domingo, 20 de fevereiro de 2011

Monologando


Viver o rigor comportamental que me imponho, por formação, é uma chatice! Não me dou sequer uma “toleranciazinha”! Tenho que levar tudo a sério... tomando como premissa irrevogável que a verdade, este ideal fugidio, está acima de tudo. Isso num mundo em que os mentirosos pintam e bordam, tirando vantagem das inverdades que tramam com mestria... Com esse timbre pessoal carrego o fardo de abominar as cavilações e imposturas sem poder desmascará-las todas como desejara. E o pior é que muitas vezes elas não passam de estratégias de sobrevivência, ingenuamente, pérfidas!... É isso mesmo... o equivalente à perfídia praticada por crianças psicologicamente desamparadas, como um mecanismo de defesa... E, ao perceber a mentira ardilosa, depois do primeiro impacto, o sentimento que seus protagonistas me despertam é de compaixão. Resultado... de frustração em frustração fui me fechando em mim mesmo. Convencido de que não posso consertar o mundo, não reneguei, todavia, a minha responsabilidade no processo cultural em que estou envolvido. Para justificar as exigências comportamentais que me imponho passei a defender a tese que o exemplo de seriedade e probidade contribui, didaticamente, para a salvação da humanidade! Todavia, esta tese, politicamente correta, soa ingênua porque conta com a adesão espontânea das pessoas ao esforço comum para assimilar o bom exemplo contra as tendências atávicas egóicas... Enfim, agarrei-me à idéia de levar adiante a missão que me impus, dando testemunho da minha visão de mundo e do lugar que nela ocupo. Inicialmente, tomei como ponto de partida a diferença específica do homem, a condição de um ser consciente. E passei a filosofar sobre as conseqüências que dimanam do, e são inerentes ao exercício da consciência. Enquanto especulava sobre a existência[1] mergulhei em cogitações místicas. Visitei muitas fontes científicas e filosóficas do saber... Encontrei respaldo especulativo e científico (indiretamente) para um posicionamento místico... Até que, outro dia, um amigo de muitas décadas que se diz agnóstico, me falou, literalmente, com a intimidade que a longa amizade nos permite, ser o meu “misticismo chué originário do medo da morte”. Resolvi então investigar, tirar essa estória a limpo para meu próprio conhecimento. Fiel ao princípio de verdade que tomei como paradigma existencial, preciso ser transparente para mim mesmo! Pensei... Será que a minha espiritualidade é uma farsa? Essa possibilidade começou a incomodar-me. Concordo em ser o medo motivação para boa parte das nossas atitudes e ações. E também é verdade que a parca me assusta, isso eu não posso negar; mas quem no gozo perfeito das suas faculdades mentais a quer por perto? Depois, deixei de prestar atenção a este medo porque compreendi que quando chegar a “hora” tudo se arranjará da melhor forma possível, e nunca ninguém vai sofrer mais do que lhe permite sua resistência física e moral! E, curiosamente, quando deixei de prestar atenção ao medo da morte, ele perdeu a sua força! Mesmo assim, ficou-me o desejo de permanecer no “ser”, presente na expectativa da possibilidade de uma vida além da morte... Ficou claro para mim que o ganho mais palpável da crença na imortalidade da alma é, principalmente, o espaço que se abre para a esperança de experimentar a felicidade, num mundo “hipotético”, mais justo e mais belo, idéia na qual estou apostando todas as fichas. Este seria o aspecto prático, imediato, do mergulho de ponta cabeça na crença da imortalidade da alma pessoal. Obviamente, esta esperança alivia a tensão da expectativa de um aniquilamento total com a morte física...  Mas não é este lenitivo que valoriza a crença... certamente não valeria a pena sobreviver para uma repetição enfadonha, por toda eternidade, das incertezas, sacrifícios, sobressaltos já experimentados, sempre renovados.  Mas há um custo existencial para usufruir os benefícios dessa crença... não basta aceitar, intelectualmente, a cosmovisão espiritualista correspondente, ou agir como se... É necessário consumar uma relação absoluta com o absoluto (abstração superlativa inefável) que caracteriza a experiência mística; e para tanto é preciso mais, muito mais do que, apenas, admitir, intelectualmente, a alternativa espiritualista. É necessário “viver” as virtudes teologais[2] cuja incorporação pelo crente exige dedicada determinação, humildade e autodisciplina... é  preciso senti-las como emanação do próprio “ser”... É abismal a profundidade existencial dessas virtudes! Para falar só de uma, a caridade (amor), que engloba todas as demais, só vislumbrei sua grandiosidade quando li a segunda carta de Paulo aos Coríntios[3]. Confesso que fico tonto só de pensar a altitude existencial a que preciso alçar-me para viver caridosamente!... Equivoca-se o beato que pratica o ritual místico, formalmente, sem realizar a experiência numinosa[4] implícita na relação absoluta com o absoluto. Dessa forma, fica bastante claro que o misticismo não é uma panacéia para curar o medo de morrer. O exorcismo deste temor é o resultado de uma experiência profunda que tem mais a ver com o amor do que com o medo. Por outro lado, focalizando a questão de um ângulo genealógico, a proposta de uma vida além túmulo, de alguma forma está vinculada  à lógica interna da vida consciente... Senão vejamos. A análise fenomenológica do existir autêntico[5] põe em evidência a capacidade de transcender inerente à própria consciência. Capacidade que independe do medo que se tenha de morrer, e que, processualmente, por sua dinâmica aponta para uma realidade que não se confina aos limites temporais. A necessidade de transcender implica numa atividade que exige após cada conquista, novo esforço de ultrapassagem, até o infinito. Eis a enrascada em que nos meteu a consciência!!!

