segunda-feira, 30 de setembro de 2019

E antes do big-bang ?




Tudo que dissemos na publicação anterior intitulada “O UNIVERSO TAL QUAL O VEMOS” diz respeito  à realidade mensurável  diante da qual nos colocamos. Mas o big bang que inaugura a dimensão material do Universo conhecido representa apenas um momento crucial da caminhada evolucionária que, finalmente, ensejou no homem o exercício da consciência  reflexiva. O big bang foi uma explosão inigualável, sem dúvida, mas explosão do que(?).  Pode-se insinuar, hipoteticamente, a possibilidade da explosão de um buraco negro, uma super condensação de matéria, tão intensa que sua força de gravidade não permite escapar  sequer um raio de luz, tornando-a invisível (a matéria superconcentrada). Mas isso não é tudo. De onde veio esta matéria? Aqui nos deparamos com um problema metafísico. O que existiria antes do aparecimento da primeira partícula subatômica?  Escapa-nos a menor ideia sobre o que havia antes disso, necessariamente algo que ultrapassa a percepção dos nossos sentidos. Para encher esse mundo imaterial introduzimos no nosso vocabulário o conceito de espírito, como uma entidade superior que dispensa a matéria. Algo que não se pode medir nem avaliar quantitativamente, que não tem realidade palpável e que só reconhecemos pelos seus efeitos. Todavia continuamos ignorando como se deu a formação da primeira partícula material.
 No seio da doutrina criacionista (que se prolonga no evolucionismo), o espirito está em tudo, mas só no homem ele se manifesta através de funções complexas específicas como a inteligência, a consciência reflexiva, a memória descritiva de experiências anteriores. Só a organização complexa do sistema nervoso central do homem permitiu, no curso da Evolução, a manifestação do espírito eternamente presente em tudo, capacitando-nos, os homens, para a organização de uma linguagem comunicativa rica de recursos expressivos. No padrão místico do texto bíblico o espírito diz respeito a uma entidade imaterial que pertence ao mundo sobrenatural. Ora, sendo imaterial o espírito é indivisível, mas é capaz de refletir a realidade em pormenores, demonstrando em si, essencialmente, a capacidade de sensibilizar-se vivenciando a verdade do nosso conhecimento sobre o mundo em que vivemos e experimentando o “amor ao próximo”.
 Na intimidade do espírito puro somos todos um; prevalecerá, então, a harmonia absoluta. Mas ao manifestar-se no homem o espírito sofre as restrições impostas pelo atavismo animal inerente à biologia humana que  ameaça toldar as manifestações espirituais, com a expectativa dos prazeres da carne que seduzem através da tentação do gozo imediato. Ora, sendo o espírito eterno e imutável  será a vivência de sua harmonia absoluta que cada um de nós há de experimentar quando se libertar, após a morte biológica, da roupagem  material indispensável  à sua manifestação no tempo. Imagino que no mundo espiritual só cabem as vivências construtivas de verdade,  bondade e  beleza. Se o espírito sobrevive às manifestações biológicas, ao livrar-se da dimensão corporal guarda apenas as vivências construtivas que experienciou durante sua permanência temporal. Ainda como consequência do argumento tomista (o mal é a ausência do bem)  o mal não tem lugar fora do mundo temporal, pois, definido como a ausência do bem não cabe no puro espírito onde só prevalecem o amor, a paz e a criatividade de valores positivos. No espírito dos que, ao monitorar a existência humana, não experimentaram as  vivências construtivas de verdade e amor fraterno certamente elas, as virtudes  construtivas, permanecem como possibilidades insatisfeitas. A consciência dessa insatisfação permanente é o background de uma caminhada inglória! Só o amor constrói para a eternidade. Que inferno pior do que caminhar eternamente para nada? A doutrina espírita contorna o problema da perfectibilidade do humano introduzindo o conceito de reencarnação do espírito em vidas subsequentes, até alcançar a perfeição que lhe é inerente. O pensamento cristão que defendo é compatível com a integração da alma humana no seio do spírito eterno; uma vez  que há um só espírito.
Numa perspectiva espiritualista a morte como aniquilamento total não existe, pois, o espírito sobreviverá às suas manifestações temporais, purificado, ao participar das primícias da eternidade. Alcançado o patamar superior da existência ou modo de ser próprio do homem, o prolongamento da vida biológica, indefinidamente, redundaria na privação de uma experiência inexcedível de liberdade, criatividade e integração com o absoluto criador, sem qualquer interferência material.

