domingo, 7 de junho de 2015

Um descrente inconformado



            Conheci, há muitos anos, um homem muito inteligente. Inteligente e culto. Versátil na busca inquieta do verdadeiro, do belo e do justo sua invejável bagagem cultural me impressionou desde os primeiros encontros. Médico, mantinha-se informado das mais recentes conquistas  científicas no âmbito da sua especialidade. Humanista, dominava com desembaraço os clássicos da literatura, da música, da pintura e discorria sem tropeços sobre as correntes mais recentes do pensamento filosófico. Escreveu inúmeros sonetos, e haicais[1], belas composições. Nelas, extravasava seu amor à família e a dor moral, a mágoa malsofrida, a revolta contida contra a perda trágica de um filho que nascera pintor, e adolescente já demonstrava a opulência do seu talento. Como se não bastasse, pouco tempo depois dois golpes brutais do destino se abateram sobre este homem extraordinário. A morte levou um após o outro de forma igualmente trágica e prematura, mais dois dos seus sete filhos. Não se pode descrever a profunda tristeza de um pai assim golpeado. Mas este de quem falo aqui sofria duplamente. Enquanto amigos, parentes, conhecidos deixavam que o tempo fizesse o seu papel tecendo o delicado manto do amoroso esquecimento num saudável entorpecimento da memória, este homem profundamente sensível insistia em conservar dolorosamente muito viva a memória dos seus entes queridos falecidos, por querer perpetuá-los com a força do pensamento.
É notório que para defrontar sem angústia os limites inextensíveis da existência a razão sozinha não basta. É preciso crer. E a fé que liberta o ser consciente da vivência de precariedade inerente à própria finitude é um dom. A gente o recebe, mas não o pode forjar. Por isso é um bem precioso a ser cultivado. Certa vez o descrente inconformado que me inspirou este texto contou-me como e quando descobrira desolado haver perdido a fé.  Diante dessa realidade seguíamos caminhos diferentes. Enquanto ele vivia sem esperança sua descrença, eu buscava fundamentar com especulações metafísicas a minha crença bruxuleante numa transcendência absoluta. Discutíamos interminavelmente. Ele não aceitava a minha tese monista, criacionista, espiritualista. Eu argumentava justificando minha proposição: “Uma vez que o conhecimento racional, objetivo, não ultrapassa o mundo fenomenal, por que não aceitar a possibilidade de crer em verdades que não cabem nos modelos racionais do conhecimento objetivo, mas também não podem ser negadas racionalmente?” Tentava convencê-lo de que liberto do racionalismo intransigente ganhar-se-ia espaço para justificada esperança de satisfazer a aspiração humana a uma transcendência absoluta. Nesses termos, o diálogo entre a consciência e o mundo se tornaria mais profundo e efetivo. Animado por essa convicção, insistia na tentativa de persuadi-lo. E lembrava que a análise fenomenológica do real concreto é o instrumento adequado para mergulhar no conhecimento do universo físico, mas o conhecimento científico deste universo fenomênico não  explica a sua origem.  Contudo, mediante especulações inteligentes, a partir do conhecido como real concreto pode-se concluir que algo o precedeu... Algo equivalente a uma inteligência universal misteriosamente atuante no tempo-espaço, impondo uma ordem evolutiva cada vez mais complexa na permanente  transformação da matéria desde o big-bang. Essa abordagem especulativa não foge aos ditames do pensamento lógico o que para mim a torna convincente. No entanto, preso à sua descrença o meu amigo não a aceitava e concluía:  “O homem não tem saída. Olhando sua evolução histórica, não temos motivos para depositar confiança nele. Não acredito mais no homem. Estamos caminhando, como espécie, para a autodestruição.” No momento em que ele assim falava eu concordava em parte. Afinal, a persistir a herança rudimentar da ancestralidade animal que se prolonga ainda hoje no comportamento predatório do homem, não se pode descartar totalmente a inviabilidade da espécie Homo sapiens! Todavia, lembrava em seguida que o momento da Evolução que atravessamos não é mais crítico do que foram outros igualmente difíceis. Exemplificando, há milhões de anos passados, após a última glaciação, a vida quase se extinguiu no nosso planeta, mas entre os animais resistentes à intempérie, sobreviveram uns roedores peludos, homeotérmicos, os mamíferos, de cuja evolução dependeu a existência dos nossos ancestrais mais distantes na escala zoológica. Assim como também foi desafiador para a espécie humana a transição evolutiva da vida instintiva para a existência consciente e livre. Todavia nós próprios somos uma prova viva de que a Evolução prosseguiu e o homem alcançou superar as dificuldades inerentes à transição da vida instintiva para a vida consciente, num processo ainda em curso, aprendendo a lidar com a necessidade de escolher suas ações livre e  responsavelmente. Por outro lado, nas nossas discussões frequentes eu advertia o meu amigo aonde o levaria sua descrença no homem. Pois em não crendo nele (o homem) nós mesmos nos desacreditaríamos  quando pretendêssemos sustentar nossa verdade. Sem este crédito não teríamos porque confiar sequer nas nossas próprias percepções e compreensão do mundo, a dele tampouco. Além do que sua tese pessimista contém uma contradição porque se lhe dermos crédito estaremos afirmando que há pelo menos um homem confiável, aquele que não crê nos seus semelhantes.  E isso invalidaria a suposta descrença no próprio homem! Assim digladiamos intelectualmente durante mais de meio século, sempre amigos porque nos respeitávamos mutuamente com nossas diferenças.
            Eu sempre estive convencido de que o reconhecimento de uma causalidade recíproca no dinamismo da realidade cósmica incorporada num Absoluto eternamente criativo é fundamental para ancorar a vivência integradora compatível com a unidade harmônica de um Todo absoluto que nos inclua. Neste contexto a virtude e finalidade do homem no processo evolutivo consistiriam na flexibilidade criativa das decisões de cada um, fundamentadas e apoiadas no e pelo  exercício da consciência livre e responsável. Obviamente, nessa linha de entendimento, para não cair em enganos grosseiros é preciso levar a sério o conselho de Sócrates: “Conhece-te a ti mesmo”. Embora este conhecimento não pretenda ser completo, ainda assim, é essencial para selecionar  os motivos que impelem o ser consciente às decisões que está tomando instante a instante; não há tarefa mais difícil,  exigente e nobre.
Nos nossos frequentes debates meu amigo tentava justificar sua  visão de mundo com argumentos mais poéticos do que filosóficos. Encantavam-me suas tiradas inspiradas que, todavia, não me convenciam. E encerrávamos nossas discussões sem conseguir influenciar-nos mutuamente.
            Mas a verdade é que com o passar  dos anos o meu amigo abandonou seu agnosticismo radical e assumiu a postura  de quem não crê em bruxas porém não nega que elas existam[2]. Dizia-se agnóstico, mas no seu modo de ser rebelde, criativo e cultor da verdade e da justiça, o Dr. Severino Bezerra de Carvalho deixou o exemplo de uma existência íntegra, proba e generosa, comparável  à de um cristão virtuoso.
                                                                       Everaldo Lopes


[1] Poema japonês constituído de três versos, dos quais dois são pentassílabos e um, o segundo, heptassílabo.
[2] Parodiando Miguel de Cervantes Saavedra no seu livro Dom Quixote : “Yo no creo en brujas, pero que las hay, las hay”.