terça-feira, 23 de outubro de 2012

Aconselhamento Filosófico III


    Os filósofos nos legaram lições de sabedoria. Todas elas objetivam elaborar uma “visão de mundo”[1] para contextualizar a existência[2], ensejando a plena realização das  potencialidade humanas. O exemplo de Epicuro (342aC - 271aC) é emblemático. Ele filosofava exercitando-se para aumentar a autoestima em busca da felicidade serena, transformando em alegria o medo profundo diante de um devir incerto. Desde então, o pensamento evoluiu através de Escolas Filosóficas que buscaram entender a realidade cósmica e como nela se contextualiza o fenômeno humano. A partir de uma intuição fundamental, cada Pensador tem contribuído para o patrimônio cultural da Humanidade com mundividências diferentes.
Platão (470a.C-399a.C) defendeu o primado das essências. Acreditava na existência das formas puras (essências), abstratas, das quais os objetos materiais são cópias imperfeitas. Para ele conhecer a essência das coisas é o propósito mais belo do homem, embora as essências sejam inalcançáveis. Todavia o pensador pode delas se aproximar pelo conhecimento sem nunca alcança-las. No exercício da consciência responsável, a essência da felicidade estaria vinculada à realização intelectual e afetiva do ser consciente, à luz de critérios éticos. Orientação específica do modo de ser próprio do homem.
Aristóteles (384a.C-322aC) inventou a lógica, instrumento intelectual indispensável para a orientação da resposta coerente ao problema existencial cuja compreensão está sujeita a erros do pensamento crítico. É muito nítida a relação entre a atitude intelectual diante da realidade e as ações empreendidas pelos seres conscientes. Daí a importância da Lógica no desenvolvimento da existência de cada um. Nesta perspectiva a especulação metafísica realiza o coroamento do pensamento filosófico, construindo uma mundividência logicamente coerente e significativa na qual se contextualiza a “existência”[3].
Montaigne (1533-1692) filosofava auscultando os próprios pensamentos. Entendia a Filosofia como uma forma de cultura[4], e não uma ginástica intelectual acadêmica que tenta encher os vazios da vida com pensamentos abstratos. Para ele, filosofar é a arte de viver corretamente. Montaigne queria fazer um auto retrato do seu pensamento para evidenciar os meandros existenciais, entende-los e corrigi-los quando necessário. Seus Ensaios demonstram que qualquer movimento do espírito, e toda e qualquer mudança física pode ganhar cor na tela da consciência. Os sentimentos encarados sem censura, mas com respeito e inteligência são os grandes companheiros do homem sincero, autêntico, capaz de enfrentar a solidão. Como ele mesmo dizia: “Acho que não posso proporcionar nada melhor ao meu espírito do que permitir que ele dialogue consigo mesmo de modo centrado, em plena tranquilidade”... desta forma encontrará a coerência e a paz existencial.
Séculos depois John Locke (1632-1704), representante maior do Empirismo[5] distinguia conceitualmente informação e reflexão. Entendendo que a informação é adquirida pelos sentidos, e que a reflexão é o tratamento especulativo da informação colhida pela introspecção, através de processos mentais como pensar, acreditar, imaginar, querer. A informação adquirida através dos sentidos poderá ser comprovada na prática, levando a conclusões objetivas. Mas a reflexão é da ordem do subjetivo e não pode ser comprovada objetivamente. Estas incursões filosóficas estabeleceram a distinção entre o conhecimento teórico e o prático, conferindo ênfase especial ao pensamento objetivo, empírico, experimental.
Os Racionalistas vieram depois, liderados por Imannuel Kant (1724-1804). Para estes a razão, e não a experiência é o giz que escreve nas páginas em branco do cérebro. A reflexão ganhou força pondo o indivíduo no centro do processo social e político; diferentemente do teocentrismo dos primeiros séculos da idade Média. Com esta orientação ocorreu uma exaltação da razão pura. A razão prática ficou encrustada na razão crítica, na medida em que esta define princípios gerais que delimitam o comportamento humano conferindo coerência à prática existencial.
