segunda-feira, 14 de julho de 2014

O vir a ser consciente e a fé

         O vir a ser consciente implica na responsabilidade de fazer escolhas éticas. Por sua contingência o homem é refém de incertezas e no momento de agir é frequentemente assediado por dúvidas inquietantes. Daí a importância de dispor de critérios confiáveis para as decisões pessoais. A necessidade de ser coerente no exercício da “condição humana”[1] leva o indivíduo a filosofar sobre o que é a verdade, sobre a consciência reflexiva e a liberdade, sobre os valores éticos e a justiça. Assim espera conhecer-se melhor, bem como a sua circunstância para proceder de forma esclarecida, objetivando uma existência rica de sentido.  Contudo o conhecimento, apenas, não o liberta da perplexidade, para vencer a ansiedade decorrente das dúvidas  de um devir incerto precisa estar empolgado por uma experiência emocional profunda de total credibilidade no seu critério de  escolha. Nesse ponto é oportuno lembrar o pensamento de Kierkegaard. Vivendo o drama da angústia humana ele propôs a evolução existencial do nível ético para o nível ético-religioso que demanda, pela fé, a presença no homem do “absoluto transcendental” sob a forma de um alter ego que garanta  definitivamente o marco  ético da escolha pessoal.
Para moldar o comportamento por um valor assumido responsavelmente é fundamental que o indivíduo possua autoconhecimento  e controle emocional. Intelectual e emocionalmente preparado, o homem torna-se mais apto a construir uma sociedade solidária, lutando na sua intimidade psíquica afetiva e no convívio social contra as imposturas que ameaçam a edificação do projeto comunitário. Projeto que é o objetivo central da maturidade humana, identificando-se com a solidariedade coletiva. Nesta luta o grande problema do homem é a sua própria educação e a das pessoas ao seu redor, no sentido de evitar os desacertos que perturbam a harmonia da vida em sociedade. Nem sempre as pessoas estão conscientes do mal que podem promover contra a organização e estabilidade da comunidade humana! Em muitos casos os deslizes comportamentais são estratégias de sobrevivência ingenuamente construídas, ou condicionamentos culturais que moldam o comportamento humano sem pedir licença. A intervenção corretiva dos comportamentos ingênuos inadequados e das condutas falazes culturalmente condicionadas  pressupõe a crença na capacidade das pessoas implicadas, em reconhecer e corrigir as falhas comportamentais em que incorrem. Não existe uma pedagogia totalmente eficaz para induzir as pessoas às mudanças de conduta que se fazem necessárias. Dessa forma, a intervenção corretiva dos comportamentos distorcidos não garante sempre os resultados desejados. Todavia não se deve perder a oportunidade de insinuar mediante o exemplo e um discurso coerente a responsabilidade existencial de todos os homens no processo evolutivo do qual fazem parte. Pode-se tentar sempre induzir as pessoas a examinarem suas vidas e compreender o papel que lhes toca diante dos percalços do convívio coletivo.  Aliás, esse é um ponto chave deste processo evolutivo. Junto com a alfabetização já se deve fazer um esforço pedagógico para incutir na criança o sentimento de ser parte de um todo coletivo maior do que seu mundinho individual, inserindo-a numa visão integrada da sociedade em que vive. Afinal, o futuro da humanidade depende do sucesso na educação das crianças. Educar não é apenas ensinar a ler e escrever, mas, principalmente despertar nos educandos a responsabilidade que lhes toca de contribuir inteligente e responsavelmente para a construção de um mundo em que prevaleça a verdade e a justiça, suprimindo as desigualdades injustas. Tudo isso vem junto com o amor que deve prevalecer entre as pessoas no lar, na escola, no trabalho e na sociedade. Mas, sendo o amor um dom, não se pode impô-lo; pode-se estimular, porém, o convívio coletivo ético responsável, o que já é meio caminho andado.
