domingo, 12 de junho de 2011

O mundo físico e o metafísico


As funções psíquicas superiores (consciência reflexiva, intuição criativa, entre outras) induzem à afirmação especulativa de um núcleo transcendental no homem - a alma humana. O estudo do  servomecanismo biopsíquico (Sistema Nervoso Central) ao qual as funções psíquicas superiores são referidas ainda não permite entender como se dá o reconhecimento reflexivo imediato dos fenômenos subjetivos. Além do mais ficaria por explicar como a energia físico-química inerente à atividade neuronal se transforma em pensamento, intuição, vivências... Não cabendo na dimensão espaço-temporal da realidade, a “alma humana” não pode ser objeto de estudo das Ciências exatas... esta conclusão entremostra o mistério da consciência no mundo. Então, admitir a alma humana como realidade transcendental passa a ser um ato de fé.
Curiosa, a razão mergulha na realidade, numa busca vã do conhecimento de como se estrutura a subjetividade do ser pensante... Insatisfeito com a própria limitação epistemológica, o homem tenta contextualizar-se no mundo. Ora assumindo uma atitude materialista, considerando a metodologia científica como a única via legítima de abordagem da realidade e negando qualquer transcendência[1]; ora cedendo espaço para a fé num “Princípio dinâmico absoluto[2]” Criador do Universo, regente dos imponderáveis que marcaram a Evolução, desde a matéria primitiva até a vida consciente... Fé que se contextualiza em doutrina formalizada numa mundividência espiritualista. Esta visão de mundo transporta o homem para além dos confins da racionalidade, levando-o a cogitações abstratas que o conduzem à crença no espírito[3]. Desta forma se configura na subjetividade humana a polarização conceitual da matéria (percebida pelos sentidos), e do espírito inefável, objeto de especulações abstratas, metafísicas, que prescindem dos sentidos fisiológicos.
Os sentidos captam os estímulos da realidade objetiva através de sensações que são interpretadas pelo córtex cerebral como percepções. Portanto, em última instância, para o homem, a realidade concreta é percebida como resultado da interação entre a sensibilidade específica  dos sentidos e os estímulos que lhes correspondem.  Não havendo alteração dos parâmetros atuais desta relação, o mundo visível até então conhecido permanecerá como algo definido e concreto[4]. Mas fica de pé a tese que fazendo variar o limiar dos sentidos, a percepção desta concretude variará, também.  Poder-se-iam, então, imaginar nuances da realidade (mundo) como possibilidades viáveis, alternativas da realidade que hoje se nos apresenta como única e definitiva. É oportuno lembrar que muitas destas possíveis mudanças do limiar de sensibilidade poderiam tornar insuportável o contato do homem com o mundo... Seria intolerável, por exemplo, conviver com um limiar de sensibilidade ao som que captasse vibrações produzidas num entorno bastante extenso; o tumulto sonoro perturbaria a nitidez das sensações auditivas! O mesmo se pode dizer em relação à exaltação do limiar de sensibilidade dos demais sentidos. Por isso a “Evolução” fixou, sabiamente, limiares sensitivos que se harmonizam num sistema estruturado pela integração de todos os sentidos, de forma confortável para as necessidades vitais e sociais do homem. Este é um detalhe evolutivo que envolve a “lógica da complexidade” implícita nos sistemas biológicos, reforçando a idéia que na estruturação do organismo vivo todas as funções interagem simultaneamente e desta interação decorre a funcionalidade de cada órgão. O organismo vivo, como unidade biológica integra diferentes funções, condicionando a estrutura anatômica e histológica dos vários órgãos incorporados em aparelhos e sistemas. Entre estes, o Sistema Nervoso Central (SNC) que no homem alcançou seu mais alto grau de complexidade e ao qual estão vinculados os sentidos externos que regem a interação do homem com o meio ambiente... por isso também chamado “sistema nervoso da vida de relação”.
