segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

O diálogo possível


É notório ser o diálogo um caminho para o convívio solidário. Todavia, é desconcertante o despreparo humano para dialogar. A prática corrente (equivocada) da liberdade destrói o respeito mútuo sem o que não há diálogo. Neste clima, prevalece a inobjetividade entre os atores sociais interessados em fazer valer seu próprio benefício. Assim posicionados, sobram críticas recíprocas, com prejuízo da comunicação. O desencontro é a regra... sem acordo, as questões discutidas permanecem abertas e os indivíduos isolados em suas “opiniões”... cada um preocupado  em justificar a própria excelência.
Um bom começo para mudar esse quadro será assumir racional e emocionalmente que somos todos, em potencial, “farinha do mesmo saco”. Reconhecimento que não significa condescendência, ou relaxamento ético, mas vacina contra a presunção de alguém ser melhor do que o outro, numa conjuntura definida, porque conseguiu “segurar a barra” e não caiu na tentação. Ninguém é melhor do que ninguém; todos somos capazes de praticar virtudes e de escravizar-nos a vícios... Depende de um esforço concentrado agir de acordo com padrões aceitáveis... postura ética que está sempre por um fio, e depende muitas vezes de circunstâncias. Nesta perspectiva, as pessoas que não se acertam, estão focadas em determinar quem tem a culpa do que. Orientação diversa do tom solidário e compassivo da relação comunitária.
Desde que somos todos carentes, o mais inteligente é nos tornarmos parceiros de uma mesma causa, a da solidariedade comunitária. Será muito mais favorável a todos um comportamento cooperativo, com base na partilha de obrigações e benefícios. Mas a linearidade dessa conclusão racional não encontra respaldo no sentimento. O egoísmo primário do homem nas relações inter-humanas o arrasta mais para a ambição do que para a equanimidade. Por isso, predomina a competição que, no plano econômico leva à concentração dos bens em poucas mãos. Comportamento culturalmente institucionalizado na prática do capitalismo global.
Numa perspectiva de culpa e castigo, as pessoas, que estão interessadas em se livrarem de suposta culpa antecipam-se, agressivas, muitas vezes, projetando no outro seus próprios erros... E desta forma estão mais próximas de se excluírem, reciprocamente, do que de se engajarem numa política de inclusão.
A visão crítica da questão mostra que a coisa mais sábia a fazer para preservar o diálogo é deslocar a atenção dos indivíduos interagentes, do plano ético para o plano ontológico[1]. Neste plano o fundamental não é apontar deslizes éticos, mas buscar compreender o outro nas suas fraquezas... não para desculpá-lo, mas para oferecer-lhe a oportunidade de redimir-se mediante iniciativa pessoal de mobilização das próprias forças morais para corrigir eventuais deslizes. Com este objetivo, cada um terá de ampliar o auto-conhecimento e a auto-disciplina... e, arrimado na autonomia pessoal e na liberdade responsável abre espaço para o diálogo. Nesse campo de negociação as pessoas se encontram para descobrir a verdade objetiva e não para tentar impingir opiniões viciadas por interesses pessoais, consciente ou inconscientemente. A ascese exigida de cada homem para realizar o que poderíamos chamar uma “revolução copernicana”[2] é a prova de fogo em que a humanidade tropeça na sua caminhada heroica.
Cada um poderá reconhecer em si mesmo as condições para a relação dialogal, interrogando-se: 1) Sou capaz de ouvir o que o outro tem a dizer, contrariando-me, disposto a revisar posicionamentos anteriores? 2) Sou capaz de manifestar meu entendimento contrário ao do outro, sem ser agressivo, ao contradizê-lo?  3)Sou capaz de adiar uma discussão que me pareça estéril, face à inflexibilidade do outro, propondo a interrupção da conversa iniciada, sem guardar ressentimentos, e esperar um momento mais oportuno para retomá-la? 4) Sou capaz de manter certa distância entre o meu eu mais profundo e os problemas suscitados na interação com o outro, sem  me identificar com os sentimentos hostis que a discussão me possa induzir? Se a resposta a todos esses itens for afirmativa, com certeza será possível dialogar. Esses pré-requisitos são necessários para que prevaleça, no diálogo, o compromisso com a verdade... Porém eles não são espontâneos, demandam, como vimos, um esforço dirigido no sentido do auto-conhecimento e da auto-disciplina.
Na operação dialogal é essencial não confundir o eu sujeito com a mente[3], sendo esta a expressão do falso eu. Tomarei emprestado de Eckhart Tolle uma imagem que poderá tornar mais claro o que estou querendo dizer. Comparemos a psique humana total com um grande lago de águas profundas. Na superfície podem ocorrer ondulações, certa agitação provocada pelos ventos, mas na profundidade as águas permanecem tranquilas. Tomemos a superfície da massa líquida como sendo a mente construída à base de preconceitos traduzidos em normas, crenças e valores culturais. Enquanto isso, o fundo do lago representa o eu transcendental, a consciência pura, anterior à absorção dos conteúdos volúveis da mente consciente. Nessa profundeza deverá prevalecer a paz interior de cada um de nós, a alegria de ser.
Ao atrelar a nossa auto-estima aos preconceitos, crenças e valores culturais ficamos vulneráveis às suas influências.  Essa “identificação da pessoa com sua mente” equivale, na imagem utilizada, permitir que as marolas da superfície do lago consigam agitar suas águas profundas. O que seria um desastre ecológico total. Não obstante, provocamos em nós mesmos este desastre quando permitimos que nossas idéias, preconceitos, sentimentos tomem conta de nós e comandem nossas relações com os outros. É a isto que os místicos chamam “identificação com a mente”, situação em que perdemos a perspectiva de uma auto-avaliação honesta, e mergulhamos na inobjetividade... Dessa forma anulamos a chance do diálogo.
Na busca da paz e serenidade, a maior luta é a que travamos conosco mesmos no sentido de ser fiel à verdade, à justiça e à bondade de que formos capazes, sem o que também não há diálogo possível.
           


[1] Relação empática, inter-subjetiva, pessoal, baseada no respeito e não no dever.
[2] Analogia com o resultado da colaboração de Copérnico, autor da teoria Heliocêntrica, contrapondo-se à concepção clássica, então, de ser a Terra o centro do Sistema Planetário.
[3] Mente no sentido do conjunto de condicionamentos culturais que ensejam respostas egóicas ou reações estereotipadas.