As contradições da existência, a razão e a fé, o presente eterno.
O ser consciente existe como uma organização biológica altamente diferenciada, porém perecível, mas aspira a conservar a vida indefinidamente... Esta aspiração impossível para um ser temporal envolve a “noção de eternidade”, contraponto do tempo que se exaure no mundo visível e, obviamente, na vida biológica... obrigando-se, o homem, coerentemente, a elaborar a aceitação da própria finitude.
A noção de “eternidade” não nos chega pelos sentidos. Não é uma realidade definível. Semanticamente, poder-se-ia concebê-la como um conceito indefinido (não tempo)... De qualquer forma “eternidade” corresponde á idéia de algo abstrato, comum ao espírito, que não tem começo nem fim, que transcende o mundo aparente.
Jamais se poderá estabelecer na intimidade biopsíquica o limite entre o espírito e a matéria... da mesma forma que, analogicamente, a onda energética e a partícula se alternam de maneira imprevisível sem que haja separação essencial entre ambas. Poeticamente já se disse: “Alma, estado divino da matéria!”[1]... Invertendo a ordem dos fatores, diríamos (centrados numa cosmogonia espiritual monística) que a matéria é o estado temporal de Deus (Espírito Absoluto). Na verdade, ao admitir a hipótese criacionista, não há como pensar a unidade imanência / transcendência... Mas a presença e coerência evolutiva do Universo aponta para uma “continuidade” misteriosa do Criador, à criatura, na descontinuidade essencial entre ambos... Essa unidade inacessível à compreensão humana é o mistério do qual somos uma legenda ilegível. Este modo de pensar contraditório é o que mais se aproxima de uma descrição da realidade que vivemos como seres conscientes racionais... Realidade que não se pode descrever de forma clara. Quando queremos falar dela (uma contingência capaz de transcender-se!) transitamos, epistemologicamente, entre o enunciado de uma problemática real e a elaboração de uma idéia fantástica que só se torna real quando vivenciada pela fé, na experiência da integração comunitária de todos os homens...
Todos reconhecemos no homem, aptidões sutis (intuição criadora, inteligência linguístico matemática...) que não se explicam, linearmente, pelas funções biológicas... Todavia, não é reconhecível a intimidade essencial entre o Espírito e a realidade biológica... Por isso a história do pensamento filosófico registrou, em certo momento, a adesão à tese de dois Princípios antitéticos (um espiritual, outro material), compatível com um maniqueísmo primário. Exclui-se este maniqueísmo ao afirmar-se que o “espírito” e o corpo físico não são entidades diferentes, mas uma alternância criadora na qual o Espírito eterno ora projeta, virtualmente, a imagem corporal no tempo, ora a recolhe no Seu seio onde se realiza a comunidade de todas as consciências... Esta ideia soa irracional ou fantasiosa até o momento em que a Física Quântica nos anuncia que a realidade não passa de miríade de possibilidades dentre as quais algumas se atualizam ao cruzar com a “consciência localizada”. Nesta perspectiva faria sentido dizer que o espaço e o tempo são projeções virtuais do Espírito eterno... A morte física representaria, então, a supressão da imagem virtual (o corpo físico), recolhida ao Espírito, Consciência Cósmica, Berço do Universo. O Espírito (eterno) já está presente aqui e agora neste corpo, o meu, o seu, e o dos entes que povoam o mundo. É-lhes imanente e transcendente... e, no homem esta diferença pode ser vivida como uma unidade, sem que desta experiência se tenha uma explicação racional. Eis o mistério que a Teologia[2] estuda num conjunto de conhecimentos fundamentados no ato de fé. Assimilado este “devaneio metafísico”, para o homem, a morte seria a porta que comunica o mundo “virtual” (visível, aparente), e o mundo Espiritual, o universo real das essências que se fundem num só ser absoluto (recapitulando a intuição platônica)!
Como vimos no texto anterior, a operacionalidade da vida temporal para o homem está no “agora”, o momento que reúne lembranças e expectativas imediatas, separadas pelo “presente” - janela da eternidade no tempo. O homem tem dificuldade em deixar-se absorver no “presente”, vivendo-o integralmente, porque este é uma brecha no tempo, ausência (colapso) que não é apreensível como realidade temporal. A plenitude deste “presente” sem passado nem futuro é a própria eternidade. O homem só o vive, enquanto existência temporal, numa experiência mística na qual o tempo não conta. Em resumo, vivemos na eternidade ao experimentar o tempo no polimorfismo da contingência fugaz! O ponto crítico da “existência” não se define, pois, pelo objetivo escolhido que se pode alcançar com trabalho, tempo e talento, e se resolve na posse de um objeto do desejo motivo da felicidade do “eu” agente. Embora tudo isso tenha seu lugar na realização pessoal, histórica (presença no mundo), o que é mais importante na existência é a “posse” do que não podemos manipular, o “presente” sempre mascarado pelo agora[3], entendido como uma extensão da própria eternidade. O presente é, pois, como um “colapso do tempo” que vivenciamos, numa experiência singular, e assim nos tornamos o pulsar da eternidade, marcando o tempo! No nível existencial, histórico, nesta brecha cada um atualiza, criativamente, com maior ou menor brilho, uma das infinitas possibilidades de “ser” preexistentes no Absoluto eterno e único. A ação, em sua emergência é temporalmente imensurável; quando ela é identificada, o ato gerador do “novo” já é passado. Assim, na esfera pessoal cada gesto ou ação corresponde a uma projeção virtual da eternidade, desfocada pela finitude da contingência na qual se revela o Espírito criador. Esta visão espiritualista está presente no pensamento hinduísta que introduziu o conceito “maia” - aparência ilusória da diversidade do mundo que oculta a verdadeira unidade universal... e resvala na intuição platônica do mundo das ideias, eterno e imutável, modelo das coisas sensíveis, objeto de contemplação pelo pensamento.
Continua no próximo texto.
Everaldo Lopes
[1] Raul de Leoni no poema “De um fantasma”.
[2] Ciência ou estudo que se ocupa de Deus, de sua natureza e seus atributos e de suas relações com o homem e com o universo (Houaiss3)
[3] O momento vivido como expectativas e lembranças imediatas que se misturam numa busca criativa. Nesta perspectiva, quando o “novo” é percebido, já não é mais presente, porém passado