quarta-feira, 31 de agosto de 2016

Relações intersubjetivas, evolução e equívocos




É na subjetividade  de cada um que se define o ponto de corte das virtudes que presidem as relações familiares e sociais. Nesse nível, as interações psicodinâmicas são complexas e nem sempre somos capazes de perceber claramente as motivações subconscientes do nosso vir a ser. Isso é uma pedra no caminho do amadurecimento do caráter.
A tolerância desenvolvida por cada um no convívio coletivo depende do grau de maturidade alcançado pelos interlocutores. Tolerância que varia de acordo com a capacidade pessoal de  disciplinar a vontade para manter o equilíbrio racional e emocional das relações interindividuais. Enfim, o limite de tolerância das pessoas envolvidas em situações sociais problemáticas está sempre na dependência da flexibilidade que elas têm de trabalhar o próprio potencial de integração  psicodinâmica mediante a atualização do autoconhecimento, da compaixão, do respeito ao outro e do amor à liberdade. Funcionalmente, a influência dos dois primeiros itens amplia o horizonte das relações intersubjetivas e preserva o equilíbrio existencial, enquanto  os dois últimos favorecem a superação do comportamento exclusivista dos interlocutores diante das diferenças que  os distinguem. Quanto mais integradas, maduras, autoconfiantes, capazes de compreender o outro, tanto mais compassivas  serão as pessoas nas suas  respostas aos estímulos sociais. Nesse processo ocorrem grandes variações. Cristo fez doação integral de si mesmo à causa da bondade e do perdão, porém a maioria dos mortais  estabelece um limite menos arrojado que coincide com sua própria capacidade de doação. Ou seja, sua disponibilidade para amar ou pelo menos respeitar o próximo, mesmo quando ele se apresente como  agressor.
Despindo as diferenças pessoais culturais, nos identificamos com os nossos semelhantes. Percebemos, então, serem comuns as ambiguidades em que incorremos todos, nas nossas relações interindividuais, e nos tornamos mais compassivos. Entrevemos as virtudes que a voz da consciência reclama, e nos damos conta dos desejos egoicos que delas nos afastam. Reconhecendo nossas demandas egoístas, avaliamos o quanto de autodisciplina emocional precisamos desenvolver para exercitar o equilíbrio desejável  na elaboração das relações interpessoais. Este equilíbrio deverá ser orquestrado por valores universais assumidos plenamente para aferir nosso comportamento social. Quando abandonamos a ética dogmática e descobrimos o fim das certezas, reconhecemos também a dificuldade inerente à construção de uma ética racional, e caímos, facilmente, na descrença absoluta[1] caótica, vazia de valores.
Eliminando a fé num absoluto criador (suporte dos valores universais), nos deparamos com a ameaça  do absurdo existencial de ser para objetivos que se esgotam no tempo.  Para fugir dessa situação incômoda depositamos nossa esperança de ser-para-algo definitivo, significativo numa dimensão transtemporal, integrando-nos num absoluto intangível (objeto de fé), fonte de perfeição. Dessa forma cultivamos o ânimo de dar um sentido transcendental à existência mediante o ato de fé numa consciência universal (divina) que, aliás, encontra apoio racional em especulações metafísicas[2]. A crença nesse absoluto abre caminho para a experiência mística de uma realidade atemporal que acolhe o homem, protegendo-o contra a angústia existencial, e absorve-o em Deus (a perfeição absoluta), depois da morte biológica.  De outra forma, seria viver para morrer, enfrentando a contradição inevitável  entre o desejo de ser e a fatalidade de deixar de  ser, emocionalmente rejeitada.
