A saga existencial desenrola-se através
de contradições que deverão ser superadas no curso da individuação[1]. Evolui
na intimidade subjetiva do ser consciente, onde a finitude choca-se com o
desejo de ser eterno; a aspiração ao conhecimento das essências esbarra no
saber apenas fenomênico; a vontade de saber tudo tropeça na limitação racional
inapelável. Essas são algumas das antinomias da existência que fazem o pano de
fundo da condição humana. Na tentativa consciente ou inconsciente de superar estas
contradições o homem produz cultura (criações intelectuais, artísticas e
religiosas), valendo-se dos próprios dons. E paralelamente elege padrões de
comportamento que refletem a propensão ética da “existência” [2], peculiaridade
específica do homem, que permeia as
relações do indivíduo com o seu semelhante e com o mundo.
O caráter moral do devir humano
implica na tensão permanente da escolha entre o Bem e o Mal, respectivamente, o
que integra e o que desune os homens entre si, completa-os ou fragmenta-os na
intimidade de si mesmos. O Bem se define pela prática da verdade, da justiça e
da solidariedade eleitas como valores a serem cultivados pela sociedade e respeitados
pelos indivíduos. Valores aferidos aos de uma visão de mundo humanística integral
na qual o Bem visa à realização da unidade pessoal e social, e o Mal se projeta
na satisfação desregrada do egoísmo que separa os indivíduos e os escraviza.
Nestes termos, o mal é real quando vivido por cada um, nas consequências humano
sociais decorrentes da ausência do Bem.
As virtudes humanitárias são
conquistas pessoais. Elas são construídas com algum esforço face à barreira
egoísta latente dos estratos mais profundos da subjetividade. Na profundeza da psique se desenrola o embate
entre a consciência reflexiva que se impõe obrigações morais, e as tendências
atávicas animais, egoísticas, que se rebelam contra as restrições impostas pelos
processos de individuação e socialização[3].
Nesse “espaço” subjetivo, as leis físicas e biológicas que governam o universo
e a vida alimentam o servomecanismo biopsíquico do homem (Sistema Nervoso
Central) que veicula a consciência reflexiva e a inteligência linguístico-matemática.
Com o surgimento do homem, o destino da vida e do planeta passa a ser conduzido
pelo exercício livre e responsável da inteligência consciente. A transformação
de reações físico-químicas neuroniais em consciência reflexiva, pensamento,
imaginação, intenção voluntária é uma alquimia que não acreditamos seja algum
dia explicada cientificamente nos seus detalhes. Mas pode-se dizer que o
inconsciente coletivo guarda símbolos que encerram o mistério da transição
entre os impulsos animais e as funções psíquicas superiores. Os “atos falhos” e
os sonhos (fenômenos que escapam às interdições culturais) mostram à farta como
os estratos profundos da psique são fieis às demandas atávicas da “sombra”
animal no homem, a ser trabalhada pelas repressões inerentes aos processos
simultâneos de individuação e socialização. O inconsciente não faz qualquer
restrição à satisfação dos desejos primários do homem, remanescentes dos
instintos de sobrevivência e de conservação da espécie. Sobre a manifestação
primária destas forças incidem as interdições que as disciplinam, e tornam
possível a vida social livremente organizada. Por isso, o superego instância
psíquica das interdições culturais, tem um pé no inconsciente e outro no
consciente. A interdição se consuma no inconsciente, e apenas o desejo proibido
aflora à consciência.
Na práxis social o bem e o mal se reconhecem,
respectivamente, como comportamentos aprovados ou não pelos cânones vigentes
que formalizam os processos culturais. Assim se constroem os hábitos e
costumes.
Pelo que vimos antes, basicamente, há
um consenso no que tange à bipolaridade das forças psíquicas que atuam no homem,
definidas como tendências construtivas e destrutivas (Freud as definiu como
Eros e Tânatos). Senso lato, construtivo é tudo que integra o indivíduo e o
ajusta a uma mundividência adotada, contribuindo para a organização de uma coletividade
universal solidária.
O homem se caracteriza, exatamente,
pelo modo como conduz a simultaneidade existencial das tendências atávicas e da
força moral racional que lhes impõe limites. Esta polaridade já foi definida literariamente,
como o Anjo e o Demônio que em cada experiência existencial concreta simbolizam
respectivamente o Bem e o Mal. Se, por hipótese o indivíduo conseguisse viver,
radicalmente, qualquer dos dois polos, viraria anjo, ou demônio... já não seria
mais um homem. O equilíbrio alcançado no vir a ser existencial é sempre o
resultado do esforço para realizar uma síntese criativa com esses opostos. Aí
se encontra o homem emergente depois de uma longa evolução.
Nietzsche dizia que o homem poderia
ser representado por uma “corda estendida entre o animal e o além do homem.”
Infere-se que com esta afirmação ele queria chamar a atenção para a capacidade
de ultrapassagem inerente ao exercício da consciência reflexiva, característica
da condição humana. Esta necessidade de transcender só se satisfaz com o
infinito.
Como ficou explícito no remate do
texto anterior, participo da ideia que a solução existencial definitiva das
contradições humanas antes assinaladas só seria alcançada em plenitude através
do salto místico (quântico). Só esta
experiência singular explicaria a descontinuidade que desfaz instantaneamente todas
as oposições existenciais, superando-as e harmonizando-as pela vivência de integração na unidade de um todo
absoluto significativo. Experiência que transcende a dicotomia consciência /
mundo, evocando a unidade original da consciência e do mundo.
Portanto podemos afirmar que a integração
consciência-mundo se dá na intimidade psíquica do homem. E assim todos somos
responsáveis pelo desfecho exitoso da Evolução universal.
Everaldo
Lopes
[1] Processo
por meio do qual uma pessoa se torna consciente de sua individualidade, de
acordo com C.G. Jung (1875-1961)
[2] Existência- no pensamento de Kierkegaard (1813-1855) e no existencialismo
contemporâneo, modo de ser próprio do homem.
[3] Processo
de adaptação de um indivíduo a um grupo social e, em particular, de uma
criança à vida em grupo