sexta-feira, 22 de março de 2019

A perspectiva do fim


A perspectiva do fim.
(Uma abordagem existencial).

               Antes da aceitação elaborada de sua finitude o ser consciente fica refém do medo, da expectativa ansiosa e da angústia. O sofrimento é diretamente proporcional à desesperança da superação de nossa contingência finita.  Este sentimento é inerente à própria consciência reflexiva, diria, algo inevitável posto que o próprio vivente tem ciência antecipada do seu fim, e a finitude biológica anunciada lhe sabe uma sentença fatal, mesmo antes de saber-se portador de grave enfermidade. Em face desta antinomia todos vivemos num equilíbrio existencial precário depois que perdemos a ignorância infantil da própria fragilidade.
               Ao passar dos anos, o olhar adulto sobre o devir humano destaca o medo da morte agravado pela ideia da sua proximidade. Mesmo descartando os exageros hipocondríacos, as pessoas sofrem ao confrontar seu limite temporal, numa perspectiva realista. A vivência será devastadora se não tivermos aprendido a amar, se não praticarmos a generosidade, ou não nos sentirmos amados! É compreensível que nessas circunstâncias, em luta contra medos e incertezas nos perguntemos: - Como reverter esta situação? A resposta é óbvia: Optando pela prática do otimismo e do comportamento generoso, esforçando-nos para respeitar e cuidar do outro, dando assim um passo largo em direção ao amor. Só a prática do amor liberta o homem dos seus limites existenciais.
               O exercício da generosidade começa quando aprendemos a desenvolver empatia e descobrimos em nós mesmos as fraquezas do outro, o que nos faz assumir uma postura solidária mostrando sermos capazes de oferecer amor, ou, pelo menos, o respeito que o outro merece. Evidentemente, todos esses movimentos interiores só produzem os efeitos esperados quando vividos existencialmente e não apenas formalmente.
O amor ao semelhante, a uma causa ou ideal significativo é o grande antídoto para o medo da morte. E não há empreitada maior e mais respeitável do que a da autoafirmação comunitária de cada um de nós, como pessoa, sob a égide da verdade e da justiça, no esforço de buscar, constantemente, o bem honesto cuja dimensão social fundamenta-se na solidariedade. O compartilhamento comunitário é uma tarefa heroica que exige autoconhecimento, humildade, disciplina emocional, objetividade, e não dispensa a ajuda da misericórdia divina tal é a sua envergadura.  Pois o esforço exigido pela elaboração positiva do sentimento de que tudo é provisório nesta vida demanda um espírito superior e inspiração divina. Ouso dizer que sem uma visão mística da própria existência, será muito difícil a realização cabal da vivência humana de serenidade, e se tornará  deprimente o confronto de cada um  com a própria condição de simples mortal. É preciso reconhecer que o amor (caridade) ancora sua eficácia na misericórdia divina, e o envolvimento existencial com um absoluto que nos empolga é o antídoto definitivo para o “mal” do qual o homem é autor e vítima. Fora deste contexto místico a convivência com os nossos limites resultará sempre numa gestalt aberta, geratriz de expectativa inquieta; e a vitória sobre o mal será sempre uma vitória de Pirro em que o vencedor amarga seu feito no próprio sucesso.
A autoafirmação pessoal exitosa começa com o reconhecimento de que somos perecíveis, mas  a nossa dignidade cresce com o exercício  da consciência responsável de uma missão a  cumprir neste mundo, apesar de nossa impermanência. É verdade que somos contraditórios,  mas querermos elaborar, com simplicidade, as antinomias da existência, esforçando-nos, finalmente, para acolher com respeito o irmão, sem cultivar mágoas ou ressentimentos. Nessa caminhada o amor à verdade não nos deixará enveredar  pelos descaminhos  da condenação leviana do outro, livrando-nos da intemperança e da cavilação.
