sábado, 15 de março de 2014

Um aprendizado longo e difícil

                 A experiência de envelhecer põe o homem diante de vivências peculiares e ensina saberes valiosos. Sacar o conhecimento e a sabedoria que os anos vividos podem ensinar custa prolongado esforço crítico e criativo. Não basta viver décadas. Cabe a cada um usar os talentos individuais nas suas relações intrapessoais e interpessoais, buscando a elaboração inteligente e criativa de soluções congruentes para o vir a ser individual, tumultuado pelas  mudanças físicas e psíquicas do envelhecimento que afetam a autoestima. O sucesso desse empreendimento é fundamental para assegurar a paz e amor-próprio dos que alcançam a terceira idade. Ao lidar com essas mudanças, o óbvio se torna contundente. O perfil físico do idoso não é atraente, comparado com o do jovem. O velho tem consciência disso e constrange-se por sua imagem haver perdido o poder de sedução. Desde a meia idade as pessoas se esforçam para esconder os sinais do tempo, lutando no seu íntimo para aceita-los como realidade indisfarçável. Todavia sabem que é preciso conquistar a leniência psíquica necessária a fim de conviver com as marcas impressas no seu semblante e as perdas impostas pela idade avançada, sem mergulhar em desespero ou comportamentos depressivos.  Diante do inevitável, em princípio, só a impassibilidade estoica dá suporte moral ao idoso para assimilar suas perdas com dignidade, sem apelar para evasões fantasiosas da realidade. Justificado por especulações filosóficas ou mediante um ato de fé os idosos esclarecidos e os menos cultos buscam assegurar-se a expectativa de que tudo se resolverá na unidade harmônica do espírito absoluto. Nessa expectativa encontram um lenitivo para os momentos de sofrimento existencial incontornável. Igualmente, é salutar ter a convicção de haver bem aproveitado os dons pessoais na condução da própria existência.
                 Diante dos impactos do envelhecimento, o idoso precisa esforçar-se para não perder a espontaneidade na manifestação da sua afetividade. Mas deve ser prudente, respeitando com verdadeira humildade, sem depreciar-se, o nível de aceitação de sua presença pelos outros, principalmente os mais jovens. Por mais que se esforcem, jovens e idosos têm certa dificuldade de sustentar uma parceria espontânea, ainda que se estimem. O idoso sábio compreende-os. Nos subterrâneos da consciência, sem  confessarem a si mesmos seus temores, os jovens veem  no idoso o seu amanhã e não conseguem anular a fonte inconsciente da repulsa contida  ao destino que os espera, simbolizado na figura humana fisicamente desfeita pelo tempo. Esta comoção pode resultar numa manifestação consciente de carinho dos jovens por seus idosos queridos. Mas, a análise psicodinâmica do comportamento destes jovens evidencia, ao mesmo tempo, componentes inconscientes inerentes ao medo de perde-los (os idosos queridos),  e repulsa à lembrança da fugacidade da própria juventude, despertada pela velhice dos que lhe estão próximos. Enquanto isso o idoso lúcido se esforça por  fazer  “a sagrada penitência de fechar-se num silencio superior”[1], sem transformar a própria  decadência física num espetáculo deprimente para os que presumem, ou assistiram “ao  esplendor da sua juventude”[2].
                 O velho sente necessidade de desenvolver especial habilidade na defesa do seu espaço de liberdade. Sabe que na avaliação subjetiva dos mais jovens é  inevitável a presunção do déficit físico e mental que, com variações individuais, realmente acompanha o envelhecer. E tem consciência de que o excesso de zelo momentâneo dos circunstantes mais jovens (sem negar-lhes o carinho demonstrado), pode ser uma forma inconsciente de enfatizar a juventude que ostentam no momento, o que os faz esquecer, por instantes a própria fragilidade. Compreendendo este determinismo psíquico afetivo, o idoso sábio recebe com bonomia esclarecida o cuidado dos seus descendentes e circunstantes, demonstrando, discretamente, depositar neles sua confiança. Mas não se perde em falsas expectativas de convivência mais íntima, salvo casos especialíssimos. Até torce para que o jovem saiba dosar o vínculo afetivo com o idoso querido para que não sofra à vista da sua decadência física, prenúncio do fim ao qual ninguém escapa. Não obstante a inevitabilidade desse desfecho, o idoso precisa adotar profilaticamente comportamentos preventivos. Por exemplo, evitar o sedentarismo, e inventar, cada dia, um objetivo de curto prazo integrado num projeto que satisfaça sua necessidade de transcender. Um hobby que o absorva intelectual e emocionalmente, e estimule sua capacidade criativa. Seja uma atividade manual, espiritual ou social. Por outro lado deverá encontrar uma maneira de fugir do sedentarismo, respeitando as limitações físicas da idade, mas evitando a todo custo a inatividade prolongada. Por outro lado, no convívio social o idoso deve precaver-se para não falar com tristeza ou revolta sobre as restrições que a idade lhe impõe, cuidando, porém, de não se expor ao ridículo de superestimar seus possíveis dotes físicos ou espirituais. É mister que reconheça as limitações inerentes à idade, sem afetação e sem perder a autoconfiança. E, ao mesmo tempo, é necessário estar consciente de que pode desenvolver contatos compensadores numa intimidade física ou psíquica prazerosa. Nesse ponto, pesa muito ter uma/um companheira/o com a/o qual possa estabelecer convívio gratificante.
