sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Aconselhamento Filosófico IV



No diálogo terapêutico é indispensável que o Conselheiro e o Cliente encarem os fatos em discussão sem qualquer julgamento de valor. Durante o exame do seu problema o cliente analisa as emoções despertadas, e identifica possíveis associações com experiências anteriores. Reconhecendo-as poderá contornar influências estranhas à conjuntura atual. Neste processo se denunciam os parâmetros comportamentais já incorporados culturalmente. Todavia, para responder com pertinência às situações novas, o Cliente deverá deter-se, examinando-as e avaliando as alternativas de resposta responsável.
No Aconselhamento Filosófico é fundamental o compromisso do Conselheiro e do Cliente com a autenticidade. Disposição que ajudará o consulente a reorientar-se livre e objetivamente. Neste clima de liberdade se tornará mais fácil para ele manifestar espontaneamente suas ideias e seus sentimentos, permitindo-se reconhecer os próprios deslizes. Dessa forma reunirá condições para elaborar a resposta pessoal às demandas existenciais.  Quando não ocorrer espontaneamente, o conselheiro estimulará o Cliente a descobrir no seu comportamento as intenções não reconhecidas, de ganhos secundários. Esta é a oportunidade de o Conselheiro  examinar com o consulente as premissas filosóficas desenvolvidas na obra de um filósofo conhecido que trate de questões afins às dificuldades do cliente, e descobrir a sua orientação filosófica. Reconhecendo sua própria postura diante da realidade, o cliente poderá reorienta-la, se for o caso, motivado pela coerência pessoal. A tendência filosófica do aconselhado pode ser, por exemplo, a de agravar (dramatizando) as situações conflitantes, esperando com isso ganhar atenções, um ganho secundário ainda não reconhecido explicitamente. E, descobrindo essa disposição, o cliente percebe o engodo que sua conduta encerra. A partir desta descoberta é possível que mude o próprio modo de agir, atendendo ao desejo de valorização pessoal. Igualmente, quando o cliente consegue integrar numa nova visão de mundo o problema que o aflige, alivia muitas tensões psíquicas aflitivas. Reconhecendo algo essencial sobre si mesmo, compreende a essência do conflito evocado na  sessão terapêutica. O problema pode estar associado à confusão de conceitos erroneamente interpretados como sinônimos, que implicam, porém, em posturas existenciais diferentes. É o caso, por exemplo, da diferença conceitual nem sempre percebida claramente entre os vocábulos indivíduo e pessoa, dano e ofensa. No primeiro exemplo, indivíduo é apenas a unidade taxinômica de uma espécie qualquer, enquanto a pessoa é cada ser humano considerado pelas qualidades psíquicas superiores que se atribuem exclusivamente á espécie Homo Sapiens sapiens[1], e  abrem espaço para relações interindividuais peculiares. Na prática social, a confusão entre estes conceitos deixa margem para avaliações distorcidas da dignidade humana com repercussão no comportamento. Esta falta de clareza conceitual atropela o caráter dialógico do “eu”[2] a cuja constituição está atrelado o fundamento da solidariedade. A percepção de que a pessoa é um indivíduo especial com características ímpares faz toda diferença. Mesmo reduzido a privações morais e físicas, o homem, como pessoa, é credor de um tratamento especial. No segundo exemplo, na prática, a indistinção entre dano e ofensa pode gerar sofrimento desnecessário. Ora, enquanto o dano é unilateral, a ofensa é bilateral. Ou seja, não haverá ofensa sem que alguém se sinta ofendido e o sentir-se ofendido não é uma postura essencial, pode ser modificada por opção pessoal esclarecida. Já o dano não depende do objeto danificado. Por exemplo, uma martelada no dedo causa um dano que independe da reação do indivíduo lesado, isto é, o dano tem um valor absoluto. Diferente da ofensa que tem a dimensão conferida pelo ofendido. Um apelido só pega se o apelidado reagir irado. A ofensa depende da reação do ofendido, não tem, portanto, valor absoluto. Não distinguindo existencialmente o dano, da ofensa o cliente poderá sofrer desnecessariamente como danos, ofensas que só se consolidarão com o seu consentimento. Ao assimilar intelectual e emocionalmente a distinção conceitual entre indivíduo e pessoa, e entre dano e ofensa, o Cliente impedir-se-á, respectivamente, de praticar ações ofensivas ao outro, e de sofrer aflições desnecessárias.  
