terça-feira, 16 de julho de 2019

Cosmogonia e psicodinâmica existencial




            Na perspectiva de uma visão monística espiritual da realidade, será válido admitir que as leis que regem o Universo são as mesmas que regem o pensamento. Aliás, dado que o espírito é eterno e a matéria efêmera, será melhor inverter a ordem desta sequência: as leis eternas do pensamento (espírito) regem, por extensão, o Universo, e ganham com isso uma expressão fenomenológica, pois o Universo reproduz o pensamento de Deus materializado. Essas Leis são a expressão formal do Espírito cifrado na natureza. Universo entendido como uma espacialização virtual do Espírito, que desde o primeiro momento ( o ¨Fiat¨) deu início à contagem regressiva (tempo cósmico) de volta ao princípio de tudo (espírito eterno - ,absoluto), fonte permanente da criação, onde tudo começa e termina. Na abordagem racional da realidade cósmica aplica-se com proveito a lógica matemática e linguística do pensamento, inerente à ordem do espírito, que tem no simbolismo dos números a sua representação mais radical, capaz de resumir numa fórmula a realidade do Universo (E=mc2, fórmula com a qual /Einstein representou o universo). Visto assim, como uma manifestação do espírito, o cosmo – “estado temporal de Deus” – revela-O na e pela consciência pessoal.
Através de “complexificações” crescentes, o cosmo, finalmente, produziu o homem, porta voz do Espírito Eterno, através da fluidez etérea do pensamento - subjetividade. Irrompe, assim, a consciência, pedra de toque da existência (prática da consciência responsável) fechando a “gestalt” do caos original ao “big bang”, da imensa simplicidade da nebulosa inicial à harmonia unitária do universo ilimitado. Depois de ganhar dimensão, o Espírito (cifrado no cosmo) se reconhece a si mesmo como dissemos, na e pela consciência pessoal. Tudo isso, na verdade, encerra um grande mistério que apenas se entremostra à intuição da completa noção de um mesmo ser em todos os seres incompletos que fazem a aparência fenomênica do mundo.
            E a vida? A vida e o mundo flutuam como sombras passageiras sobre o fundo misterioso da única realidade, inexplicada e inexplicável: o Espírito. Sobre este abismo a consciência se desdobra em pensamentos, ideias, vivências, lembranças, fragmentos da vida inconsciente, de experiências de prazer, de tristeza, de medo, de ansiedade, de angústia que perfazem a fenomenologia da subjetividade. Nesta brecha (a consciência) que se abre na estrutura monolítica do Universo, fundem-se o eterno e o temporal no bojo do presente (portal da eternidade), na busca permanente do amor e da sabedoria, à sombra da liberdade. O tique-taque do tempo histórico marca o compasso desta busca, através de caminhos tortuosos que se multiplicam em veredas, impondo ao homem fazer opções responsáveis em cada encruzilhada. Neste plano, a concepção sistêmica do “eu”, referencial da vida consciente, inclui a valorização de um perfil pessoal que atende à uma demanda histórica, cultural e social.  Para conservar o perfil idealizado, o ser consciente pode barganhar, mentir, distanciando-se da sua realidade mais profunda - o próprio Espírito incriado que é o substrato ontológico de tudo. Inutilmente preocupado com a instabilidade da sua dimensão temporal, o ser consciente tenta construir defesas que nunca chegam a tranquilizá-lo inteiramente, apenas aquietam momentaneamente a sua ansiedade. Condenado a existir (em liberdade), o ser consciente se dá conta da sua fragilidade e afana-se na construção de uma armadura de segurança. Todavia, a expectativa de insucesso gera mais ansiedade, angústia, e a consciência da finitude dá lugar ao pavor da morte e muito sofrimento moral. Se nos detivermos para analisar o dinamismo desse processo, descobriremos a natureza fantasmagórica das ameaças imaginadas que só subsistem enquanto são infladas pela forja do próprio medo. O medo que se tem do insucesso remonta ao temor do desfiguramento da autoimagem idealizada de competência e autonomia, o medo da fugacidade da vida. Teme-se dar testemunho de incompetência e de dependência, teme-se a morte. No rastro desses medos, a fantasia constrói na imaginação, situações grotescas de desmoralização e de brutal vassalagem à crítica alheia que, de tão valorizada tem poder arrasador sobre o “eu” faltoso. Por baixo de tudo isso reina o descrédito das virtualidades pessoais originais do “eu” que teme e treme diante do desconhecido antecipado pela imaginação. Estas veredas íngremes desviam a subjetividade da sua caminhada empós o verdadeiro amor e a sabedoria. É preciso silenciar os conflitos da subjetividade para escutar a voz de Deus (sabedoria).