                 Ao descermos às profundezas de nós mesmos, todos temos “surpresas infelizes”[3]. O avanço nos anos pode ajudar a desenvolver tolerância crítica e aceitação das fraquezas humanas que a todos nos afetam.  Mas esta conquista demanda um esforço sustentado para vencer o inconformismo vaidoso no confronto objetivo com os defeitos pessoais, e humildade para reconhecê-los e vence-los. Nesse momento seria oportuno desenvolver uma postura Zen na qual se aprofundaria o autoconhecimento, ao tempo em que o sujeito consciente substituiria o rigor da racionalidade (que acentua os contrastes), pela percepção intuitiva de uma totalidade harmoniosa, significativa. Essa abordagem da realidade amplia as perspectivas existenciais, tem o amparo racional em especulações metafísicas, mas na prática só se torna eficaz num ato de fé. A incorporação da dimensão espiritual da qual todos participamos  é a base  da verdadeira solidariedade.
                 Diante do envelhecimento duas perguntas se impõem: a) Como oferecer ajuda real ao idoso diante de sua situação progressiva e irreversivelmente  deficitária?  b) É possível ao idoso ser feliz? À primeira indagação responderíamos com a proposta de falar ao idoso com franqueza e objetividade sobre a velhice e suas consequências inevitáveis, contando, obviamente com o equilíbrio da infraestrutura psíquica do interlocutor.  É oportuno sublinhar que o coroamento feliz do envelhecimento consiste na imersão espiritual no  amoroso desapego à vida. Este sentimento corresponde a uma postura de total compreensão e aceitação responsável da realidade provisória do vir a ser histórico, integrando o acontecer finito num contexto universal significativo. A verdade é libertadora, e é o antídoto para as decepções sofridas por alimentar ilusões. À segunda pergunta responderíamos com um palpite... O idoso consegue sim, manter pelo menos sua autoestima se for capaz de conquistar a compreensão dinâmica da existência, e a capacidade de ser compassivo consigo mesmo e com os outros. Esse background moral, afetivo e intelectual ajuda a manter a conformação face aos percalços inevitáveis da própria finitude. São tantos os itens a preencher que não dá para falar genericamente sobre a questão da sabedoria do envelhecimento. Aparentemente, os exemplos de sucesso total não são numerosos. Todavia não dispomos de estatísticas que demonstrem quantas pessoas revoltadas com o envelhecimento e com a inevitabilidade do próprio fim tiveram uma morte tranquila... Mas o que os idosos que não perderam a lucidez podem e devem fazer é impedirem-se de ser infelizes, mobilizando para combater o infortúnio a criatividade de que ainda forem capazes. É oportuno lembrar que a paz interior não abandona os idosos privilegiados com a experiência espiritual que se traduz na expectativa de uma vivência atemporal de plenitude pessoal.
                 É evidente a diferença circunstancial da forma como as pessoas lidam com a consciência dolorosa da finitude ao longo do tempo vivido. Quando jovem, o indivíduo conta o futuro em décadas; então, a expectativa de vida longa lhe é confortável. Hoje, quando conta o futuro em poucos anos, torna-se muito claro que antes viveu a ilusão do superdimensionamento de mera expectativa provisoriamente favorável. É que, enquanto jovem, tinha a seu favor a menor probabilidade de ser acometido por uma doença terminal, embora estivesse sujeito às patologias inesperadas, ou acidentes traumáticos fatais. Porém tanto antes como hoje o tempo não passa de um dado provisório e incerto. O futuro dilatado que conforta o jovem pode terminar num piscar de olhos.  A mesma imprevisibilidade está presente no agora do idoso. Da mesma forma de antanho, ele continua refém da incerteza total do vir a ser transitório. Mas agora, dispondo de um futuro menos longo, o idoso convive com a certeza de que o fim está mais próximo, embora permaneça a esperança de que a sorte ajude a esticar o limite da sua vida um pouco além do agora! Todavia o velho sente o peso dos anos e das perdas acompanhantes o que o torna mais sensível  ao mínimo sinal de descompasso do ritmo biológico. O menor sintoma parece anunciar o fim inevitável, vivência mais perturbadora para os hipocondríacos. Mais disciplinado, porém, o idoso realista busca concentrar energia moral para conviver com as ameaças que o assaltam, sejam reais ou ilusórias. Na melhor hipótese a experiência acumulada dá suporte intelectual e emocional para controlar a ansiedade associada à consciência da finitude inexorável. Obviamente, esta forma de reagir se enriquece quando é estruturada sobre a crença da participação pessoal na comunidade eterna de todas as consciências, que se consuma numa unidade absoluta (Deus). Não sei se seria possível ao ser consciente normal permanecer totalmente indiferente à morte pessoal. Mas, certamente, ajuda muito a crença que se corporifica na expectativa da possibilidade transtemporal de realização pessoal na mais perfeita harmonia, numa plenitude ilimitada da qual, mergulhados no tempo, não podemos ter sequer uma ideia aproximada.
                  Everaldo Lopes