O Conselheiro Filosófico ajuda o Cliente a compreender-se melhor à luz da leitura filosófica das situações existenciais que vivencia, capacitando-se a assumir atitudes voluntárias, maduras e objetivas.
            Para Sócrates, todos nós temos ciência das coisas, apenas precisamos lembrar o que já está dentro de nós; mas não raro se faz necessária ajuda externa para trazer à tona esse conhecimento. Para comprovar sua tese Sócrates fazia uma série de perguntas correlatas para que o interpelado respondendo-as chegasse por si mesmo à solução definitiva da questão que supunha ignorar. A Maiêutica[3] e o Aconselhamento Filosófico embora sejam metodologias distintas contam sempre com a capacidade intelectual e domínio emocional do par dialogal: respectivamente, o Filósofo e o Discípulo, o Conselheiro e o Cliente. É preciso confiar na perspicácia do interlocutor, para conduzi-lo com proveito numa introspecção investigativa. O conselheiro não oferece verdades acabadas, mas dá orientações para quem esqueceu ou negligenciou os meios de examinar a si mesmo, a fim de que encontre a resposta que lhe parecer verdadeira. A evolução deste processo dependerá do nível de liberdade existencial do Cliente para elaborar respostas originais resolutivas face aos desafios do vir a ser consciente. O CF pressupõe no orientando a sensibilidade necessária à percepção de sutilezas do seu conteúdo subjetivo intelectual e afetivo, e a capacidade de estabelecer analogia entre este conteúdo e as reflexões filosóficas inseridas nas doutrinas que marcaram a evolução histórica do pensamento[4]. Exemplificando. Enquanto os Empiristas distinguem o conhecimento teórico do prático, privilegiando este último, em detrimento do meramente racional, os Racionalistas enfatizam a razão, e não a experiência prática, como referencial de valor. Muitos de nós seguimos uma destas duas orientações como diretrizes de vida e não nos damos conta das suas implicações existenciais. Porém, consciente de haver adotado uma ou outra destas alternativas, o cliente poderá ter um insight revelador sobre sua própria orientação existencial, descobrindo um pouco de si mesmo e, quiçá, o motivo dos seus conflitos. Na verdade, Empiristas e Racionalistas assumem posições extremas e, todavia, a vivência do equilíbrio existencial demanda a perfeita coerência integrativa da teoria e da prática. Aí entra a criatividade do Cliente. É óbvio que estes exemplos simplificados apenas mostram como funciona o aconselhamento Filosófico. Como dissemos no texto anterior, “é o diálogo, a troca de ideias que é terapêutica.” Na medida em que o CF e o cliente debatem impessoalmente as doutrinas filosóficas evocadas, multiplicam-se as oportunidades de esclarecer questões pontuais relacionadas com os conflitos do consulente. Nestes debates, só para exemplificar, quanta sabedoria se descobre na proposta kierkegaardiana de uma transcendência necessária, em resposta à angústia diante da finitude! Quanto discernimento se revela na afirmação de Schopenhauer: “estamos sempre tentando dissipar a obscura perspectiva do nada”. Perspectiva que ameaça a existência de instante para instante, e que tentamos superar apostando seriamente em crenças que podem não passar de invenção articulada, com alguma probabilidade de acerto. Situação que poderia parecer ao mesmo tempo aleatória, patética ou ridícula para pessoas que se querem solidamente objetivas. Mas que, uma vez assumida e vivida com entusiasmo mediante um ato de fé é a verdade de cada um. De repente, o que poderia parecer um simples palpite ingênuo se transforma em referência essencial ao exercício da consciência crítica!...
                  Termino lembrando que o saber filosófico milenar é um recurso poderoso para ajudar o homem a lidar com a realidade. Acredito em que o “Aconselhamento Filosófico” pode ser um auxiliar valioso da Psicanálise, fazendo uma ponte entre milênios de sabedoria e o enfrentamento dos desafios existenciais atuais, ajudando as pessoas a levarem uma “vida examinada” como preconizava Sócrates.
                 Everaldo Lopes


         [1] Racionalidade, consciência de si, discernimento de valores.
[2] O “tu” está presente na constituição do “eu” ; um não existe sem o outro ( Vide Martim Buber  no seu livro “eu e    tu”.  )  
[3] Método socrático que consiste na multiplicação de perguntas, induzindo o interlocutor na descoberta de suas próprias verdades e na conceituação geral de um objeto. Houaiss

        [4]Vide texto anterior