Ao nascer o ser humano
carrega em potencial a consciência e
a liberdade; depois, define ao longo
do tempo o “homem” que será. Mediante a capacidade de pensar e refletir o ser
consciente faz escolhas entre as alternativas que se apresentam na sua
circunstância, construindo-se a partir da própria existência. Neste sentido tem
razão Sartre ao anunciar que no homem “a existência precede a essência”.
Na perspectiva
existencialista há que distinguir a vertente materialista, da cristã. Em ambos
os casos a consciência e a liberdade estão intimamente ligadas e são
fundamentais. Mas na linha espiritualista, o exercício da liberdade deve
ater-se a uma ordem inerente às Leis eternas da Criação, que precedem a
existência e permanecem influindo no vir a ser existencial, sob a forma de
valores universais formadores do pensamento humanístico e posturas éticas
correspondentes.
Para orientar-se no seu
devir, o homem necessita de critérios seguros que o capacitem a julgar e
decidir. Pressionado por esta necessidade, filosofa, busca descobrir por meio
da razão os critérios fidedignos de valor, mas permanece atônito ante a
responsabilidade que a liberdade lhe impõe. O mistério do “ser” esconde a verdade primordial, suporte absoluto dos
valores essenciais infalíveis do comportamento humano. Mas ninguém explica o “ser
em si”, nem consegue comunicar a intuição através da qual ele se revela ao
homem. O cientista debruça-se sobre o Universo, disposto a esmiuçá-lo e
encontrar o fundamento racional do “ser”; esbarra, porém, no fenômeno que
manifesta o “ente” sem revelar a sua essência. O místico mergulha em dimensões
vertiginosas da subjetividade, e emerge com a vivência de maravilhas incomunicáveis.
Nem o cientista mais criativo e determinado, nem o místico mais espiritualizado
são capazes de traduzir numa linguagem dialética o enigma do “ser”. É emblemático o exemplo de São Tomaz de Aquino
(1225 – 1274), o Filósofo mais importante da Idade Média. Segundo seus
biógrafos, ao despertar de um êxtase místico ele teria confidenciado a um discípulo
dileto que não escreveria mais nada, porque tudo que havia escrito lhe “parecia
palha” ante o que vira na sua experiência mística. É importante registrar que a
esta altura ele já publicara os inúmeros e alentados volumes da Suma Contra os Gentios e da Suma Teológica, suas principais obras.
O “ser” enquanto “ser” é
indefinível, todavia todos vivem a realidade deste enigma sob o impacto de um
olhar compassivo e amoroso, num abraço emocionado, ouvindo uma melodia tocante...
Vivendo estes momentos ímpares, por um átimo, o homem vislumbra a
transcendência do “ser” na vivência de plenitude do “si mesmo”[1], uma experiência pessoal
intraduzível, mas indiscutível. Vivência a partir da qual se abrem possibilidades
infinitas de realização existencial, mediante escolhas livres que,
rigorosamente, devem ser responsáveis em relação aos valores universais que
presidem a dinâmica social do homem. A criatividade no exercício da liberdade
consciente tem suas raízes nos estratos profundos da psique individual. Mas só quando
o homem vive em plenitude a relação com os “outros” e com o mundo, suas
virtudes criativas ganham dimensão objetiva.
Parece óbvio o fosso que
separa a materialidade do servomecanismo biopsíquico (o Sistema Nervoso
Central), e suas funções psíquicas superiores, intelectual, afetiva e volitiva.
Mas as especulações cosmogônicas evolutivas contradizem a separação entre a
consciência e o mundo... O homem é um prolongamento do cosmo; através dele o
Universo toma conhecimento de si mesmo. Portanto, por definição, a separação entre a consciência
(espiritual), e o mundo físico é apenas uma aparência fenomênica, tendo em
vista a ideia que repousa na crença em um absoluto, Princípio único
constitutivo de toda a realidade.
O homem comum vive a unidade
consciência / mundo nas práticas familiares, sociais, profissionais, e
políticas, definidas em modelos culturais. Nesta trilha, ao longo da sua
História, o ser consciente, constrói uma cultura feita de tabus, mitos, hábitos
e costumes, supostamente capazes de atender à necessidade de entender a
realidade e cultivar valores que deem um “sentido” às escolhas feitas na condução
do vir a ser existencial. Assim a cultura emerge como uma linguagem através da
qual o homem se relaciona com os outros e com a Natureza. Inventariando a
interpretação dos fenômenos físicos e psíquicos, a cultura cria uma interface entre
a consciência e o mundo, aproximando-os. No vir a ser temporal a conexão assim
construída se traduz, objetivamente, nas transformações adaptativas que afetam
a Natureza e o homem, com reflexos na sua organização social. Neste sentido a “linguagem”
comunitária configura o ideal de convivência humana fundamentada na prática da
solidariedade expressa nas relações interpessoais amorosas, verdadeiras e
justas. Mesmo cumprindo formalmente seu papel social, familiar, profissional e
político, sem viver a experiência solidária o homem termina sua jornada
histórica, consciente do dever cumprido, mas cônscio, também, de não haver
alcançado a plenitude existencial almejada. Donde se conclui que a realização
plena da Humanidade repousa na prática do amor que transcende o apelo dos
sentidos, e vai além das interações puramente éticas. A razão é indispensável
para quantificar o mundo físico e distinguir o verdadeiro e o falso, expandindo
as possibilidades humanas de resolver problemas práticos. Mas a verdadeira
realização do homem é eminentemente intuitiva afetiva, liberta da tirania dos
sentidos, uma experiência mística. Nesta perspectiva a razão e o sentimento não
conflitam necessariamente; porém não basta que afinem pelo mesmo diapasão, é
preciso que ambos se integrem na intuição reveladora da unidade pessoal que os
envolve. Na construção desta unidade[2] a razão e o sentimento
se complementam nos seus limites interagindo livremente. Assim, a essência do homem é criativa, algo mais
do que a interação de funções psíquicas complexas. Excede qualquer definição
formal, e, paradoxalmente, é imanente e transcendente aos fenômenos psíquicos superiores
que tornam possível o exercício da consciência
e da liberdade.
Everaldo Lopes