sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Nada acontece por acaso


Presumindo profunda sabedoria e até com certo colorido de mistério, as pessoas dizem: “- Nada acontece por acaso”. Embora ignorem o seu alcance filosófico, esta afirmação não é desprovida de sentido. Na verdade ela denuncia a complexidade fenomenológica de causas e efeitos recíprocos de todos os fatos e acontecimentos, subentendida uma integração absoluta da realidade. Isto quer dizer que, extrapolando o determinismo linear imediato perceptível, cada evento resulta da inter-relação de todos os demais, de forma que cada um carrega a influência dos outros. No contexto unitário da realidade toda, esta influência recíproca pode ser tão sutil que seria impossível representá-la, o que não a suprime, todavia. Então, se tudo tem a ver com tudo, não é despropositado dizer que “nada acontece por acaso” (porque tudo se relaciona), embora não percebamos o determinismo complexo que está por trás de cada evento. Nesta corrente ininterrupta de influências se insere o livre arbítrio inerente à intervenção humana, como um elemento que pode fazer a diferença na ordenação dos acontecimentos.
Sem atentar para a intimidade dinâmica do acontecer no mundo, a afirmação contida na frase que serve de título a este texto abre espaço para dar um significado extraordinário ao fato inexplicável no universo restrito da lógica linear, que, por isso mesmo, enseja a sua associação a uma intervenção transcendental, misteriosa. Aliás, as relações complexas de causa e efeito que não são óbvias, mesmo que venham a ser compreendidas, não excluem esta intervenção.  Por suposto, um “dinamismo absoluto eternamente criativo” utilizar-se-ia exatamente desta complexidade para realizar o fato “extraordinário” e “misterioso”. Mesmo que seja possível uma análise semântica, multifatorial, da gênese do acontecimento inusitado, e que fique demonstrado estar o mesmo inserido numa corrente de causas e efeitos cuja complexidade engloba a seqüência linear da realidade conhecida, o fato inabitual continua extraordinário e misterioso na perspectiva em que se coloca o homem comum diante da realidade visível. A impossibilidade de abarcar com o pensamento todos os ângulos de um todo tridimensional complexo [uma gestalt[1] inexcedível (absoluta)], obriga-nos a absorver essa experiência como uma vivência e não um conhecimento. O conhecimento desta complexidade de causas e efeitos simultâneos e recíprocos não está ao alcance dos nossos recursos gnosiológicos limitados. E então, configura-se uma situação em que o fato inegável e, ao mesmo tempo, inexplicável poderá ser atribuído a uma “Divindade”. Evidentemente, esta atribuição é da ordem da fé e não do conhecimento racional. Embora a lógica da complexidade possa jogar alguma luz sobre a questão, não anula a atribuição conferida pela fé à influência transcendental sobre o determinismo do evento incomum favorável ou desfavorável. Todavia, alguém poderia, nas mesmas circunstâncias, atribuir o fato inusitado a uma conjunção de fatores, determinada por coincidências convergentes. Mas, para aceitar, estatisticamente, a confluência de coincidências felizes na evolução da matéria e dos fatos num sentido determinado seria necessário admitir o (anti)acaso!!! Como se vê, qualquer dos casos [transcendência, ou (anti)acaso] não tem o apoio de um conhecimento formal. Atribuir o fato surpreendente a uma intervenção transcendental ou jogá-lo no rol de simples coincidência de fatores que a Ciência ainda não consegue rastrear, pode ser uma opção de risco, consciente... Diante desta alternativa o gênio de Blaise Pascal “apostou” na intervenção transcendental (Deus).  Experiência que se enquadra numa visão holística[2] da realidade de natureza relativística quântica, na qual não se consegue facilmente estabelecer limites nítidos entre a física e a metafísica.
Por outro lado, vivemos integrados num Universo de incertezas no qual, excluída uma intervenção transcendental, o (anti)acaso se torna elemento importante para a compreensão do mundo conhecido, reeditando, porém o sentido de uma interferência que ultrapassa os limites da experiência, por seu poder determinante obscuro na trama da realidade.
No seio da perplexidade filosófica sobre a origem do próprio “ser” representa-se o mundo físico como projeção virtual de uma realidade metafísica cuja luminosidade nos cegaria se a ela nos expuséssemos diretamente. Não foi esta a visão de Platão no Mito da caverna? Não estamos trazendo, pois, novidade alguma. A adesão a estas idéias, porém, marca o fim de uma postura agnóstica e a abertura para uma experiência mística. Não se tem o controle psíquico efetivo desta experiência. O Deus que se anuncia pela especulação metafísica está, porém, muito distante do encontro místico... é um deus filosófico que só parcialmente atende a angústia existencial... A paz mística só acontece quando o ser consciente urde no seu subjetivismo a relação imediata, confiante, com um poder absoluto que se constitui no seu Alter Ego... esta é a tessitura psicológica da fé.  
Na verdade, a fé e a razão são complementares... a compreensão da complexa realidade evolutiva reforça a própria fé que é um dom, e esta serve de base para as construções racionais. Se a razão não alcança a essência das coisas, a metodologia científica só pode conduzir a uma aproximação cada vez maior da verdade que, todavia, por mais apurada que seja, racionalmente, será ainda uma atribuição que não se pode isolar inteiramente de um componente de fé.         
Mas a pergunta crucial que se esconde por trás da afirmação emblemática que estamos analisando é se no determinismo complexo que vimos de abordar há uma intenção absoluta de beneficiar ou punir o sujeito consciente da História. Penso que, ao fim e ao cabo, admitir uma ou outra destas proposições é ainda uma atribuição, intimamente, relacionada com o grau de integração pessoal, holística, do sujeito consciente no todo universal. A vontade absoluta regulatória garante a manutenção das leis universais sob as quais o mundo e o homem se tornam possíveis. O mundo (a Natureza) obedece-as cegamente; o homem, porém, com seu livre arbítrio tem o poder de manipulá-las para o seu próprio bem... A visão equivocada deste “bem” é que dá origem ao mal. Na intimidade, pois, de cada um define-se a resposta à pergunta crucial, na medida em que o ator consciente da História assume responsabilidade sobre seus atos em relação à harmonia do Todo. No fundo, tudo se resume na capacidade de o homem integrar-se na ordem universal que o transcende, contribuindo, criativamente para mantê-la ... então, ele viverá esta verdade com a humildade de um gigante: “Nada acontece por acaso”. [3]


[1] Teoria que considera os fenômenos psicológicos como totalidades organizadas, indivisíveis, articuladas, isto é, como configurações,

[2] Abordagem, no campo das ciências humanas e naturais, que prioriza o entendimento integral dos fenômenos, em oposição ao procedimento analítico em que seus componentes são tomados isoladamente [Por ex., a abordagem sociológica que parte da sociedade global e não do indivíduo.]

[3] Sei que neste texto ficaram abertas algumas questões sobre as quais voltarei em postagens futuras. Os leitores me ajudariam se assinalassem os segmentos do texto que lhes suscitaram dúvidas.