Como vimos, teoricamente, a percepção do mundo depende do limiar dos sentidos, reduzindo-se esta percepção a uma “função” da acuidade sensorial humana... desta forma se estabelece uma ponte estrutural, evidenciando-se a interação permanente consciência - mundo. A perspectiva da possibilidade de haver tantos mundos quantos fossem os pontos de corte do limiar de sensibilidade sensorial gera a necessidade de um controle. Por isto no processo evolutivo a validação da realidade é aferida à possibilidade integrativa dos elementos constitutivos desta realidade num “todo” harmônico, significativo, assimilável pela consciência. A integração das partes neste “todo” é o fator de correção que impede as aberrações evolutivas. Desta forma o “Princípio[5] dinâmico criativo, absoluto” (organizador) presente no cosmo garante a organicidade do mundo em que vivemos, e se revela no homem como consciência inteligente, racional... é, também, responsável tanto pela harmonia do sistema sensorial (manifestação cósmica) como pelas funções psíquicas superiores cuja natureza não se confunde simplesmente com a materialidade cósmica do Sistema Nervoso Central (SNC)... Igualmente, uma vez que o Universo conhecido não tem a força da subsistência, para existir precisa ter o suporte permanente do “Princípio Criador”, um absoluto[6] que se enquadra na categoria do “absurdo[7]” conquanto seja indispensável para justificar o estado evolutivo a que chegou o universo conhecido. O absurdo consiste exatamente nisto: o mundo imanente exige uma transcendência simultânea que lhe seja “inerente”[8], para sustentar a própria  contingência... sem este suporte, o mundo deixaria de existir.
Diante da inextrincabilidade essencial dos mundos físico (temporal) e metafísico (atemporal), e da impossibilidade lógica linear de reuni-los num só “ser”, embora incompreensível para a lógica racional, é legítimo admitir que a diferença entre ambos (os mundos) é puramente epistemológica[9]. Na prática, a superação desta diferença só se realiza na experiência mística na qual o “ser consciente” transcende a limitação temporal individual sem abandonar a contingência espacial, numa vivência cuja contextualização existencial transcende a separação entre a consciência e o mundo, dispensando a interface racional entre ambos.
Como do ponto de vista estritamente racional nada se pode afirmar ou negar do absoluto implícito num “Princípio Universal Criador”, o homem está livre para fazer a sua escolha, incorporando-O na sua existência, mediante um ato de fé (espiritualismo); ou negando-O (materialismo). Posicionamentos cujo background psicodinâmico esconde desejos e expectativas inconscientes que distinguem o espiritualista e o materialista. A consciência dos antecedentes empíricos e especulativos que dão suporte aos argumentos implícitos em cada uma destas orientações caracteriza a “Espiritualidade Transparente” que abordei em texto anterior. Devo confessar que estou convencido da maior consistência do posicionamento espiritualista.       
            Everaldo Lopes


[1] O que está além de qualquer catagorização racional possível.
[2] Diz-se de ou a realidade plena, ilimitada, essencial, que não depende senão de si mesma para existir (Houaiss)

  [3] No hegelianismo, princípio dinâmico, infinito, impessoal e imaterial que conduz a
    história da humanidade, e que se manifesta no ser humano como plena razão e
   liberdade (Houaiss)

[4]  Diz-se de coisa ou de representação que se apresenta de modo completo, tal como lhe é próprio apresentar-se na sua realidade existencial. Houaiss)
[5] No texto anterior (Espiritualidade transparente) este Princípio está implícito na idéia de “Consciência Cósmica”.
[6]  Diz-se, propriamente, do que existe em si e/ou por si
[7]  Que escapa a regras ou a condições determinadas;  pensamento inconsistente de um ponto de vista lógico
[8] Que existe como um constitutivo ou uma característica essencial de alguém ou de algo.(Houaiss3)
[9] Referente à sistematização de relações conceituais.