quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Dependência


Na medida em que progride a inversão da pirâmide etária, mais evidentes se tornam os problemas inerentes à convivência entre as gerações. Dividindo o mesmo espaço geográfico e social, as novas gerações convivem com um número cada vez maior de idosos. Estes esperam dos filhos e netos um tratamento atencioso, e seus descendentes dispõem de cada vez menos tempo para um convívio mais íntimo... As mudanças aceleradas de hábitos e saberes impostos pela revolução tecnológica os distanciam mais rapidamente do que no passado. Enquanto os jovens absorvem as novidades com rapidez, os idosos resistem... Paralelamente se instala uma frente de conflito caracterizada de um lado pelo desejo dos idosos de aproximação maior com os descendentes, e do outro, pelos interesses destes que os levam em outra direção, embora dediquem afeto aos vovôs. Os anciões argumentam que são credores do cuidado que dispensaram aos seus descendentes enquanto recém-nascidos, crianças e adolescentes. Os que participam desta reivindicação, aparentemente justa não se dão conta de um detalhe.  Tratando-se de crianças e jovens, pais e educadores prevêem conquistas e têm expectativas alvissareiras para o seu investimento e envolvimento atuais... Ao contrário, os cuidadores de idosos carentes convivem, inevitavelmente, com perdas dolorosas e com o espectro da morte do ente querido. Deles exige-se, portanto, um esforço adicional de elaboração da própria fragilidade diante do destino comum.
Os problemas suscitados pela relação entre as gerações merecem um olhar crítico, pois facilmente assumem um caráter piegas ou dramático. Envolvem interesses e necessidades das partes envolvidas, que precisam ser analisados com isenção emocional... Devem ser avaliados objetivamente a fim de evitar atitudes passionais. Os conflitos inerentes envolvem problemas afetivos, econômicos, sociais e educacionais, e seu enfrentamento depende do nível de auto-confiança e maturidade  das pessoas envolvidas. Uma abordagem superficial ensejaria erros grosseiros de avaliação...  
Do ponto de vista prático, não se discutem os cuidados básicos (alimentação, abrigo e proteção) com o recém nato e com as crianças... Estas atenções são inquestionáveis. Com variações mínimas, culturas diferentes nos quatro quadrantes da Terra colocam a responsabilidade desses cuidados sobre os ombros dos pais biológicos. O que à primeira vista parece razoável, uma vez que o filho foi gerado por iniciativa do casal, e a própria condição biológica da procriação gera laços fortes entre pais e filhos. Este contato inicial se prolonga num contexto educacional, durante a adolescência e a profissionalização, até que os jovens tenham condições de assumir as próprias vidas. Compete aos pais e ao Estado o apoio moral e material proporcionado aos jovens até sua plena maturidade psicossocial e preparo para o exercício de uma profissão. Com o passar dos anos aumenta a autonomia do filho e decresce a influência parental. Desta forma, a longo prazo, os pais podem se tornar dependentes intelectual e financeiramente dos filhos... Mas esta relação de dependência tem aspectos emocionais, sociais e existenciais específicos. O idoso desperta sentimento de aproximação diferente do que é suscitado por uma criança. A carência é a mesma, porém o contexto é diferente. Quando o idoso precisa de cuidados especiais dos filhos estes já estão sobrecarregados, comprometidos moral e materialmente com mulher e filhos, sua nova família. Este novo compromisso corresponde a obrigações inadiáveis do casal, reduzindo o tempo e recursos que gostariam de dedicar aos pais. Dificuldade que passou a configurar-se de forma ostensiva depois da transformação da família extensa (sucedânea da patriarcal), na família nuclear (dita departamental). A grande família que reunia duas e até três gerações ficou reduzida ao casal e seus filhos. No primeiro caso os idosos e as crianças faziam parte de um complexo no qual todos se ajudavam mutuamente, dividindo o mesmo espaço físico e a renda familiar. No segundo caso separaram-se os casais com seus filhos que passaram a ocupar espaços diferentes, assumindo os grupos nucleares, isoladamente, suas próprias responsabilidades. Em face desta nova configuração familiar surgiu o problema do suporte assistencial para os idosos que perderam a autonomia econômica e social de suas próprias existências e já não se enquadram funcionalmente em qualquer dos grupos desmembrados. As soluções praticadas comumente se resumem à “adoção” do idoso por um dos filhos ou a sua manutenção em casa ou apartamento só a ele destinado, sob a guarda de um cuidador remunerado.  Dependendo do status econômico, as despesas com duas “casas” podem criar ônus financeiro insuportável... Na maioria das vezes este é o caso... E a insolvabilidade financeira cria situações dramáticas para o filho que não dispõe dos recursos exigidos e para o idoso incapaz de administrar sua própria vida. Configuram-se, então, situações cruéis para os idosos que se sentem um fardo para os descendentes, e para estes que passam a ser tidos, eventualmente, como faltosos em relação ao cuidado com seus pais... Todos conhecemos os efeitos dissolventes deste conflito que se prolonga em dilemas inquietantes.