Ao adentrar pela idade da razão nos perguntamos com certa sofreguidão: de onde viemos e para onde vamos? Questionamentos que, se levados às últimas conseqüências nos remetem ao absoluto misterioso (absurdo lógico) no qual estamos imersos. Este absoluto que, por definição, encerra o mistério do primeiro princípio e do último fim remata uma cosmovisão consistente, coerente, que propicia o lastro (apoio) para valores confiáveis em torno dos quais se constrói uma existência plena de sentido. Os valores contingentes são sempre discutíveis, mesmo quando são absolutizados pelo homem! Então, do ponto de vista lógico, especulativo, é preciso admitir a premissa de um absoluto infalível (absurdo para a razão) a fim de respaldar valores totalmente confiáveis. Para dar à existência este respaldo, contudo, impõe-se um ato de fé. Eis o impasse... não controlamos a fé! Todavia, precisamos dela para fechar a gestalt do vir a ser consciente com um absoluto que é um absurdo lógico, mas, indispensável para banir o absurdo existencial representado pela vivência de contradições insolúveis. Na verdade pode-se conviver com o absurdo lógico (absoluto), mas o absurdo vivencial que implica viver a própria contingência, conscientemente, dilacerado pelas dicotomias da existência[6] é desagregador da própria existência. Para aceitar o absurdo lógico e fechar a gestalt da existência será, então, indispensável adotar uma atitude humilde de fé numa transcendência absoluta. Enfim, um princípio ético intemporal é fundamental para estruturar uma ética, com valores válidos universalmente. Dostoievski (1821 – 1881) disse em “Os Irmãos Karamazov”, “se Deus não existe tudo é permitido”! Evidentemente, a frouxidão ética, a que se permitiria o homem na ausência de Deus (absoluto), subentendida na afirmação do grande romancista russo não implica, necessariamente, na não existência de qualquer esquema ético. Mas neste patamar seria preciso estabelecer um valor temporal que, absolutizado, representaria o referencial decisório. Este é o caminho insidioso do estóico materialista que insiste corajosa e temerariamente em assumir a “dignidade” de ser a medida de todas as coisas. Que equívoco! Continuei monologando... Lembrei então... É exatamente neste ponto que Kierkegaard (1813 – 1855) propôs na sua filosofia existencial, a passagem de um nível ético para o nível ético-religioso de existência que inclui , pela fé, a “presença do absoluto” necessário para dar um suporte (garantia) transcendental às escolhas éticas do homem... Disposto a esgotar as minhas dúvidas, continuei questionando... Ora, ao crer neste absoluto, não é o próprio homem que O está criando? Teoricamente, sim... Mesmo acatando o testemunho de uma “revelação” é sua opção de fé que cria o absoluto!... Entendi, então, o motivo da afirmação de  Miguel de Unamuno (1864 – 1936): “Ter fé não é crer no que não se vê, mas criar o que não se vê”. Continuei na minha caminhada investigativa... Conjecturei... da mesma forma que o amor por sua amada impregna toda subjetividade do amante, não lhe deixando dúvidas  sobre a existência do seu sentimento; não temos como negar a autenticidade, no transe místico, da vivência empolgante, absorvente, de uma presença inefável.... Nela o místico se deixa absorver sem reservas! A afirmação de São Paulo resume esta vivência: “Já não sou eu que vivo, mas Cristo que vive em mim”.(Gl. 2,20)