            A discussão desses problemas é tão antiga quanto o texto bíblico. Lá já se falava, no estilo cultural da época, sobre o conflito vivido pelo ser consciente entre o tempo e a eternidade, no limite da liberdade contingente. Desde a mais remota antiguidade, sábios, santos e gurus de todos os credos têm discutido a regra de ouro da existência equilibrada, objetiva e tranquila, liberta de temores e ansiedades. Todos chegaram à mesma conclusão: “A cada dia basta a sua pena”. Esta sentença remete à  suprema sabedoria implícita na simplicidade ingênua de uma orientação existencial baseada na entrega consciente à vontade do Criador. Mas os fantasmas que cruzam, erráticos, a nossa mente, embaçam as lentes da razão, enfraquecem o equilíbrio psicofísico, sobrecarregando nossos dias com preocupações inúteis, desestabilizando a vida interior. Urge destruir, metodicamente, as visões fantasmagóricas.
Na busca da paz interior parece-me elucidativa e até apropriada, a analogia que se pode estabelecer entre a dinâmica dos fenômenos físicos e dos psicodinâmicos. Por exemplo, da mesma forma que cargas elétricas contrárias se anulam, catexes (energias psíquicas aplicadas) opostas também se anulam. Daí poder-se esperar, por um mecanismo análogo, a anulação intrínseca e imediata de sentimentos e emoções contrários postos nos confrontos subjetivos, seguindo-se a dissipação das vivências desagradáveis decorrentes de eventuais conflitos. Já registrei na minha própria experiência interior o desaparecimento instantâneo de medos, ansiedades, angústias, a partir do confronto analítico dos elementos psíquicos contraditórios implícitos numa situação traumática, no caso, desencadeante de vivência indesejável. Os estados interiores são construídos por emoções, sentimentos, e ideias cujas polaridades se ajustam a situações específicas. De qualquer forma, em cada situação há sempre uma polaridade discernível dos elementos psíquicos implicados (emoções, sentimentos, Ideias). Descrevendo a situação, expondo a polaridade das catexes envolvidas, sem qualquer preocupação de julgar ou condenar, ensejamos a oportunidade do colapso em que catexes opostas se anulam. Isto tem sido descrito como terapia de colapso.