Realçando a afetividade, como uma reação ao racionalismo, quase ao mesmo tempo, Rousseau (1712-1770) e Hegel (1770-1831) inauguraram o Romantismo. Esta visão alimentou o nacionalismo que consolidou os Estados europeus. Neste mesmo contexto histórico, Jeremy Bentham (1748-1832) pregava que o objetivo do homem é promover “a maior felicidade para o maior número de pessoas”. Este Pensador inaugurou a Filosofia Utilitarista segundo a qual o conhecimento (pensamentos) e as ações humanas (práticas) valeriam pelo quanto pudessem melhorar a qualidade de vida da maioria das pessoas.
Na sequência, Arthur Schopenhauer (1788-1860), denuncia o otimismo das pessoas. Dizia ele: “Este otimismo é um escárnio ante o indescritível sofrimento da humanidade”. Assim como a criança teme a escuridão, “estamos sempre tentando dissipar a obscura perspectiva do nada” que ameaça a existência de instante para instante. Como? Apostando em formas de pensar que não passam de invenção articulada, aleatória, com alguma probabilidade de acerto. Situação que é ao mesmo tempo patética e ridícula para pessoas que se querem sérias. Mas que, assumida e realizada com entusiasmo o que seria “invenção articulada” passa a ser a verdade de cada um. 
Posteriormente, William James (1842-1910) e John Dewey (1859-1952) propuseram o Pragmatismo, a única Escola Filosófica moderna  exclusivamente americana como uma reação à presunção do Racionalismo e à ingenuidade do Romantismo. O pensamento pragmático assim se resume: “a verdade de uma teoria, a justeza de uma ação, e o valor de uma atividade são demonstrados pelo proveito imediato”. Orientação que abriu espaço para o desenvolvimento do Capitalismo.
No século XIX a descoberta das consequências da teoria da Relatividade, as formulações do princípio de indeterminação de Heisemberg e da Teoria Quântica coincidiram com a derrocada do iluminismo[6]. Ficou demonstrado que não há verdade absoluta, tudo muda em relação a tudo, dependendo da posição do observador. Essa perspectiva contrasta com a expectativa de que as Ciências pudessem resolver todos os problemas humanos. Os Existencialistas surgiram então nesta lacuna cultural. Rejeitaram o “Essencialismo” platônico; admitiram não existir nenhuma essência inicial, somente o ser fenomênico, pelo menos em relação ao homem. E no rastro deste posicionamento veio o questionamento inevitável. Se não há nenhuma essência somos todos ocos. Bradou, então, Nietzsche (1844-1900): “Deus está morto e nós o matamos.” O Universo é imprevisível e indiferente (que desespero!). Por que então levantar amanhã? Esse desespero foi pavor para Kierkegaard (1813-1855) Teólogo Dinamarquês, náusea para Sartre (1905-1980), absurdo para Cumus (1913-1960). Fundamentalmente, o existencialismo estava empenhado na busca de uma moral para fazer a coisa certa sem Deus. Fazer a coisa certa pelo próprio Bem e não por medo de punição ou por vantagens (ganho secundário). Isto demonstra que o  existencialismo conta com um núcleo de esperança e bondade encoberto na retórica depressiva. Os existencialistas descobriram de fato a moralidade na dignidade de ser consciente e livre. Kierkegaard acentuou a dificuldade de encarar a existência pura, sem essência, sem significado, sem propósito. O Teólogo transcendeu este impasse consolidando o conceito do nível “ético religioso” da existência.
E assim, nesta mesma linha existencialista, ao longo do tempo, o fenômeno humano (existencial) foi examinado e associado a diferentes maneiras de pensar. Há existencialistas materialistas e os há espiritualistas convictos vinculados a uma orientação religiosa. Kierkegaard é considerado por muitos como existencialista cristão e Gabriel Marcel (1889-1973) como o representante católico desta corrente do pensamento.
