absorve-o em Deus
(a perfeição absoluta), depois da morte biológica. De outra forma, seria viver para morrer, enfrentando
a contradição inevitável entre o desejo
de ser e a fatalidade de deixar de ser, emocionalmente
rejeitada.
Ao
confrontar a consciência de nossa finitude cada etapa da vida tem suas
características peculiares. Nos verdes anos da juventude vislumbramos um longo futuro no qual esperamos consolidar muitas conquistas em realizações
significativas; vivemos, então, como se fôssemos eternos. Na velhice, reduzem-se
as possibilidades de novas conquistas, passamos apenas a colher os frutos do
que plantamos na maturidade dos anos vividos. “Quando a adolescência do nosso
gênio desmaia, perde a cor”[3]
torna-se mais incômoda a ideia de nossa própria finitude. Devo confessar que na
minha experiência o reconhecimento da finitude pessoal, sem o respaldo de uma
espiritualidade mística autêntica (a crença numa projeção transtemporal da
própria existência), não satisfaz totalmente o anseio de plenitude. A falta desta
crença reforça a melancolia que ameaça penumbrar o ocaso da vida. Por mais que
nos tenhamos preparado intelectual e emocionalmente na primavera de nossa
aventura nesse mundo, para enfrentar o envelhecimento e a morte, é fantasioso
esperar no outono de nossa permanência
na Terra um anoitecer enluarado, romântico, apaixonado. Por mais que
valorizemos as virtudes conquistadas durante os anos vividos, como negar a
frustração da dificuldade de conviver com a perda do vigor físico e as marcas
indeléveis que o tempo vai desenhando no nosso corpo, ao longo dos anos? Na
melhor hipótese o idoso recebe o respeito e atenção de familiares e conhecidos.
E mesmo assim não consegue disfarçar a
sensação de estar sobrando, e de impor com sua presença limitações à mobilidade
familiar e social. Na verdade, o idoso exige mais cuidados do que é capaz de
prodigalizar. Felizes os que nesta quadra da vida vivem a experiência de parcerias solidárias, transparentes,
francas, confiantes e criativas, construídas ao longo dos anos da juventude e
da maturidade. Imagino que para coroar essa ventura, uma relação de gênero com
estas características compensa fartamente as limitações à satisfação da libido
remanescente nos idosos.
A
rapidez do progresso tecnológico torna cada vez mais difícil o entrosamento
entre pessoas de gerações distintas. Os mais jovens até podem ver os mais velhos
como senhores da sabedoria conquistada numa
longa experiência de vida, mas, ambiguamente, também os veem como depositários
de verdades antigas, hoje ultrapassadas. Os sentimentos que circunstanciam esta
avaliação transitam, paradoxalmente, entre o respeito ao idoso e o desprezo
velado pela (des)atualização cultural atribuível
à relutância em acompanhar o rápido progresso tecnológico.
O moço
é capaz de sentir-se grato e respeitoso face à ajuda psicológica e apoio material
que recebeu dos ancestrais. Mas em seguida pode reagir com airosa pseudo superioridade
à intervenção dos mais velhos, como se eles fossem simples representantes de um mundo morto, ultrapassado. Se o idoso
não for capaz de reconhecer, compassivamente, as causas do comportamento
impertinente e não raro agressivo do jovem, a sua relação com as gerações
seguintes pode tornar-se inviável. Caso
em que se entrincheiram, o idoso na
autoridade, e o jovem na rebeldia. Por trás destas posturas se escondem,
respectivamente, a frustração do idoso por sentir-se isolado e dispensável, e a
arrogância do jovem tão mais atrevido quanto mais inseguro. Quando conseguimos
ver de perto essa realidade, percebemos claramente o risco de os idosos e os
jovens nela incluídos se distanciarem cada vez mais, privados de alimentar uma
relação intersubjetiva equilibrada. Esta exige do idoso a difícil aceitação do
próprio declínio biológico, enriquecida pela tolerância compassiva; e do jovem
requer o respeito aos mais velhos, pelo reconhecimento de sua contribuição à
evolução do processo histórico do qual todos participam.
Everaldo
Lopes
[1] Niilismo
[2] A ordem crescente que
levou a matéria caótica dos primeiros segundos após o “big-bang” à organização
do mundo em que vivemos exige uma intenção (não há ordem sem intenção) e não há
intenção sem consciência, no caso uma consciência universal (Deus).
[3] Raul de Leoni no
Soneto “Pudor”, do seu livro Luz Mediterrânea.