segunda-feira, 14 de março de 2011

Ato Médico - uma breve história


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Médico à moda antiga, confirmei em cinqüenta e quatro anos de profissão, o que sempre soube: a anamnese[1] contribui com pelo menos 50% de subsídios para o diagnóstico; a boa relação médico / paciente é o fator mais importante no processo de cura; para resguardar as virtudes hipocráticas, o respeito à vida deve permear todas as ações inerentes à atividade médica. Esses conceitos básicos continuam de pé, mas têm sido esquecidos. Esquecimento que desfigura a excelência do exercício da Medicina. A compaixão e a empatia associadas à missão de cuidar do enfermo são vistas, hoje, como virtudes românticas pelos que massificam a prática médica, principalmente, na rede pública de assistência. Sem a disposição de personalizar o cuidado com o paciente, em respeito à dignidade da pessoa humana que ele personifica, o exercício da Medicina fica desfigurado. Sob a influência desse descompromisso em relação à responsabilidade inerente ao ato médico desenvolvem-se práticas incompetentes, deformando-se a postura do médico diante do paciente.
É fácil constatar que a humanidade toda está passando por uma crise ética. Basta olhar como caminha o mundo, hoje, afogado na corrupção e na violência. Mas quando esse relaxamento moral afeta atividades nobres como o exercício da Medicina e o Sacerdócio Religioso provoca grande indignação.  Por isso, em nossos dias, nenhum abalo moral é mais escandaloso do que o desvirtuamento do ethos médico e do comportamento exemplar dos pastores de almas.
É notório que o comportamento capitalista legitima a competição e o acúmulo de bens materiais como procedimentos defensáveis e desejáveis. A flexibilidade moral implícita nos comportamentos político, social e econômico, vigentes no sistema despreza, insidiosamente, a ética e premia a esperteza. Este quadro está rascunhando um capítulo negro na História da Humanidade. Nesse contexto, o progresso da Ciência e da Tecnologia aumenta cada dia a eficácia técnica da assistência médica, mas, ao mesmo tempo encarece os procedimentos, impedindo que deles se beneficiem todos os pacientes. O custo assistencial passou a ser fator decisivo na prestação dos serviços médicos! É de lamentar que se tenha perdido o controle dessa situação, principalmente, no setor público, com repercussão perniciosa para a assistência aos que dependem, entre nós, exclusivamente, do Sistema Único de Saúde (SUS).
Paralelamente, o achatamento da classe média, decorrente de uma política econômica excludente torna a assistência médica proibitiva para uma fatia maior da população. Só os ricos podem arcar com o custo de um tratamento médico, quanto mais complexo mais caro. Disso se aproveitam as instituições financeiras que administram os assim chamados Planos de Saúde, com vistas ao lucro embutido nas prestações antecipadamente pagas pelos segurados para garantirem-se assistência médica quando lhes sobrevier, eventualmente, uma doença. Esta atividade “empresarial”, como sabemos, movimenta grande quantidade de dinheiro, tornando-se apetitoso o ágio cobiçado. E logo se multiplicaram os Planos de Saúde. Mas eles introduziram mudanças traiçoeiras na relação entre o médico e o paciente. O acordo de trabalho até então autônomo entre o paciente e seu médico passou a ser intermediado pelas operadoras dos Planos de Saúde, instituições necessariamente burocráticas que, por sua própria natureza exigem do médico obediência a critérios administrativos impessoais. Ao intermediar este contrato de trabalho, as “Operadoras” se insinuam, inevitavelmente, como agentes dominantes do processo. Por um mecanismo psicológico fácil de entender, o paciente que paga antecipada e pontualmente mensalidades polpudas, sente-se de alguma forma com direitos adquiridos. Antes, diante do seu médico sentia respeito e confiança, agora, além disso, sente-se um pouquinho “patrão”, também. Por outro lado, o médico se obriga a aceitar as tabelas e normas propostas pelos Planos de Saúde, para garantir-se uma clientela, criando assim um vínculo de dependência que lhe impõe alguma restrição à total autonomia.
