Diógenes[1], o
cínico, filósofo da Grécia antiga despreza os cânones sociais, cultiva a autossuficiência
e menospreza a morte. A virtude para ele consiste na simplicidade natural da
vida sem demandas supérfluas, o que equivale a um retorno aos hábitos primitivos.
Embora reconheçamos ser salutar para o indivíduo o cultivo civilizado da
autossuficiência e o despojamento inerente à vida simples, no modo cínico de
proceder o desdém às normas sociais é um estorvo à completa humanização. Esta
implica exatamente na interdição dos impulsos instintivos e construção de um
modelo cultural humano social cujos preceitos favoreçam a convivência pacífica
e cooperativa. A orientação política e econômica responsável pelo desenho
social moderno demarcado por desigualdades criadas pelo próprio homem é ridícula
ao olhar crítico de um humanista esclarecido. E mostra claramente que, cedendo
aos impulsos ambiciosos, os homens estão destruindo a dimensão social do seu vir
a ser existencial.
É
compreensível que na era cibernética o homem esteja abrindo espaço cada vez maior
para a máquina cuja utilização inteligente e disciplinada amplia sua capacidade
produtiva. As conquistas tecnológicas fazem parte do processo evolutivo. O homem
já não saberia mais viver sem o equipamento tecnológico moderno. No seu
caminhar histórico a humanização é o resultado de um processo cultural que está
caminhando na direção oposta à vida simples, natural. Mas é indispensável
preservar a colaboração que existiu entre os membros da coletividade humana primitiva,
necessária para garantir a sobrevivência da espécie.
A
conquista da consciência reflexiva constituiu-se no ponto crítico da Evolução. Presumivelmente,
esta conquista evolutiva ocorreu no período em que o homem vivia da caça, da
pesca e da coleta de frutos silvestres. Então, todos estavam visceralmente
conscientes de que os laços de
cooperação e solidariedade são vitais para a sobrevivência do indivíduo. Para
coletar frutos suficientes, pescar para toda coletividade e caçar animais de grande porte impunha-se a
necessidade da colaboração de muitos que partilhavam depois o produto do
trabalho coletivo. Mas a novidade é que a partir de determinado momento cada
homem começou a refletir sobre o seu papel no âmbito da vida coletiva. A
reflexão implica necessariamente numa auto referência consciente que pode
evoluir para o comportamento egoísta. Posteriormente, com o advento da
agricultura, a domesticação dos animais e o progresso tecnológico industrial, o
homem sentiu-se mais independente. As facilidades industriais e comerciais do
mundo moderno esconderam ainda mais a vinculação do bem estar pessoal à
contribuição de todos os membros da coletividade. O homem tornou-se
individualista ao esquecer que sua
sobrevivência depende dos demais membros do grupo. Não obstante, ainda hoje a
sustentabilidade da vida pessoal depende, sim, da solidariedade grupal. Embora o
homem não sinta esta dependência tanto quanto antes, ela é ainda fundamental
para a perpetuação da espécie. Mas, perdido o sentimento profundo de ser o trabalho
coletivo a garantia para a sobrevivência individual, o homem precisa esforçar-se,
agora, para retomar o comportamento cooperativo e solidário, mediante determinação
pessoal. Na verdade, diante da falsa independência recentemente adquirida, a
solidariedade deixou de ser um comportamento espontâneo; ela tem que ser
reaprendida e praticada pela força de uma proposta consciente inspirada no
ideal humanístico comunitário. Lamentavelmente, até agora, este ideal tem sido
mais discutido teoricamente do que praticado! Daí porque a realidade social do
homem, deformada pelo individualismo, ainda está muito distante de uma interdependência
comportamental entre os indivíduos, conscientemente administrada e vivida
voluntariamente sob o imperativo ético inerente à condição humana. Acostumados
às facilidades da vida moderna os homens se esqueceram de que essas facilidades
apenas ocultam a fragilidade original do indivíduo isolado. Exemplificando, para
desfrutar o mínimo conforto de saborear um simples pãozinho cada um depende do
trabalho coordenado de agricultores, transportadores, operários da indústria do
trigo, padeiros e todos quantos contribuem com o fabrico dos implementos que
tornam possível essas atividades... um exército de colaboradores. O impacto de