No plano psicanalítico o eu se sente tanto mais seguro quanto mais se visualiza próximo da sua imagem idealizada, e se compraz de ser assim reconhecido pelos circunstantes. Os desencontros interiores geram voos libertários da consciência, mas deixados à sua própria sorte podem também perpetuar equívocos e conflitos. Neste contexto, para dissimular demandas sensuais interditas, ou o indivíduo consegue integrá-las no quadro dos valores inerentes à autoimagem idealizada, revisando sua visão de mundo, ou sentir-se-á culpado. Então, instalam-se conflitos, sentimentos de culpa, pudores dolorosos que ferem a autoestima e criam turbulências na subjetividade. Uma simples mudança de perspectiva na mirada interior pode alterar, radicalmente, o resultado da experiência subjetiva. Por exemplo, sem descer a detalhes práticos, o abandono da rigidez moralista, em favor do comportamento flexível, objetivo, honesto, mas tolerante, consciente da contingência humana necessariamente imperfeita, favoreceria, e muito, uma “gestalt” integrativa, suavizando conflitos e sentimentos negativos. Para quebrar a rigidez e iniciar a renovação, basta que o “eu” culpado se pergunte e tente responder: por que esta submissão a uma autoimagem idealizada? Existem razões significativas para defendê-la? Quais são elas? Por que atrelar o vir a ser existencial a uma expectativa de riscos fantasmagóricos temidos como se fossem reais? A mudança de perspectiva, mensageira da paz, pode ocorrer espontaneamente em função dos mecanismos de remanejamento automático das energias psíquicas.  Mas, haverá uma maneira de induzir esta alteração de forma consciente e deliberada? Sim, libertando o “eu” sufocado pela vivência de estar à mercê de uma situação irremediável, permitindo-o assumir o seu próprio controle, tendo em vista que tudo é provisório, nada é definitivo. Para isso basta objetivar o núcleo do conflito e assumir a postura de um observador atento, empenhado em descrever, detalhadamente, todos os elementos do problema (da situação) sem qualquer preocupação ética de condenar ou aprovar. Dessa forma o eu “vê” e “delimita” o problema desencadeante da ansiedade ou medo e, descrevendo-o, em detalhes, vai alinhando as características (elementos) positivas e negativas da situação problemática. Não raro a vivência desagradável se desvanece como por encanto. Com este movimento interior estabelece-se uma distância entre o “eu” e o problema subjetivo, abrindo espaço para o exercício da crítica objetiva diante da escolha a ser feita. O “eu” transcende a relação consciência/mundo, e, liberto, reconhecendo a parceria surreal do seu “self” com o Espírito incriado, pode escolher o caminho que mais lhe convier. Mas, para manter o equilíbrio interior, é necessário que o “eu” consciente tenha a humildade para vivenciar sua fragilidade sem desabar. É preciso ser humilde para aceitar as próprias fraquezas e, ainda assim, continuar segurando a mão de Deus. Toda vez que falo Deus, tenho-me diante de uma PRESENÇA que dá suporte à minha própria existência e a do Universo, não de um simples conceito limite. É oportuno salientar aqui que sem atentar para a misericórdia infinita de Deus, ter-se-á sempre uma visão antropomórfica do amor divino. E ao reconhecer um Deus infinitamente misericordioso nós, suas criaturas, nos sentimos confiantes, numa relação mútua assimétrica na qual o Criador se faz nosso cúmplice por sua misericórdia. Deus é tão grande que seria presunçoso querer negociar com Ele um suposto merecimento alcançado mediante ações virtuosas. Nossas ações são uma extensão dos valores universais que nos propomos praticar através de opções pessoais marcadas pela Verdade (fidelidade a Deus e à sua Criação); não devem ser vinculadas à expectativa de ganhos pessoais. Todavia, tudo de bom podemos esperar da misericórdia divina.
O psicodinamismo da alma humana resume o reencontro do Espírito consigo mesmo, mediante relações interpessoais entrelaçadas, por um ato de fé, na unidade divina das três pessoas distintas anunciadas no dogma da trindade divina. A humanidade se engaja nessa trindade, identificando-se ao Deus Filho e cultivando o amor entre Pai e filho. A “gestalt” que envolve o cosmo e a consciência se confunde com um absoluto inominado; não tem expressão verbal ou numérica, revela-se, porém, na experiência mística do UNO.
Ao final dessas considerações, reconheço o quanto elas foram importantes para me aproximar de Deus, ao estilo do filho pródigo, confiante, unicamente, na misericórdia divina. Aconchegado nas dobras desse manto de misericórdia, permito-me conversar com Deus, expondo-Lhe minhas ansiedades, meus temores, minhas necessidades, mas reconhecendo, antecipadamente, a minha condição de criatura, pelo que devo repetir indefinidamente: seja feita a Tua Vontade.