quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Divagações sobre as possibilidades do homem

No 12º andar do residencial onde moro, olhando o entorno, quedo-me pensativo... Lá em baixo a cidade se espalha nas silhuetas irregulares das casas com telhados marcados pelo tempo, entremeando arranha-céus imponentes que se elevam espaçados. Na via pública movimentada, destaca-se o colorido dos veículos que cruzam céleres, em todas as direções. O olhar perdido na paisagem familiar, meu espírito vagueia... sonho projetos impossíveis... Enquanto a sombra do mistério permanece no fundo da mente inquisitiva, carente de certezas.
Olho o desenho da cidade lá em baixo. O Sol se pôs e se multiplicaram em pontos de luz, as janelas das casas e apartamentos. Pensei... Lá dentro, milhares de seres como eu sentem a vida fluindo através das suas existências singulares... Para onde? Cada um tem um perfil peculiar, mas as preocupações são as mesmas: a sobrevivência, o sexo, o poder, a necessidade de comunicação, sobretudo, o sentido da “existência”. Empolgadas por essa demanda, as pessoas demonstram humor variado de acordo com o caráter de cada uma... são alegres, esperançosas, tristes, revoltadas, entediadas ou perdidas, desesperadas. Cada uma agarrada a um autoengano[1] necessário para estruturar a própria existência, nele investindo inteligência, sentimento e vontade. Nesse vir a ser pendulam entre o certo e o errado, entre o belo e o feio, entre o agradável e o desagradável... Assim vamos todos flutuando entre os extremos, na experiência de ser com os outros no mundo. E quantas vezes nos perdemos em equívocos que nos arrastam vida a baixo, e nos fazem sofrer...
A curiosidade sobre o significado do homem no contexto universal tem sido o motivo de muita especulação. Em torno desta questão desenvolveram-se teses filosóficas e doutrinas religiosas, em busca de respostas para a necessidade humana de “sentido”...  
Existir só por existir é um destino pobre demais para o esforço da Evolução que em milhões de anos perseguiu a complexidade, e desembocou  na consciência reflexiva. Diante da Evolução um raciocínio linear sugere que seu propósito transcende os “sem roteiros tristes périplos[2]” de um devir repetitivo e enfadonho. Mas para superar este horizonte mesquinho há que aplicar talento... uma aptidão natural ou habilidade adquirida. Na esteira desse empenho subjetivo o homem espera alcançar um destino grandioso, seja no plano histórico, seja numa outra dimensão, misteriosamente, oculta na sua própria realidade temporal. Mas é preciso ter fé, acreditar na força do sonho.... Todavia, a fé, assim como o amor, são dons que não se deixam manipular. Resta, pois, aos que não foram agraciados com essas dádivas, render-se, humildemente, ao imediatismo e transitoriedade dos projetos temporais, numa perspectiva de ser para a morte.
Com esta visão da existência contemplo os coirmãos equivocados da família humana que, envoltos numa aura de esperteza ingênua chegam a ser petulantes em suas convicções empíricas. Adultos na cronologia dos anos vividos conservam mentalidade imatura, sentem-se diligentes donos da verdade, embora inobjetivos e faltos de bom senso... O observador imparcial que percebe a falácia das propostas equivocadas os vê instalados numa ilusão de segurança... todavia, eles caminham, confiantes, através da vida... O imediatismo os absorve, inteiramente. Embriagam-se com a posse de bens materiais, com o poder político, ostentando prestígio e cultura intelectual, inebriados pelo sucesso, afogados na vaidade. Do outro lado estão os que investem, conscientemente, num autoengano que fundamenta valores transcendentais, algo que dê um sentido à existência, no qual apostam todas as fichas.
Afinal, para os seres contingentes, finitos, não há certezas absolutas!!! Ingênuos alienados, ou críticos perspicazes todos acabam defrontando o mistério da consciência e do mundo. A diferença é a falta de um suporte existencial autêntico entre os parvos, servos dos próprios equívocos, contrastando com o ideal de verdade e solidariedade universais dos que encaram consciente e responsavelmente o desafio da existência. Todavia não há indicadores objetivos para comprovar esta diferença. Formalmente, os dois grupos por vezes se confundem.
Do fundo da sua existência precária, o homem sonha, aspira à paz e à tranqüilidade. Deseja, ardentemente, penetrar a essência das coisas, que escapa à percepção dos sentidos. Sonha com a justiça sem jaça, com a aceitação da realidade que não se pode mudar, e com a criatividade para mudá-la quando for possível e necessário; anseia pela capacidade de valorizar o minuto fatal com lucidez... E para realizar tudo isso é necessário que esteja polarizado por um ideal transcendental só acessível, e existencialmente funcional, através da lente da fé. Tudo isso se passa no foro íntimo de cada homem e só o próprio conhece a verdade de sua realidade interior... Daí a sabedoria bíblica que recomenda “não julgueis!.”
Enfim, o homem é um ser problemático... Considerando os limites inextensíveis da razão, ouso dizer que só na experiência dos místicos que viveram a noite dos sentidos, o ser consciente encontra a plenitude inaudita da verdade, beleza, paz e felicidade a que pode aspirar. É na experiência mística que o homem alcança o alvo supremo da Evolução e consegue viver a “imensa aspiração de ser divino, no supremo prazer de ser humano”[3].


[1] Crença que afirma o que não é óbvio
[2] Drummond de Andrade em “A máquina do mundo”
[3] Raul de Leoni em “Ode a um Poeta morto”