sexta-feira, 1 de agosto de 2014

Reflexão sobre a condição humana

Do 12º andar no edifício residencial onde moro olho o entorno. em baixo a cidade se espalha exibindo o contraste entre as casas antigas com telhados marcados pelo tempo, e os arranha-céus que se elevam salpicando o desenho das ruas com as marcas da modernidade. Na via  pública movimentada,  destaca-se o colorido dos veículos que cruzam céleres em todas as direções. Vagueando o olhar sobre a paisagem familiar meu espírito flutua sem propósito definido; enquanto no fundo da mente inquisitiva carente de certezas oculta-se o desejo de mergulhar no mistério do mundo e dos homens. Ao pôr do Sol as janelas das casas e dos edifícios multiplicam-se em  pontos de luz. Ponho-me a pensar... dentro, milhares de seres como eu sentem a vida fluindo através das suas existências singulares... Para onde? Cada um tem um perfil próprio, mas os objetos de suas preocupações são os mesmos: a sobrevivência, o sexo, o poder, a necessidade de comunicação, tudo isso associado ao anseio de dar sentido à “existência” pessoal e ser feliz. Para a maioria das pessoas esse anelo está embutido e se cumpre numa rotina cultural monótona repetitiva, mas para muitas outras está inserido e se resolve numa missão plena de entusiasmo e envolvimento criativo. Cada uma demonstra humor peculiar de acordo com a tendência individual para a alegria, a esperança, a tristeza, ou o pessimismo. Assim vamos todos caminhando em busca da realização pessoal.
Existir por existir é um destino pobre demais para o esforço da Evolução que em bilhões de anos perseguiu a organização complexa da matéria primitiva, e a partir do caos original desembocou na vida, tornando possível afinal a manifestação da consciência reflexiva e do livre arbítrio. A ordem que permeia o movimento evolucionário sugere que nesse processo se contém um propósito transcendental que vai muito além  do devir aleatório. Não foi à toa que a consciência reflexiva e a liberdade desabrocharam na condição humana. A Evolução atingira a máxima complexidade biológica do indivíduo e teria agora que voltar-se para a perfeição da convivência social entre os homens. Tarefa que caberia a estes realizar contribuindo para a própria Evolução. Entre os animais que povoam a Terra há outras espécies sociais cuja organização depende de um determinismo instintivo. Mas entre os homens esta organização  teria de ser conquistada de forma livre e criativa mediante a prática de um esquema político e econômico capaz de dar sustentabilidade à vida social, salvaguardando a liberdade dos indivíduos. A organização da coletividade humana composta de seres racionais, livres, autocentrados, emocionais e voluntariosos implica necessariamente numa interação dialogal. A integração social resultante se fará portanto não mais em função de comportamentos instintivos, porém através de escolhas inerentes a decisões livres e responsáveis.  Isso envolve toda uma elaboração comportamental calcada em valores éticos, indispensável à preservação da espécie. A humanidade não terá futuro em longo prazo sem a livre determinação de todos os homens de cooperar e partilhar entre si as riquezas naturais e as resultantes do trabalho coletivo. Nesse sentido cada homem terá de vencer o próprio egoísmo para alcançar o destino grandioso representado pela participação na comunidade humana alicerçada nas relações solidárias autênticas com seus semelhantes. Esse projeto aparentemente utópico está implícito na  ordem surpreendente do  processo evolutivo desde a matéria primitiva caótica até a vida consciente, que sugere uma intenção misteriosa transcendental presente na realidade temporal. Na experiência mística[1] que se apoia na fé incondicional o homem assume existencialmente o reconhecimento desta presença. De qualquer forma reconhecendo-a  ou não terá que subjugar o egoísmo ao poder criativo do amor para garantir a harmonia comunitária.  Todavia, a fé e o amor são dons que não se deixam manipular mediante uma pedagogia convencional. Quando estas virtudes não se manifestam espontaneamente, praticá-las exige uma ascese espiritual prolongada e difícil. Fundamentalmente, o exercício prático que  leva à efetiva realização da virtude moral implica o esforço pessoal no sentido da libertação do atavismo animal cujo ranço impregna de egoísmo o comportamento humano. É preciso sair do casulo do egoísmo para poder realizar integralmente o ideal humanístico. Com essa visão da condição humana contemplo minha realidade psicossocial  e a dos coirmãos, todos nós desafiados a cumprir importante missão na Evolução. E descortino os equívocos da família humana caracterizados pelo imediatismo absorvente. Fascinados pela posse de bens materiais e domínio do poder político os homens se iludem, deixando-se envolver numa aura de esperteza ingênua.
Não contamos com certezas absolutas!!! Todos os homens acabam defrontando o mistério da consciência e do mundo. A razão por si só não nos dá as respostas de que carecemos.  Para alcança-las de alguma forma precisamos ser susceptíveis a um movimento interior que envolve e ultrapassa a razão, o sentimento, a vontade e encontra sua maior expressão na experiência mística. Nesta experiência o homem vivencia a unidade do Dinamismo absoluto eternamente criativo (Deus), e tem acesso a toda verdade, beleza, paz e felicidade a que pode aspirar. Os que realizaram plenamente essa vivência[2] alcançaram o alvo supremo da Evolução, que o Poeta declama na originalidade dos seus versos lembrando aos homens  “Que o sentido da vida e o seu arcano / É a imensa aspiração de ser divino, /  No supremo prazer de ser humano”. [3]
Everaldo Lopes


[1] Vivência  de união perfeita com Deus (o absoluto), que não raro se acompanha de manifestações psíquicas.
[2] Os místicos que experimentaram a” noite dos sentidos” descrita por São João da Cruz, e muitos outros dos quais existe registro histórico.
[3] Raul de Leoni em “Ode a um Poeta morto”.