um colapso eventual do parque industrial e dos centros de excelência em
serviços indispensáveis ao bem estar pessoal e coletivo bastaria para relembrar o homem de
como sua independência é ilusória. Não obstante, seduzido pelo crescimento
econômico e tecnológico, o homem não dá a atenção devida às demandas éticas
sociais impostas pela condição humana[2]. Um
analista atento vê que a orientação vigente é suicida, e está minando
lentamente as relações entre os homens e
entre estes e a natureza, inviabilizando a vida no planeta. Essa degringolada
parece óbvia, no entanto é ignorada pelo individualismo reinante. Urge que
todos se capacitem da realidade evidente para o analista atento: “daqui por
diante é crescer em saber, consciência ética social, solidariedade e respeito à
natureza, ou morrer.” Esse comportamento implica num processo complexo caracterizado
pela prática de hábitos culturais que
favoreçam as relações humanas comunitárias e a defesa do meio ambiente. O divisor de águas é o exercício da consciência
livre e responsável cuja prática deve alinhar-se nas diretrizes da própria
Evolução. Nessa perspectiva, lamentavelmente, o modelo cultural baseado na
aspiração ao humanismo integral construído pelo exercício do diálogo entre os
homens e pelo respeito à natureza é ainda um ideal distante. A maioria dos
homens não ultrapassou o estágio descrito por Aristóteles e Hobbes, caracterizado
pela ideia de ser “o homem o lobo do homem”. Salvas as exceções dos que
atingiram certa maturidade psicossocial, as relações interindividuais são
superficiais e descomprometidas. Comumente os supostos diálogos não passam de
monólogos paralelos, quiçá improvisados pelos interlocutores para
convencerem-se a si mesmos de possuírem virtudes nas quais eles próprios não
acreditam. Assim, pela inconsequência no desempenho de sua própria condição, os
homens desatendem à sagrada missão que lhes coube no processo evolutivo, de
participar criativamente da realidade universal mediante a elaboração de formas
de convivência baseadas na solidariedade entre as pessoas. Fica evidente que
nessas circunstâncias torna-se difícil a tarefa pedagógica de converter indivíduos
inautênticos e sem fidedignidade à prática de um comportamento solidário
calcado na Verdade e na Justiça. Mas
essa conversão é fundamental para que o Homo Sapiens sapiens não se configure
como uma “variante genética inviável”.
Depois
de considerar longamente a condição humana e a caminhada para a humanização, qualquer
observador experto percebe a derrocada em que a humanidade está escorregando ao
cultivar os paradigmas da competição aética e do acúmulo de bens materiais. Em
verdade, caminhamos demais para um retorno à vida simples sugerida por
Diógenes, mas ainda é muito longa a distância a percorrer até a organização
solidária da coletividade humana. Tropeçamos hoje na falta de bom senso
cristalizada nos paradigmas da economia capitalista globalizada. Todavia, é
forçoso reconhecer, a corrupção que permeia a prática dos sistemas político,
social e econômico é mais danosa ao processo de humanização do que a orientação
embutida nos próprios sistemas. Aqui está
o maior obstáculo. Os sistemas podem ser manipulados, mas a disposição de mudar
o comportamento ético deve ser abraçada livremente pelo homem. E disso depende
um redirecionamento da história da humanidade. Uma análise cuidadosa da situação
a que chegamos denuncia que se se mantiverem inalterados os dados apresentados
pelos indicadores educacionais, sanitários, demográficos, socioeconômicos e políticos
atuais, a humanidade está, hoje, diante de desafios que ameaçam a sobrevivência
da espécie Homo Sapiens sapiens. Diante dessa perspectiva, ciente das
limitações humanas conforta-nos acreditar nos imponderáveis[3]. Eles
atuam sub-repticia e inesperadamente, promovendo a ordem inerente à Consciência
Universal... a mesma que conduziu a Evolução desde a desorganização da matéria
primitiva até a vida consciente[4]. Essa
visão intelectual aposta na potencialidade cooperativa do homem que viabilizará,
afinal, os desígnios da Consciência Universal. Abordagem que abre espaço para
uma visão mística da realidade. Não é mais na vida natural que o homem busca
sua realização, mas na funcionalidade inteligente de uma construção psicossocial complexa com desdobramentos místicos.
Everaldo Lopes