Afinal, fiz a minha opção. Trata-se de uma opção, sim, porque não há como provar, racionalmente, qualquer das duas teses (materialista e espiritualista) e, dessa forma, do ponto de vista estritamente racional, é tão absurdo afirmar como negar a existência de um Absoluto. Assumo, pois, a responsabilidade da escolha, uma reedição da velha aposta pascaliana. Escolho Deus (Absoluto) e a alternativa cosmogônica espiritualista. Talvez a inquietação mais profunda escondida por trás desta opção esteja resumida no estado de espírito tão bem descrito por Fernando Pessoa (sob o pseudônimo de Bernardo Soares) no “Livro do Desassossego”: “E de repente, tudo parece tão absurdo... Eu, o mundo e o mistério de nós ambos”. Para não soçobrar no absurdo vivencial, estou me confiando, conscientemente, ao mistério do ser (assumindo-o sem discuti-lo) como o caminho para  alcançar a vida plena! Estou convencido de que no transe místico o mistério se desfaz. Mas sei que todo esforço consciente, voluntário, feito nesse sentido se esboroa na tentativa vã de expandir a existência numa relação absoluta com o absoluto, por mero esforço da vontade... A experiência de fé é uma dádiva, não se pode ensiná-la ou aprendê-la. Mas, em nome de uma expectativa confiante podemos comprometer todo nosso potencial intelectivo, afetivo e volitivo, predispostos a realizar um ideal de unidade, harmonia e perfeição, oculto aos olhos do tempo indiferente.  Enfim, a investigação que conduzimos até aqui deixa-nos à vontade para dizer que a crença na imortalidade da alma não resulta do medo de morrer... Admiti-lo equivaleria a acreditar que o medo do anonimato é motivação e causa eficiente da inspiração do artista... quando sabemos que a experiência mística e a criação da obra de arte são o apanágio de espíritos sensíveis agraciados por dons excepcionais.



[1] Resultado do exercício da consciência
[2] Fé, Esperança e Caridade (Amor).
[3] Entre outras afirmações destaco esta: “E ainda que eu distribuísse todos os meus bens entre os pobres e ainda que eu entregasse meu próprio corpo à cremação, se não tivesse caridade nada disso me aproveitaria.
[4] Segundo Rudolf Otto (1869-1927), teólogo e filósofo alemão, o sentimento único vivido na experiência religiosa, a experiência do sagrado, em que se confundem a fascinação, o terror e o aniquilamento.Dic.Aurélio Sec.XXI
[5] Modo de ser do homem consciente e responsavelmente
[6] Nascer sem pedir e saber que vai  morrer sem querer; aspirar a tudo poder e saber que reterá apenas uma pequena parcela de poder; desejar  tudo conhecer e saber que terá acesso a um conhecimento limitado.