sábado, 25 de janeiro de 2014

Incoerência da proposta cínica

Diógenes[1], o cínico, filósofo da Grécia antiga despreza os cânones sociais, cultiva a autossuficiência e menospreza a morte. A virtude para ele consiste na simplicidade natural da vida sem demandas supérfluas, o que equivale a um retorno aos hábitos primitivos. Embora reconheçamos ser salutar para o indivíduo o cultivo civilizado da autossuficiência e o despojamento inerente à vida simples, no modo cínico de proceder o desdém às normas sociais é um estorvo à completa humanização. Esta implica exatamente na interdição dos impulsos instintivos e construção de um modelo cultural humano social cujos preceitos favoreçam a convivência pacífica e cooperativa. A orientação política e econômica responsável pelo desenho social moderno demarcado por desigualdades criadas pelo próprio homem é ridícula ao olhar crítico de um humanista esclarecido. E mostra claramente que, cedendo aos impulsos ambiciosos, os homens estão destruindo a dimensão social do seu vir a ser existencial.
É compreensível que na era cibernética o homem esteja abrindo espaço cada vez maior para a máquina cuja utilização inteligente e disciplinada amplia sua capacidade produtiva. As conquistas tecnológicas fazem parte do processo evolutivo. O homem já não saberia mais viver sem o equipamento tecnológico moderno. No seu caminhar histórico a humanização é o resultado de um processo cultural que está caminhando na direção oposta à vida simples, natural. Mas é indispensável preservar a colaboração que existiu entre os membros da coletividade humana primitiva, necessária para garantir a sobrevivência da espécie.
A conquista da consciência reflexiva constituiu-se no ponto crítico da Evolução. Presumivelmente, esta conquista evolutiva ocorreu no período em que o homem vivia da caça, da pesca e da coleta de frutos silvestres. Então, todos estavam visceralmente conscientes  de que os laços de cooperação e solidariedade são vitais para a sobrevivência do indivíduo. Para coletar frutos suficientes, pescar para toda coletividade  e caçar animais de grande porte impunha-se a necessidade da colaboração de muitos que partilhavam depois o produto do trabalho coletivo. Mas a novidade é que a partir de determinado momento cada homem começou a refletir sobre o seu papel no âmbito da vida coletiva. A reflexão implica necessariamente numa auto referência consciente que pode evoluir para o comportamento egoísta. Posteriormente, com o advento da agricultura, a domesticação dos animais e o progresso tecnológico industrial, o homem sentiu-se mais independente. As facilidades industriais e comerciais do mundo moderno esconderam ainda mais a vinculação do bem estar pessoal à contribuição de todos os membros da coletividade. O homem tornou-se individualista ao esquecer  que sua sobrevivência depende dos demais membros do grupo. Não obstante, ainda hoje a sustentabilidade da vida pessoal depende, sim, da solidariedade grupal. Embora o homem não sinta esta dependência tanto quanto antes, ela é ainda fundamental para a perpetuação da espécie. Mas, perdido o sentimento profundo de ser o trabalho coletivo a garantia para a sobrevivência individual, o homem precisa esforçar-se, agora, para retomar o comportamento cooperativo e solidário, mediante determinação pessoal. Na verdade, diante da falsa independência recentemente adquirida, a solidariedade deixou de ser um comportamento espontâneo; ela tem que ser reaprendida e praticada pela força de uma proposta consciente inspirada no ideal humanístico comunitário. Lamentavelmente, até agora, este ideal tem sido mais discutido teoricamente do que praticado! Daí porque a realidade social do homem, deformada pelo individualismo, ainda está muito distante de uma interdependência comportamental entre os indivíduos, conscientemente administrada e vivida voluntariamente sob o imperativo ético inerente à condição humana. Acostumados às facilidades da vida moderna os homens se esqueceram de que essas facilidades apenas ocultam a fragilidade original do indivíduo isolado. Exemplificando, para desfrutar o mínimo conforto de saborear um simples pãozinho cada um depende do trabalho coordenado de agricultores, transportadores, operários da indústria do trigo, padeiros e todos quantos contribuem com o fabrico dos implementos que tornam possível essas atividades... um exército de colaboradores. O impacto de um colapso eventual do parque industrial e dos centros de excelência em serviços indispensáveis ao bem estar pessoal e  coletivo bastaria para relembrar o homem de como sua independência é ilusória. Não