             Não se pode materializar a origem do Universo e a essência da consciência reflexiva, da razão, da afetividade e da vontade. De como tudo começou, e da substância dos atributos psicossociais altamente desenvolvidas no homem não podemos ter certeza racional. A análise  profunda da polaridade consciência-mundo desemboca sempre em especulações que escapam a qualquer tentativa de objetivação. Em verdade, através de uma abordagem estritamente racional não se pode afirmar ou negar  com certeza a intervenção de um absoluto criador. Embora se possa aventar a hipótese de um Dinamismo Absoluto Eternamente Criativo para justificar a existência do mundo e de nós mesmos. Essa ideia tem respaldo em especulações sobre a evolução da matéria desde o big bang até a vida consciente. Afinal, a ordem impressa nesse processo evolutivo pressupõe uma intenção e só há intenção na esfera da consciência. O que faz supor uma consciência universal. Estas especulações implicam numa integração misteriosa da transcendência e da contingência no universo, que se manifesta na consciência reflexiva sinalizando uma realidade transtemporal cuja afirmação implica num ato de fé.  Na experiência mística esta realidade identifica-se com a vivência do amor divino que arrebata o ser consciente por um sentimento de paz infinita. Mas para usufruir plenamente os benefícios desta experiência não basta aceitar intelectualmente uma cosmovisão espiritualista. É necessário vivenciar uma relação absoluta com o absoluto (abstração inefável) que realiza subjetivamente a intimidade do homem com Deus. E para tanto é preciso incorporar existencialmente as virtudes teologais[2] que excedem a mera determinação ética, e a humildade talhada numa formalidade ritual disciplinada. É preciso sentir estas virtudes como emanação do “ser pessoal”. É abismal a experiência psicossocial implícita na prática destas virtudes! Tomando o amor caridade como paradigma, para vislumbrar sua grandiosidade basta ler a segunda carta de Paulo aos Coríntios[3]. Confesso que fico tonto só de pensar a altitude existencial a que preciso alçar-me para viver caridosamente! Equivoca-se o beato que pratica o ritual místico, apenas formalmente, sem realizar a “experiência numinosa”[4] implícita na relação absoluta com o absoluto. O comportamento místico não é uma panaceia à qual se recorre para espantar o medo de morrer. Requer uma profissão de fé. A “firme opinião de que algo é verdade, sem qualquer tipo de prova ou critério objetivo de verificação”  resulta de uma experiência psíquica afetiva profunda que tem mais a ver com o amor e a coragem de ser do que com o medo!  E só esta experiência anula a angústia da “existência”. De outra forma a consciência reflexiva arrisca-se afundar no dilaceramento das contradições existenciais. Resumindo, a plenitude existencial exige a fé em um  Deus criador e misericordioso, absoluto que ultrapassa os limites do conhecimento estritamente racional como um absurdo lógico (conceitual) necessário, porém, para fechar a gestalt da existência ou vir a ser consciente. Na verdade pode-se conviver com o absurdo lógico, mas o absurdo existencial representado pela vivência de contradições insolúveis é desagregador da unidade pessoal porque implica em vivenciar a própria consciência irremediavelmente dilacerada pelas dicotomias[5] da “existência”. Tendo em vista banir o absurdo existencial é preciso assimilar pela fé o absurdo lógico para fechar a gestalt da existência pessoal. Todavia não controlamos a vivência de fé inabalável que não deixa espaço para a dúvida e nos coloca no seio de uma transcendência absoluta. Eis o impasse que é preciso superar para salvar a integridade existencial.  Sem o respaldo de um referencial absoluto os valores éticos não passam de atribuições humanas falíveis. Mesmo ao testemunhar a “palavra revelada”, sem a experiência mística (de fé) o homem continua sendo o sustentáculo da verdade absoluta, o que é um contrassenso porque limitado pela contingência histórica não poderia ser um referencial absoluto para suas afirmações. Por isso  Miguel de Unamuno afirmava: “Ter fé não é crer no que não se vê, mas criar o que não se vê”.  E como toda criação original, a fé tem raízes numa intuição ou revelação significativa veiculada pelos símbolos que transitam no pré-consciente. O que nos remete à  religiosidade inconsciente do homem, estudada por Viktor Frankl como reflexo da divindade na intimidade subjetiva.
 Everaldo Lopes               



[1] Capacidade de ser consciente reflexivo, racional, afetivo e volitivo.
[2] Fé, Esperança e Caridade (Amor).
[3] Entre outras afirmações destaco esta: “E ainda que eu distribuísse todos os meus bens entre os pobres, e ainda que eu entregasse meu próprio corpo à cremação se não tivesse caridade nada disso me aproveitaria.”
[4] Segundo Rudolf Otto (1869-1927)  teólogo e filósofo alemão, o sentimento único vivido na experiência religiosa, “a experiência do sagrado, em que se confundem a fascinação, o terror e o aniquilamento. Dic. Aurélio Sec. XXI
[5] Nascer sem pedir e saber que vai  morrer sem querer; aspirar a tudo poder e saber que reterá apenas uma pequena parcela de poder; desejar  tudo conhecer e saber que terá acesso a um conhecimento limitado.