sexta-feira, 24 de outubro de 2014

A missão do homem

 “ A vida  nada mais  é  do  que  uma  sombra  que   passa ; um  pobre  comediante  que  se  pavoneia  e  se  agita  no breve  instante  que  lhe  reserva  a  cena  e , depois ,  nada  mais  se  ouve  dele . É  uma  história  contada  por  um    idiota , cheia  de  fúria  e  tumulto , nada significando.”
William  Shakespeare


A fala de “Macbeth” na cena V do ato V da tragédia que leva seu nome está impregnada de um pessimismo perturbador. A repercussão dessa peça teatral no mundo inteiro durante os  quase quatro séculos que se seguiram à sua publicação dá testemunho de que o texto escrito por Shakespeare mexe com a psique humana. Ao reconhecer o brilho estético da obra do grande dramaturgo Inglês, cremos oportunas algumas considerações paralelas que destacam um  olhar positivo sobre a vida.
O otimismo e o pessimismo são modos de encarar a realidade que interferem na conduta das pessoas. Ninguém pode negar que o otimismo e o pessimismo exagerados podem levar, respectivamente, à negligência leviana e à inação depressiva. Por isso é oportuna a intervenção da crítica na orientação prática da conduta pessoal tanto dos que se inclinam ao otimismo, como dos que são mais propensos ao pessimismo. Esta intervenção dá lugar ao que poderíamos chamar de otimismo e pessimismo críticos, pois, não obstante a disposição de espírito subjacente em cada caso, o sujeito consciente pode sempre fazer uso da liberdade pessoal para escolher um comportamento diferente. No processo evolutivo do qual participamos cabe ao homem refletir  livre e responsavelmente antes de fazer suas escolhas.
Distinto dos demais seres vivos, o homem é reflexivamente consciente da própria finitude e capaz de avaliar tanto o acerto como o desacerto do seu comportamento. A consciência reflexiva e o livre arbítrio, aptidões inéditas no universo pré-humano permitem ao homem escolher e deliberar sobre o próprio comportamento.  Essa capacidade  torna possível a dimensão ética inerente à condição humana.  Independente de sua inclinação otimista ou pessimista, o homem ético está sempre predisposto a escolher dentre as várias alternativas comportamentais que se apresentam cada momento, uma que satisfaça os valores assumidos.  
Senhor do seu vir a ser o homem pode mudar o rumo dos acontecimentos e cumpre fazê-lo em favor da própria Evolução. No desempenho desse papel contextualiza-se com autenticidade num projeto que o transcende, empenhando na realização dessa escolha seus dons superiores racionais, afetivos e volitivos. Neste projeto, o referencial histórico que dá sentido ao devir peculiar do homem e que o dignifica é a disposição de construir a comunidade de todos os homens. Solidária, centrada na verdade e na justiça, a organização comunitária é indispensável à sobrevivência da espécie Homo Sapiens sapiens. Agindo dessa forma o homem escapa da “idiotia” e colabora para dar seguimento à Evolução, dignificando o vir a ser pelo qual se torna responsável. Nesse ritual de dedicação aos valores humanísticos éticos, o fator decisivo do sucesso é a vivência genuína de solidariedade que cada um, idealmente, é capaz de experimentar na convivência social. A fidelidade a esse vínculo recíproco de pessoas  dignifica o modo de ser pessoal de cada um. Fora desse contexto a vida efêmera do homem realmente “nada  mais  é do que uma sombra que passa ”. Esquivando-se de sua missão no processo evolutivo o homem parecerá sem dúvida “um  pobre  comediante  que  se  pavoneia  e  se  agita  no  breve   instante  que   lhe  reserva  a cena  e ,  depois , nada  mais  se  ouve dele.”   
Com prazo marcado para realizar sua missão temporal, o homem precisa estar atento às oportunidades de realização dos projetos construtivos que se lhe oferecem. Ao priorizá-los, sem perder o foco comunitário cada um poderá desfrutar coerentemente o prazer dos sentidos e as alegrias espirituais, ancorado no exercício do autoconhecimento e da disciplina emocional.  
A inquietação perdura, a consciência da finitude e as incertezas inerentes continuam estimulando o desejo humano, impossível, de eternidade e de segurança total. Para os que têm fé, a superação desse desassossego é reforçada pela expectativa de integração transtemporal num absoluto unitário (Deus) no qual se desfazem todas as contradições.  Essa esperança se alimenta da confiança num clímax representado pela integração pessoal num todo significativo absoluto que, do ponto de vista estritamente racional é tão impossível provar, como negar. Todavia, o cientificismo ao qual estamos condicionados dispõe que “os métodos científicos podem e devem ser estendidos a todos os domínios do conhecimento”. Ora, isso implica na dificuldade racional de justificar a existência do cosmo e da vida. A matéria, por ser contingente, não se autoproduziu nem apareceu por geração espontânea. Tudo que existe no tempo e no espaço é finito e teve um começo, vem de algo anterior, tem uma causa; portanto retrocedendo no tempo até um primeiro momento  impõe-se concluir  que um absoluto criador[1] precedeu o universo conhecido ou lhe é concomitante. Esse é o argumento milenar da necessidade de uma primeira causa não causada, o motor imóvel proposto por Aristóteles, que não pode ser objetivado num experimento cientifico.
Provisoriamente confirmada em 14 de março de 2013, o Boson de Higgs  partícula elementar  que, teoricamente, surgiu logo após o Big Bang validaria o modelo padrão atual de partículas, e representaria a chave para explicar a constituição da massa das outras partículas elementares. Por isso, foi cognominada impropriamente a partícula de Deus. Denominação inadequada porque esta partícula não pode prescindir de um Absoluto criador, uma vez que sendo uma contingência por si só ela não existiria. Resta-nos, então, a proposta intuitiva do Poeta[2]  que na sua obra “A velhice do Padre Eterno”  nos diz: “Um dia, a humanidade inteira, numa só aspiração reunida há de fazer da razão e da fé os dois olhos da alma; da verdade e da crença os dois polos do mundo”! Mas permanecendo no terreno da razão, apoiados em especulações metafísicas, concebemos ser racionalmente defensável o objeto de fé que completa as lacunas do conhecimento objetivo da realidade.
Especulativamente ganha corpo a ideia de uma consciência universal que antecede e determina a ordem evolutiva desde a matéria primitiva até a organização comunitária da coletividade humana. Mas esta organização histórica, temporal, só se consumaria, à perfeição, prolongando-se na comunidade transtemporal de todas as consciências numa unidade absoluta. Um absoluto cuja transcendentalidade só pode ser vivida, como crença, mediante um ato de fé.  Todavia, com ou sem fé a vida humana só ganha significado quando preenche seu papel na Evolução Universal, promovendo a organização social comunitária da humanidade. Seguindo este roteiro comportamental, a vida do homem já não seria “...uma história  contada  por  um  idiota, cheia  de  fúria  e tumulto, nada significando” . O comportamento individual dignificado pela prática da solidariedade comunitária torna a vida humana uma consagração pessoal aos ideais de Verdade, de Beleza e Justiça que transcendem a contingência temporal, promovendo a plenitude da existência.
                   
 Everaldo Lopes




[1] O que existe em si e/ou por si, causa de si mesmo.
[2] Guerra Junqueiro