Com o fim de fugir do determinismo sócio-econômico pelo qual o trabalho médico entra no circuito assistencial como mercadoria sobre a qual  o capital anônimo contabiliza lucros, faz mais de 40 anos, criaram-se as UNIMEDs (União de Médicos) no Brasil. A idéia central é que essas Cooperativas de médicos libertam o facultativo da exploração de terceiros, passando o cooperado a gerir a recompensa de sua própria atividade profissional... O que é uma conquista revigorante da autonomia do Médico no exercício do seu ofício. Mas, como era de esperar, as UNIMEDs cresceram, passaram a movimentar milhões de reais e para tanto tiveram que se organizar, burocraticamente, como qualquer plano privado de saúde, sustentável. Obviamente, Isso tem um custo operacional que não é pequeno. Tal como as coisas estão postas, o segurado da UNIMED recebe assistência médica mediante pagamento mensal de um montante variável, de acordo com o tipo do plano escolhido. E o médico cooperado recebe a sua produção calculada em unidades de serviço. O cálculo desta unidade é feito sobre o saldo de toda arrecadação da Cooperativa depois de efetuado o pagamento aos fornecedores, de descontado o custo operacional da máquina burocrática, e de ser contemplado com quota prefixada, um fundo de reserva destinado a cobrir as variações da arrecadação, tendo em vista os gastos fixos da Cooperativa. Em verdade, o que sobra para o rateio com os cooperados é sempre muito pouco. Mesmo assim, a Cooperativa é uma alternativa para o médico, visando a libertar o seu trabalho da condição de mercadoria comercializada, lucrativamente, pelo “capital anônimo”. Todavia a relação médico-paciente continua ressentindo-se de uma intermediação indesejável, por força da burocracia indispensável... afinal, a UNIMED também é um  Plano de Saúde!
Não estamos aqui apreciando um problema local, brasileiro, apenas, mas é todo mundo médico que está vivendo as conseqüências da evolução inexorável da tecnologia, e da deplorável distribuição irregular de renda. Esses fatores, o técnico científico e o econômico social acabam influindo, direta ou indiretamente, na qualidade e distribuição da assistência médica. Esgarçado o vínculo ético dos que praticam a medicina e atividades afins, abrem-se caminhos tortuosos visando vantagens materiais na prestação da assistência à saúde. Lamentavelmente, quando descomprometido com as virtudes hipocráticas, o agente de saúde, sem a devida formação moral, encontra facilidade para fazer do seu métier uma atividade “comercial”. Não queremos generalizar, e aproveito o ensejo para homenagear os verdadeiros discípulos de Hipócrates que ainda são maioria. Mas  tudo só tende a piorar na medida em que proliferam as diplomações de graduandos em cursos médicos de baixa qualidade técnica (salvo honrosas exceções), mantidos pela iniciativa privada que, via de regra, visa, prioritariamente, o lucro financeiro.
Gostaria de concluir este texto mostrando uma luz no fim do túnel ou seja, uma perspectiva otimista que garantisse expectativa favorável à promoção de assistência médica de boa qualidade para todos. Mas os indicadores disponíveis não apontam para este desfecho a curto ou médio prazo.
Espero que as novas gerações, com mais fôlego, hão de encontrar os caminhos para uma sociedade justa e solidária, implementando política sócio econômica capaz de propiciar assistência médica de boa qualidade, para todos, indistintamente. Certamente isso não ocorrerá sem profundas mudanças culturais. É oportuno lembrar que a raiz do mal está nos paradigmas sociais e econômicos vigentes, que reforçam a cobiça do homem envolvido num processo competitivo que visa a “ter mais”, em detrimento do ideal de “ser mais”[2]. Estas orientações definem alternativas do comportamento humano que fazem toda diferença nos desdobramentos da organização social. E todos sabemos qual a repercussão social da competição aética orientada no sentido de “ter mais”... Orientação que desfavorece a distribuição equitativa dos bens entre os indivíduos, e incide brutalmente na qualidade de vida das populações economicamente excluídas, complicando ainda mais os problemas de saúde pública, e dificultando a assistência médica universal de excelência.
                                   Everaldo Lopes



[1]   Informação acerca do princípio e evolução sintomática de uma doença até a primeira consulta com o médico.  
[2] Erich Fromm