O exame desapaixonado da questão mostra a íntima relação dessas dificuldades com a organização social e por consequência com o modo como o Estado burocrático encara o problema. Afinal, do ponto de vista evolutivo a procriação objetiva a sobrevivência da espécie. O amor dos pais aos filhos e vice-versa é uma intercorrência virtuosa e desejável, porém, por mais amor que os pais dediquem ao seu rebento, este está predestinado a servir à sociedade e à espécie. Portanto, teoricamente o Estado responsável pela harmonia da vida coletiva deveria assumir a maior cota de responsabilidade nos cuidados com as frações inativas da sociedade. Utopicamente, os Poderes constituídos deveriam chamar a si a responsabilidade financeira e pedagógica em relação aos cuidados com os recém nascidos, crianças e adolescentes até a completa formação intelectual e profissional... Da mesma forma que o Estado deveria dar cobertura assistencial aos idosos que já não podem mais arcar materialmente com a própria manutenção, mas, contribuíram durante toda vida para a sustentação do aparelho administrativo da sociedade. A assistência aos idosos não pode se restringir a ações pontuais generosas de pessoas físicas (familiares ou filantropos), ou instituições (ONGs e iniciativas paroquiais). Obviamente, a ação do Estado não suprime o zelo dos familiares expresso em gestos solidários e carinhosos, mas deve ser suficiente para evitar o desamparo de infantes, adolescentes e de idosos carentes. Esta orientação pressupõe, num Estado democrático, atuação inteligente, íntegra e efetiva do Legislativo, do Executivo e do Judiciário. O problema se agrava pela prática democrática cínica, lamentavelmente, instalada no âmbito de uma economia de mercado que privilegia a competição (não raro aética), e o acúmulo de bens materiais nas mãos de uns poucos privilegiados, exploradores, direta ou indiretamente, de uma grande massa de excluídos envolvendo até crianças e adolescentes. Por conta da corrupção e da falta do rigor vigilante sobre a execução de programas educacionais e previdenciais específicos, malversam-se os recursos alocados para financiar uma política efetiva educacional, e de amparo aos idosos. Dessa forma, muitos “excluídos” (crianças, adolescentes e idosos) passam a depender da cooperação solidária dos espíritos sensíveis movidos por sentimentos caridosos. Estas considerações levam à necessidade de reavaliar o sistema econômico vigente, e fomentar uma conversão das pessoas aos comportamentos cidadãos que representam, em nível social, a concretização da cooperação e da partilha como fundamento das relações produtivas comerciais e industriais.
Considerando a amplitude da problemática exposta, já não se pode enquadrá-la como uma questão ética restrita à família. Abrange, necessariamente, a sociedade como um todo, capitaneada pela máquina burocrática do Estado. A solução destas questões demanda não apenas ajustes formais do comportamento das pessoas, porém uma conversão íntima dos homens à prática responsável da verdade e da solidariedade em todas as suas atividades coletivas, como a única forma de salvar a humanidade de uma derrocada que se anuncia, já, através de muitos sinais perceptíveis.
No momento histórico que vivemos a corrupção na máquina utilizada por políticos inescrupulosos em benefício próprio, e o grande número de excluídos da riqueza das Nações enseja situações em que se revela o desamparo ostensivo de infantes, adolescentes e idosos que não contam com a assistência dos familiares também carentes de recursos financeiros. Situações muitas vezes caracterizadas por dramas familiares incontornáveis.
O comportamento solidário identifica-se com a cidadania... Já não é apenas uma virtude opcional, mas condição “sine qua non” de sobrevivência da própria humanidade.
Everaldo Lopes