[1]Sugestão de Raul de Leoni no soneto intitulado “pudor”.
[2] Idem
[3] Do soneto “Prudência”, de Raul de Leoni, 

domingo, 9 de março de 2014

A saga do homem perfeito

A perfectibilidade humana implica na disposição diligente de cada um, de respeitar-se a si mesmo, ao próximo e à natureza. Esse propósito se objetiva nas relações familiares, políticas, sociais e econômicas inspiradas na verdade e na justiça. E através de escolhas conscientes e responsáveis o indivíduo abre caminho para aprimorar o seu desempenho no processo de hominização[1]. Aprimoramento pessoal que pressupõe um compromisso ético indissociável do exercício da própria consciência reflexiva. Seguramente, a fidelidade a esse compromisso é a solução para todos os problemas que afligem a humanidade. Se analisarmos historicamente o processo psicossocial que antecede as mazelas da sociedade vamos deparar em algum ponto no passado com o descompromisso ético de uma pessoa ou grupo. Desobrigação que desestrutura a sociedade, a partir de comportamentos amorais potencializados pela difusão das práticas correspondentes.
A hominização começa com a interdição das pulsões instintivas e se continua no esforço pessoal para disciplinar o comportamento social de acordo com um projeto cultural humanístico voltado para os valores que dignificam a existência[2]. Obviamente, a humanização vai muito além da simples interdição de pulsões inconscientes. Interdição, todavia, indispensável uma vez que estas pulsões são essencialmente egoísticas (ignoram as interações sociais) e o processo de humanização se acompanha necessariamente da socialização dos indivíduos. Como foi sugerido inicialmente as virtudes éticas envolvem o respeito do indivíduo a si mesmo, aos semelhantes e à própria natureza. Este envolvimento se completa na prática solidária do amor-caridade[3]. Mas antes de alcançar essa perfeição o nível e o grau de participação social construtiva do homem  ficam na dependência da sensibilidade moral  dos indivíduos à dignidade dos outros, na contextualização da existência de cada um numa sociedade igualitária. A correção ética desta contextualização acaba induzindo soluções diferenciadas, moralmente corretas, para os problemas econômicos, políticos e ambientais.  Soluções que exigem discernimento e disciplina da vontade. No outro extremo, o desrespeito aos princípios éticos existenciais e sociais abre caminho para condutas marginais, e alimenta a corrupção que degrada profissionais autônomos, funcionários públicos, “políticos de carreira” e as instituições que os abrigam.
O resultado de uma avaliação especulativa do processo de humanização demonstra que o grande salto evolutivo consiste na integração comunitária da coletividade humana sob a égide dos valores éticos universais. Este salto evolutivo  resulta do exercício da consciência livre e responsavelmente assumida, não obstante os limites restritivos do ego.  Na verdade, paradoxalmente, na busca da realização pessoal o ego deverá ser superado. Daí podermos afirmar que o homem é um ser problemático. Expandindo o ego o homem permanecerá sempre limitado por seu caráter egoísta. Portanto, a paz social e a plena realização do homem exigem a ultrapassagem do ego que é apenas um momento subjetivo de referência, supervalorizado, na descrição de uma  rede de relações interpessoais. Para ultrapassá-lo é preciso que cada um vivencie algo muito íntimo anterior a este momento subjetivo. Proposta que leva o ser consciente a uma profunda meditação. Só para dar uma ideia do que estou querendo dizer transcrevo um pequeno texto da autoria de um pensador indiano: “Pense em si mesmo,  e uma imagem subtil  é formada no interior da mente. Você não é isto, nem nenhuma imagem ou pensamento. Você é a consciência silenciosa e sem forma, dentro da qual inúmeras impressões aparecem e desaparecem  sem deixar rasto.” Mooji.[4]  Esta “consciência silenciosa e sem forma” precede o “ego”, e é lá que o indivíduo identifica o sentimento difuso da unidade  do seu self[5]. Mas deixemos o aprofundamento dessa questão para depois.