obstante, seduzido pelo crescimento econômico e tecnológico, o homem não dá a atenção devida às demandas éticas sociais impostas pela condição humana[2]. Um analista atento vê que a orientação vigente é suicida, e está minando lentamente  as relações entre os homens e entre estes e a natureza, inviabilizando a vida no planeta. Essa degringolada parece óbvia, no entanto é ignorada pelo individualismo reinante. Urge que todos se capacitem da realidade evidente para o analista atento: “daqui por diante é crescer em saber, consciência ética social, solidariedade e respeito à natureza, ou morrer.” Esse comportamento implica num processo complexo caracterizado pela prática de hábitos culturais  que favoreçam as relações humanas comunitárias e a defesa do meio ambiente.  O divisor de águas é o exercício da consciência livre e responsável cuja prática deve alinhar-se nas diretrizes da própria Evolução. Nessa perspectiva, lamentavelmente, o modelo cultural baseado na aspiração ao humanismo integral construído pelo exercício do diálogo entre os homens e pelo respeito à natureza é ainda um ideal distante. A maioria dos homens não ultrapassou o estágio descrito por Aristóteles e Hobbes, caracterizado pela ideia de ser “o homem o lobo do homem”. Salvas as exceções dos que atingiram certa maturidade psicossocial, as relações interindividuais são superficiais e descomprometidas. Comumente os supostos diálogos não passam de monólogos paralelos, quiçá improvisados pelos interlocutores para convencerem-se a si mesmos de possuírem virtudes nas quais eles próprios não acreditam. Assim, pela inconsequência no desempenho de sua própria condição, os homens desatendem à sagrada missão que lhes coube no processo evolutivo, de participar criativamente da realidade universal mediante a elaboração de formas de convivência baseadas na solidariedade entre as pessoas. Fica evidente que nessas circunstâncias torna-se difícil a tarefa pedagógica de converter indivíduos inautênticos e sem fidedignidade à prática de um comportamento solidário calcado na Verdade e na Justiça.  Mas essa conversão é fundamental para que o Homo Sapiens sapiens não se configure como uma “variante genética inviável”.
Depois de considerar longamente a condição humana e a caminhada para a humanização, qualquer observador experto percebe a derrocada em que a humanidade está escorregando ao cultivar os paradigmas da competição aética e do acúmulo de bens materiais. Em verdade, caminhamos demais para um retorno à vida simples sugerida por Diógenes, mas ainda é muito longa a distância a percorrer até a organização solidária da coletividade humana. Tropeçamos hoje na falta de bom senso cristalizada nos paradigmas da economia capitalista globalizada. Todavia, é forçoso reconhecer, a corrupção que permeia a prática dos sistemas político, social e econômico é mais danosa ao processo de humanização do que a orientação embutida nos próprios  sistemas. Aqui está o maior obstáculo. Os sistemas podem ser manipulados, mas a disposição de mudar o comportamento ético deve ser abraçada livremente pelo homem. E disso depende um redirecionamento da história da humanidade. Uma análise cuidadosa da situação a que chegamos denuncia que se se mantiverem inalterados os dados apresentados pelos indicadores educacionais, sanitários, demográficos, socioeconômicos e políticos atuais, a humanidade está, hoje, diante de desafios que ameaçam a sobrevivência da espécie Homo Sapiens sapiens. Diante dessa perspectiva, ciente das limitações humanas conforta-nos acreditar nos imponderáveis[3]. Eles atuam sub-repticia e inesperadamente, promovendo a ordem inerente à Consciência Universal... a mesma que conduziu a Evolução desde a desorganização da matéria primitiva até a vida consciente[4]. Essa visão intelectual aposta na potencialidade cooperativa do homem que viabilizará, afinal, os desígnios da Consciência Universal. Abordagem que abre espaço para uma visão mística da realidade. Não é mais na vida natural que o homem busca sua realização, mas na funcionalidade inteligente de uma construção psicossocial  complexa com desdobramentos místicos.
 Everaldo Lopes




[1] Diógenes de Sinope 404 ou 412 a.C.323 a.C. também conhecido como Diógenes, o Cínico. Pregou o cinismo, doutrina voltada para a vida em estrita concordância com a natureza e por isso opunha-se radicalmente aos valores e às regras sociais vigentes.
[2] Ser consciente e responsável
[3] Que ou aquilo que não pode ser calculado, nem previsto, mas cujo efeito pode ser determinante.

[4] Ideia desenvolvida nos textos intitulados “Devaneios especulativos I,II e III”