domingo, 16 de dezembro de 2012

Aventura humana II




A saga existencial desenrola-se através de contradições que deverão ser superadas no curso da individuação[1]. Evolui na intimidade subjetiva do ser consciente, onde a finitude choca-se com o desejo de ser eterno; a aspiração ao conhecimento das essências esbarra no saber apenas fenomênico; a vontade de saber tudo tropeça na limitação racional inapelável. Essas são algumas das antinomias da existência que fazem o pano de fundo da condição humana. Na tentativa consciente ou inconsciente de superar estas contradições o homem produz cultura (criações intelectuais, artísticas e religiosas), valendo-se dos próprios dons. E paralelamente elege padrões de comportamento que refletem a propensão ética da “existência” [2], peculiaridade  específica do homem, que permeia as relações do indivíduo com o seu semelhante e com o mundo.
O caráter moral do devir humano implica na tensão permanente da escolha entre o Bem e o Mal, respectivamente, o que integra e o que desune os homens entre si, completa-os ou fragmenta-os na intimidade de si mesmos. O Bem se define pela prática da verdade, da justiça e da solidariedade eleitas como valores a serem cultivados pela sociedade e respeitados pelos indivíduos. Valores aferidos aos de uma visão de mundo humanística integral na qual o Bem visa à realização da unidade pessoal e social, e o Mal se projeta na satisfação desregrada do egoísmo que separa os indivíduos e os escraviza. Nestes termos, o mal é real quando vivido por cada um, nas consequências humano sociais decorrentes da ausência do Bem.
As virtudes humanitárias são conquistas pessoais. Elas são construídas com algum esforço face à barreira egoísta latente dos estratos mais profundos da subjetividade.  Na profundeza da psique se desenrola o embate entre a consciência reflexiva que se impõe obrigações morais, e as tendências atávicas animais, egoísticas, que se rebelam contra as restrições impostas pelos processos de individuação e socialização[3]. Nesse “espaço” subjetivo, as leis físicas e biológicas que governam o universo e a vida alimentam o servomecanismo biopsíquico do homem (Sistema Nervoso Central) que veicula a consciência reflexiva e a inteligência linguístico-matemática. Com o surgimento do homem, o destino da vida e do planeta passa a ser conduzido pelo exercício livre e responsável da inteligência consciente. A transformação de reações físico-químicas neuroniais em consciência reflexiva, pensamento, imaginação, intenção voluntária é uma alquimia que não acreditamos seja algum dia explicada cientificamente nos seus detalhes. Mas pode-se dizer que o inconsciente coletivo guarda símbolos que encerram o mistério da transição entre os impulsos animais e as funções psíquicas superiores. Os “atos falhos” e os sonhos (fenômenos que escapam às interdições culturais) mostram à farta como os estratos profundos da psique são fieis às demandas atávicas da “sombra” animal no homem, a ser trabalhada pelas repressões inerentes aos processos simultâneos de individuação e socialização. O inconsciente não faz qualquer restrição à satisfação dos desejos primários do homem, remanescentes dos instintos de sobrevivência e de conservação da espécie. Sobre a manifestação primária destas forças incidem as interdições que as disciplinam, e tornam possível a vida social livremente organizada. Por isso, o superego instância psíquica das interdições culturais, tem um pé no inconsciente e outro no consciente. A interdição se consuma no inconsciente, e apenas o desejo proibido aflora à consciência.
Na práxis social o bem e o mal se reconhecem, respectivamente, como comportamentos aprovados ou não pelos cânones vigentes que formalizam os processos culturais. Assim se constroem os hábitos e costumes.
Pelo que vimos antes, basicamente, há um consenso no que tange à bipolaridade das forças psíquicas que atuam no homem, definidas como tendências construtivas e destrutivas (Freud as definiu como Eros e Tânatos). Senso lato, construtivo é tudo que integra o indivíduo e o ajusta a uma mundividência adotada, contribuindo para a organização de uma coletividade universal solidária.
O homem se caracteriza, exatamente, pelo modo como conduz a simultaneidade existencial das tendências atávicas e da força moral racional que lhes impõe limites. Esta polaridade já foi definida literariamente, como o Anjo e o Demônio que em cada experiência existencial concreta simbolizam respectivamente o Bem e o Mal. Se, por hipótese o indivíduo conseguisse viver, radicalmente, qualquer dos dois polos, viraria anjo, ou demônio... já não seria mais um homem. O equilíbrio alcançado no vir a ser existencial é sempre o resultado do esforço para realizar uma síntese criativa com esses opostos. Aí se encontra o homem emergente depois de uma longa evolução.
Nietzsche dizia que o homem poderia ser representado por uma “corda estendida entre o animal e o além do homem.” Infere-se que com esta afirmação ele queria chamar a atenção para a capacidade de ultrapassagem inerente ao exercício da consciência reflexiva, característica da condição humana. Esta necessidade de transcender só se satisfaz com o infinito.
Como ficou explícito no remate do texto anterior, participo da ideia que a solução existencial definitiva das contradições humanas antes assinaladas só seria alcançada em plenitude através do salto místico (quântico). Só esta experiência singular explicaria a descontinuidade que desfaz instantaneamente todas as oposições existenciais, superando-as e harmonizando-as pela  vivência de integração na unidade de um todo absoluto significativo. Experiência que transcende a dicotomia consciência / mundo, evocando a unidade original da consciência e do mundo.
 Portanto podemos afirmar que a integração consciência-mundo se dá na intimidade psíquica do homem. E assim todos somos responsáveis pelo desfecho exitoso da Evolução universal.


                           Everaldo Lopes


[1] Processo por meio do qual uma pessoa se torna consciente de sua individualidade, de acordo com C.G. Jung (1875-1961)


[2] Existência- no pensamento de Kierkegaard (1813-1855) e no existencialismo contemporâneo, modo de ser próprio do homem.

[3] Processo de adaptação de um indivíduo a um grupo social e, em particular, de uma criança à vida em grupo