Voltemos à discussão fenomenológica sobre a perfectibilidade humana. Freud deu o nome de libido à energia psíquica dos instintos de vida. Esta força psíquica implementa no homem a sequência de pensamentos e atos que configuram o comportamento individual espontâneo nas várias conjunturas psicossociais. A libido, como uma força da natureza é em si mesma acrítica, não tem compromisso com  valores éticos. A virtude pedagogicamente definida consiste em  reconhecer a libido, disciplinando lhe o dinamismo selvagem. Nessa perspectiva a Psicanálise explica os comportamentos sociais  altruístas mediante a reorientação da força psíquica da libido no sentido de fortalecer as manifestações psicossociais dignificantes do ser humano. Nisso consiste o processo de “sublimação”[6].  Desgarrada deste processo a libido se satisfaz num leque de comportamentos primários que vão da  indiferença agressiva, à violência social, com desdobramentos na esfera sexual a exemplo do voyeurismo, das várias formas de satisfação solitária do desejo sexual, e da prostituição. A diligência inteligente no sentido de redirecionar a energia psíquica para a promoção do comportamento social solidário e ético implica num processo de aprendizagem complexo que, inicialmente demanda consciência esclarecida e disciplina da vontade. Basicamente, a razão distingue na realidade psicossocial as interações comprometidas com o ideal comunitário, orientando a direção em que se deve aplicar a vontade para a consecução do equilíbrio solidário, ético, universal da convivência humana. Essa disciplina comportamental impregna de verdade e de justiça o comportamento das pessoas, criando hábitos culturais solidários que levam a coletividade à prática das virtudes socializantes. Faz parte destas virtudes, a intenção resoluta de buscar o ideal de excelência do comportamento humano social, reconhecendo o limite dos desejos  pessoais  para lapidá-los com coragem e determinação em prol da harmonia social. No contexto psicodinâmico, o paradigma de perfeição seria o coroamento da  existência com a prática da solidariedade comunitária inspirada no amor à verdade e à justiça.  Portanto a saga do homem perfeito é mais propriamente a história da perfectibilidade humana levada a efeito mediante um esforço esclarecido e voluntário de contextualização ética, comunitária, dos indivíduos. Quanto mais coerente for o desempenho pessoal nos processos de individuação e socialização  mais próximo do modelo de perfeição humana o  indivíduo chegará, embora fique sempre aquém do ideal perseguido. A santidade se definiria como o arremate místico desse processo evolutivo, incorporando a existência pessoal num todo absoluto significativo transcendental, unidade na qual se harmonizam todas as contradições.
Diante das considerações que vimos de fazer podemos dizer que o homem é um ser perfectível, porém não existe o homem perfeito. Não se pode descrever o homem perfeito sem divinizá-lo. A “História de Jesus de Nazaré”, escrita por Renan, pensador visto por muitos como cético, mas que se dizia crítico moderado serve de exemplo para o que vimos de afirmar. O autor declara que se tivesse que definir com uma palavra o  personagem central do seu livro , “divino” seria o adjetivo escolhido.
Everaldo Lopes



[1] Aquisição de caráter ou atributos distintivos da espécie humana em relação às espécies ancestrais; Atualização da condição humana caracterizada pela consciência reflexiva, pela liberdade e pela escolha responsável.
[2] Modo de ser peculiar do homem
[3] No vocabulário cristão, o amor que move a vontade à busca efetiva do bem de outrem e procura identificar-se com o amor a Deus.
[4] Fonte: Blog “satsung with mooji”
[5] Indivíduo, tal como se revela e se conhece, representado em sua própria consciência fora da influência de qualquer clichê.
[6] Psican. Processo inconsciente que consiste em desviar a energia da libido para novos objetos, de caráter útil.