Ao confrontar a consciência de nossa finitude cada etapa da vida tem suas características peculiares. Nos verdes anos da juventude vislumbramos um longo  futuro no qual esperamos  consolidar muitas conquistas em realizações significativas; vivemos, então, como se fôssemos eternos. Na velhice, reduzem-se as possibilidades de novas conquistas, passamos apenas a colher os frutos do que plantamos na maturidade dos anos vividos. “Quando a adolescência do nosso gênio desmaia, perde a cor”[3] torna-se mais incômoda a ideia de nossa própria finitude. Devo confessar que na minha experiência o reconhecimento da finitude pessoal, sem o respaldo de uma espiritualidade mística autêntica (a crença numa projeção transtemporal da própria existência), não satisfaz totalmente o anseio de plenitude. A falta desta crença reforça a melancolia que ameaça penumbrar o ocaso da vida. Por mais que nos tenhamos preparado intelectual e emocionalmente na primavera de nossa aventura nesse mundo, para enfrentar o envelhecimento e a morte, é fantasioso esperar  no outono de nossa permanência na Terra um anoitecer enluarado, romântico, apaixonado. Por mais que valorizemos as virtudes conquistadas durante os anos vividos, como negar a frustração da dificuldade de conviver com a perda do vigor físico e as marcas indeléveis que o tempo vai desenhando no nosso corpo, ao longo dos anos? Na melhor hipótese o idoso recebe o respeito e atenção de familiares e conhecidos. E mesmo assim não consegue  disfarçar a sensação de estar sobrando, e de impor com sua presença limitações à mobilidade familiar e social. Na verdade, o idoso exige mais cuidados do que é capaz de prodigalizar. Felizes os que  nesta  quadra da vida vivem a experiência  de parcerias solidárias, transparentes, francas, confiantes e criativas, construídas ao longo dos anos da juventude e da maturidade. Imagino que para coroar essa ventura, uma relação de gênero com estas características compensa fartamente as limitações à satisfação da libido remanescente nos idosos.
A rapidez do progresso tecnológico torna cada vez mais difícil o entrosamento entre pessoas de gerações distintas. Os mais jovens até podem ver os mais velhos como senhores da sabedoria  conquistada numa longa experiência de vida, mas, ambiguamente, também os veem como depositários de verdades antigas, hoje ultrapassadas. Os sentimentos que circunstanciam esta avaliação transitam, paradoxalmente, entre o respeito ao idoso e o desprezo velado pela (des)atualização cultural  atribuível à relutância em acompanhar o rápido progresso tecnológico.
O moço é capaz de sentir-se grato e respeitoso face à ajuda psicológica e apoio material que recebeu dos ancestrais. Mas em seguida pode reagir com airosa pseudo superioridade à intervenção dos mais velhos, como se eles fossem simples representantes  de um mundo morto, ultrapassado. Se o idoso não for capaz de reconhecer, compassivamente, as causas do comportamento impertinente e não raro agressivo do jovem, a sua relação com as gerações seguintes  pode tornar-se inviável. Caso em que se entrincheiram, o idoso  na autoridade, e o jovem na rebeldia. Por trás destas posturas se escondem, respectivamente, a frustração do idoso por sentir-se isolado e dispensável, e a arrogância do jovem tão mais atrevido quanto mais inseguro. Quando conseguimos ver de perto essa realidade, percebemos claramente o risco de os idosos e os jovens nela incluídos se distanciarem cada vez mais, privados de alimentar uma relação intersubjetiva equilibrada. Esta exige do idoso a difícil aceitação do próprio declínio biológico, enriquecida pela tolerância compassiva; e do jovem requer o respeito aos mais velhos, pelo reconhecimento de sua contribuição à evolução do processo histórico do qual  todos  participam.
Everaldo Lopes


[1] Niilismo
[2] A ordem crescente que levou a matéria caótica dos primeiros segundos após o “big-bang” à organização do mundo em que vivemos exige uma intenção (não há ordem sem intenção) e não há intenção sem consciência, no caso uma consciência universal (Deus).
[3] Raul de Leoni no Soneto “Pudor”, do seu livro Luz Mediterrânea.