               Advirto-me de que no desvario de uma perspectiva existencial infantilmente crédula, surpreendemos-nos buscando segurança nas fantasias, ancorados em arrimos discutíveis que desejáramos transformar em fortalezas inexpugnáveis. Parafraseando, diria: algo assim como alguém que se imagina seguro porque sua poupança é expressiva. Na verdade ele não está a salvo de nada além da carência econômica imediata, porque no frigir dos ovos, tudo passa, nada é definitivo. Situação equivalente é a do homem que cuida com esmero do seu condicionamento físico e imagina-se livre das doenças que acometem os sedentários e glutões. Todavia a proteção conferida pelos cuidados preventivos realmente existe, mas é limitada, porque há fatores genéticos cujo determinismo o exercício físico e a dieta sadia retardam, mas não anulam totalmente. Todos esses cuidados são recomendáveis, mas na avaliação dos seus resultados não se pode confundir a menor probabilidade de ocorrência de um mal, com a segurança de estar definitivamente livre dele. É bom sentirmo-nos confiantes na reserva vital que um bom condicionamento físico nos garante, tal como é compensador ter um sono tranquilo por nos sentir libertos de aperturas financeiras, confiando na poupança acumulada. Porém, mais sábio do que fiar-se em defesas vulneráveis, é vivenciar que a maior segurança consiste na aceitação humilde objetivamente posta da insegurança total, confiante na misericórdia divina. Isto equivale a investir num arrimo interior absoluto (Deus), o sustento íntimo que só a fé nos confere, necessário para continuar de pé quando tudo ao redor está ruindo. E ao aceitar com serenidade a insegurança total, com fé na proteção da misericórdia divina, nada mais sobra para causar insegurança. Certamente esta aceitação é o resultado difícil de uma ascese rigorosa ao longo do processo de individuação.
Estamos morrendo todo o tempo, esta é a condição da própria vida; não se pode viver sem morrer, instante a instante, na medida em que  vivemos. E nesta perspectiva não se consegue superar a vivência da dicotomia vida / morte senão mediante a inserção pessoal numa experiência mística que transcenda a antinomia do nosso vir a ser contingente, incluindo-se o ser consciente num todo absoluto significativo, mediante uma experiência existencial de confiança no amor divino universal.
               A consciência reflexiva depende, operacionalmente, do servomecanismo biopsíquico desenvolvido no homem através do sistema nervoso central. Neste evento singular na história da vida (revolução cognitiva), transpomos um pseudo-hiato entre a infraestrutura biológica e a superestrutura dos sentimentos e do pensamento logicamente articulado. Considerando o todo - a gestalt consciência mundo - esse hiato virtual representa a dobra[1] entre a bioquímica dos neurônios cerebrais e o pensamento, entre o biológico e o espiritual, entre a ciência fenomênica imanente e a dimensão metafísica do ser que se transcende pela consciência. É neste pseudo-hiato que se insere a experiência mística, da prática Zen ao êxtase descrito por São João da Cruz. Este é o momento em que o espírito onipresente, mas imperceptível, mostra-se da maneira mais ostensiva, urdindo pela fé um contraponto autoconsciente na polifonia da vida.[2] Exatamente por isto a complexidade humana não se exaure no fenômeno biopsicológico e exige o arremate místico para consumar-se. No pseudo-hiato entre o biológico e o existencial se evidencia o Deus inconsciente de que fala Victor Frankel, ubíquo, apenas vivenciado no  subjetivismo do ser consciente como um Alter-Ego que, recursivamente, acaba espelhando o próprio ego individual. É que o Absoluto se revela à nossa contingência e conversa conosco na mais total intimidade, embora escutemos apenas a nossa voz e vejamos apenas a nós mesmos. É que se dá a conhecer o mistério tremendo da parceria entre a imanência e a transcendência, entre o homem e Deus.
               Se a solução do problema humano não é racional, filosófica, porém mística, a oração será o instrumento adequado para proteger o homem contra a devastação do medo da morte e da angústia existencial. Despindo-me do racionalismo frio, retomo a postura ingênua para, numa conversa honesta com o Criador, evocar as condições do momento existencial perfeito numa Oração.

                                                  Oração

Deus permita-me a graça de vivenciar a unidade consciência - mundo, na intersecção das dimensões imanente e transcendente do meu eu mais profundo.
Amparado pelo mistério da relação criatura–Criador, só em Ti encontro a força necessária para cumprir a missão que me reservaste neste mundo, alimentando a esperança de alcançar a paz interior, elaborando com simplicidade as antinomias da existência, acolhendo com respeito meu irmão, sem cultivar mágoas ou ressentimentos, perfilhando na comunhão fraterna a paternidade amorosa de Deus.
           
Everaldo Lopes                               




[1] Conceito epistemológico definido por Deleuse.
[2] Um dia, a humanidade inteira, oceano em calma,
 há de fazer numa só oração reunida, da razão e da fé os dois olhos da alma, da verdade e da crença
 os dois polos do mundo. Antero de Quental em A velhice do Padre Eterno.