          Martim Buber (1878-1965) demonstrando que o “eu” se constitui existencialmente no confronto com um “tu”, descobriu o homem na sua relação identitária com o outro. Dessa forma, a busca assumida de alguém com quem se possa partilhar a experiência de existir assume importância renovada. A concepção buberiana da relação “eu-tu” pode ser considerada como a base psicossocial da solidariedade.
          Bérgson (1859-1941) ao pregar a originalidade do homem argumentou: “Que tipo de mundo existiria se a mecanização dos espíritos, imbuídos de uma tecnologia absorvente, avassalasse a raça humana levando os povos e as pessoas à uniformidade das coisas?” Este questionamento sugere que as diferenças estão inscritas no conceito amplo de Humanidade e devem ser superadas pelo efetivo exercício da consciência livre e responsável.
Como sempre os Filósofos nos põem diante de verdades que eles experimentaram ao longo de profundas meditações, mas discordam em muitos pontos. Com essa autoridade Pitágoras nos afirma: Nenhum homem é livre se não puder comandar a si mesmo. Para Hobbes, sem um poder que todos reverenciem, os homens guerreiam, inevitavelmente. O que contraria os que confiamos na possibilidade de evolução deste estado de beligerância para uma convivência comunitária através da prática solidária, encampada espontaneamente pelo próprio homem.
        O Aconselhamento Filosófico (A.F.) vale-se das lições de sabedoria que os Filósofos deixaram, para ajudar o homem na difícil tarefa de “existir” enfrentando problemas novos a serem absorvidos pelo vir a ser existencial. Desta forma o Aconselhamento Filosófico ampliou o significado da Filosofia Prática já utilizada pela Ética Aplicada. E está ajudando as pessoas a levarem uma vida examinada como preconizava Sócrates, fazendo uma ponte entre milênios de sabedoria e a necessidade de enfrentar os desafios atuais.  
             A verdade é que há intransigente necessidade humana de contato social. O próprio Nietzsche, enfatizando o caráter social do homem disse que        para viver só, ou se é um animal ou um Deus! Neste contexto, apresenta-se o vazio já denunciado por Schoupenhauer quando anunciou que o dinamismo da existência está montado em cima de uma “falta”. A assimetria no vir a ser existencial é que gera o dinamismo de atualização da condição humana e o preenchimento desta falta ou vazio representa um valor ancorado na razão ou na fé. Valor que confere significado aos comportamentos pessoais. Para Sartre o homem é aquilo que faz de si mesmo. Eu acrescentaria: a partir da facticidade e contando com o imponderável - elemento que supõe algo ultra fenomênico- essencial, para arrimar o desenvolvimento da existência. Acho que não se pode ignorar a possibilidade de um princípio metafísico inerente à existência para que o ser consciente possa construir sua própria essência. Mas só o outro preenche o vazio, a falta original. E isto aponta a capacidade humana de transcender-se, denunciando o Princípio metafísico já mencionado[7].
                        (Continua no próximo texto)
                        Everaldo Lopes


[1] Compreensão geral do Universo e da posição nele ocupada pelo homem, que   se expressa por um conjunto mais ou menos integrado de representações e que deve determinar, em última instância, a vontade e os atos do seu portador.(Aurélio)
[2]No pensamento de Kierkegaard (1813-1855) e no existencialismo contemporâneo, modo de ser próprio do homem. (Dic.Houaiss)

[3] Modo de ser próprio do homem.
[4] Categoria dialética de análise do processo pelo qual o homem, por meio de sua atividade concreta (espiritual e material ), ao mesmo tempo que modifica a Natureza, cria a si mesmo como sujeito social da História.
[5] Empirismo é um movimento que acredita nas experiências como únicas (ou principais) formadoras das ideias, discordando, portanto, da noção de ideias inatas.(Wikipédia)
          [6] Movimento intelectual do século XVIII, caracterizado pela centralidade da
          ciência e da racionalidade crítica no questionamento filosófico, o que implica
          recusa a todas as formas de dogmatismo, especialmente o das doutrinas
          políticas e religiosas tradicionais.
[7] Vide o texto Existência, esperança e fé, neste blog.