segunda-feira, 7 de maio de 2012

A espiritualidade do ateu

Especulações baseadas no conhecimento acumulado sobre a evolução do mundo físico e da vida dão suporte a uma cosmovisão espiritualista criacionista. A causa primeira de tudo continua impermeável à razão humana, suscitando cogitações metafísicas que abrem espaço para um Absoluto criador, objeto de fé. Todavia, é evidente a “complexificação” crescente da matéria desde o “Big-bang”[1]. A matéria primitiva desorganizada evoluiu até a complicada estrutura do Sistema Nervoso Central, culminando no córtex cerebral do homem que ensejou o advento da consciência reflexiva. Avaliado o tempo decorrido desde o “Big-bang”, se esta sequência evolutiva tal como ocorreu se devesse apenas a coincidências felizes, a esmo, não teria sido possível estatisticamente alcançar o estádio atual da Evolução... a matéria jogada ao acaso levaria um tempo infinitamente maior.  Portanto, para justificar a ordem crescente no cosmo e na vida até o patamar que se constata hoje, ter-se-ia que recorrer a um “anti acaso” que, então, teria o mesmo peso epistemológico de um Deus criador.  Na verdade há mais razões para crer do que para descrer em Deus, Dinamismo absoluto eternamente criativo.
A condição humana[2] passa a ser um divisor de águas no curso do processo evolutivo. A partir do homem a Evolução foi redirecionada, do aperfeiçoamento biológico do indivíduo para o da organização consciente e voluntária da sociedade na qual ele está contextualizado. Nesta perspectiva o livre arbítrio tornou mais flexíveis as mudanças evolucionárias, agora, orientadas por escolhas que visam a ordem política e econômica da comunidade humana. Saber-se parte de um todo integrado, permite ao homem criar critérios de comportamento no vir a ser pessoal, tendo em vista sua relação com o todo em que está situado. Nesta perspectiva a consciência já não pode mais ser considerada um epifenômeno da matéria, porém o cerne de uma realidade autônoma, livre, criativa capaz de influir nos rumos da própria Evolução... o que torna o homem um colaborador do “Dinamismo Absoluto Eternamente Criativo”[3].
Para atender à coerência inerente ao exercício da “condição humana”[4] a organização social deverá garantir a salvaguarda da verdade e da justiça. Estes valores pautam as responsabilidades humanísticas, sejam elas entendidas numa perspectiva espiritualista que além de buscar o bem estar social aposta na comunhão transcendental de todos os homens na unidade absoluta de Deus, sejam elas inspiradas na lógica temporal da convivência justa e confortável a que aspira o Agnóstico.  Uma vez preservadas as características da “condição humana” o resultado prático imediato da postura socializante é o mesmo em ambos os casos. Mas o compromisso social do Agnóstico resulta sempre num comportamento apenas ético, enquanto o do Místico o envolve com seus pares num comprometimento intersubjetivo amoroso. O Agnóstico põe em prática os esquemas culturais que regem seu comportamento social, pragmaticamente, com base em razões objetivas. O Místico transcende o imediatismo pragmático do comportamento social, prolongando seu ideal humanístico para além do horizonte temporal. Assim, a integridade da postura humanística tranquiliza em ambos os casos a consciência ética mediante comportamentos satisfatórios que diferem apenas nos seus fundamentos. Mas esta distinção pesa muito na solução da angústia existencial comum a uns e a outros. A desvantagem do ateu é que lhe falta o amparo da fé em um Poder transcendental providente no qual se resolvam todas as contradições inerentes à realidade temporal, e com o qual possa manter uma relação pessoal. Em contrapartida, para que o Místico se beneficie é necessário que esteja possuído por uma fé inabalável! Diante deste confronto entre Espiritualistas e Materialistas críticos, fica evidente que os primeiros atendem mais cabalmente ao anseio de transcendência inerente à própria consciência. Escudando-se em especulações coerentes eles concebem e creem numa cosmogonia espiritualista, criacionista que promete uma perfeição trans temporal. Enquanto os agnósticos, materialistas, simplesmente se negam a aceitar a mesma mundividência porque não creem num Absoluto criador... Embora não saibam explicar o origem da ordem que a própria Ciência constata na realidade cósmica e biológica. Este comportamento pode ser assimilável a um ato voluntarioso. Lembro aqui o relato que me foi feito por um amigo já falecido, da conversa que tivera na sua juventude com um frade professor de Teologia. Falando de Felix Le Dantec (1869 – 1917), Biólogo francês, materialista, o monge contara-lhe que este grande homem de Ciência dizia rilhando os dentes como se consumasse sua autoafirmação num ato de rebeldia: “- Sou ateu porque quero!”. Com isto o mentor espiritual do meu amigo quisera realçar a humildade necessária para exercitar o dom da fé. Todavia, por trás desta rebeldia está, não raro, uma pessoa intimidada pela consciência da própria contingência, hipercrítica, racionalista, carente de uma experiência existencial amorosa, suspicaz, resistente à entrega de si mesma às incertezas de um vir a ser imprevisível.
Aliás, rigorosamente, a negação da transcendência absoluta é também um testemunho de fé. Pois, do ponto de vista estritamente racional não se pode “afirmar” ou “negar” o “Absoluto”. Portanto, ao negar Deus os incrédulos o fazem mercê de uma crença! Por outro lado, o Ateu coerente com o exercício da condição humana, pratica uma ética humanística, nutre sentimentos de solidariedade e o desejo de ser veraz e autêntico, superando de algum modo a angústia existencial. Livre de quaisquer imposições dogmáticas está predisposto a desenvolver maior tolerância nos seus contatos sociais. Nesta perspectiva se desenvolve a espiritualidade do Ateu! Embora uma espiritualidade sufocada pelo tempo.
Everaldo Lopes


[1] Entendido como a grande explosão que deu início ao tempo e ao espaço cósmicos inerentes à matéria.
[2] Consciência  reflexiva  livre e responsável; capacidade de escolha e decisão.
[3] Deus
[4] Caracterizada pela prática  da Consciência reflexiva, da Liberdade e da Responsabilidade.