A incerteza do que está por vir após a morte biológica enseja o maior de todos os medos que acometem o homem. Mas a infalibilidade da perfeição do Criador  garante ao homem superar sem traumas o medo de morrer. Acabamos por entender que a ideia  de tudo terminar com o fim da vida biológica é incompatível com a definição de um Deus criador, e no fim o Espírito (eterno) reinará como um absoluto. Ora, sendo o Criador, necessariamente, um absoluto, nada mais existe fora d´Ele. Ele é o princípio e o fim de tudo que existe ou poderá existir. Mas só se capacitam disso durante a existência temporal os homens que em sua vida biológica não se deixaram vencer pelo atavismo animal e viveram com intensidade o amor à verdade e a solidariedade entre seus pares.
A evolução da matéria até e emergência de um ser consciente reflexivo aponta para a caminhada evolutiva em busca de uma ordem crescente, o que remete a uma consciência eterna, ordenadora, inerente ao Deus criador -  um absoluto - princípio e fim de tudo quanto existe. Pois uma ordem crescente no processo evolutivo implica numa intenção prévia, e não há intenção sem consciência, no caso uma consciência universal. Por definição, nada existe fora do absoluto; este absorve o tempo, de modo que nele não há passado nem futuro, tudo é presente eterno, infinito. O homem é um projeto perfeito de organização da matéria, mediante a complexificação crescente desta matériaT, que ensejou a vida consciente - manifestação do espírito - necessária para o exercício do amor e da solidariedade, virtudes indispensáveis à sobrevivência do homem e ao prolongamento da Evolução.

Everaldo Lopes


sábado, 7 de setembro de 2019

O universo tal qual o vemos hoje


Na tentativa de embasar uma visão compreensiva da realidade surgiu-me o desejo de alinhar coerentemente meu pensamento a respeito do mundo e da consciência, atentando como tudo isso começou e evoluiu.
Nessa perspectiva podemos surpreender a forma racional e consequente de uma ordem implícita nos acontecimentos que nos trouxeram até o momento que vivemos.
Partimos de uma constatação óbvia: há duas dimensões que dão realidade concreta às coisas, mas não se podem criar a si mesmas, o tempo e o espaço. Para que uma simples partícula de matéria exista não lhe podem faltar à substância de que é feita, espacialmente delimitada e sua permanência como tal, ou duração cuja medida é o tempo.
Ora, podemos observar, hoje, que numa perspectiva evolucionária desde o big bang, primeira manifestação da matéria passível do registro humano, houve uma ordenação crescente cada vez mais complexa da matéria inicialmente reduzida a simples partículas subatômicas que se condensaram progressivamente formando corpos compostos, organismos vivos e, finalmente, ensejando a vida consciente.
Uma vez que logicamente não há ordem sem intenção, a ordenação da realidade exige uma intenção precedente à organização que se pode confirmar, hoje, mediante a avaliação do curso da própria caminhada dos corpos mais simples até ao mais complexos, desde a matéria primitiva caótica até a organização que oportunizou a emergência da vida consciente.  Ora, a intenção é um fenômeno da esfera consciente. Portanto, a intenção de promover a ordem evolutiva do cosmo e da vida pressupõe uma consciência universal que seja irrestrita, infinita, por definição, um absoluto.
Se admitirmos a hipótese do acaso como explicação do processo evolutivo tal como aconteceu no tempo entre o big bang e a realidade atual, teríamos que aceitar a possibilidade de um anti-acaso que ensejasse a ordem existente hoje, o que equivaleria a um Deus criador, determinante da sequência de coincidências felizes na história da Evolução. Ou seja, a tese da Criação confundir-se-ia com a existência de um anti-acaso ou de absoluto criador (Deus), necessário para justificar o mundo e o próprio homem tal como existem hoje. Logicamente, essa transcendência absoluta (o anti-acaso) não só teria criado tudo que existe, mas precisa estar presente na sua criação, permanentemente, uma vez que a criatura não teria a força para sustentar a própria subsistência e, portanto, abandonada à própria sorte não sobreviveria. Esta afirmação implica na presença temporal indescritível da Transcendência absoluta na própria criatura. Em linguagem coloquial corresponderia à presença real de Deus em cada um de nós. Ora, Deus, puro Espírito é único e indivisível. Mas o Espírito eterno apenas retém as características pessoais amoráveis, construtivas, de cada um de nós, todas as demais se anulam a si mesmas no contexto do absoluto. De tal forma que no espírito eterno sobrevivem apenas a verdade e o amor.
No clímax da Evolução emergiu a consciência que por coerência com a própria ordem evolutiva será, necessariamente, livre e responsável, característica da condição humana, assim propiciando a possibilidade de o indivíduo coparticipar na orientação do próprio devir, colaborando com o Criador.
A capacidade de decidir livre e responsavelmente foi, portanto, uma necessidade do processo evolutivo ao alcançar a maior complexidade estrutural  no indivíduo humano. Tornou-se imperioso, então, mudar o rumo da caminhada evolucionária; até agora centrada no indivíduo, deveria orientar-se daí por diante no sentido psicossocial, tendo em vista a organização solidária de todos os homens. Essa mudança de orientação resultaria, necessariamente, em consequências específicas. Senão vejamos.
Tudo que existe está mergulhado no absoluto transcendental que, necessariamente, é atemporal. Fora do tempo, tudo que a nós nos parece definido (limitado ao tempo-espaço), na história (passado, presente e futuro), está acontecendo simultânea e instantaneamente no presente eterno, expressão mais próxima da atemporalidade inerente ao absoluto transcendental.
Obviamente o presente eterno é um conceito irracional que não obstante especulativamente justificável não se contém numa definição compreensível, embora caiba numa vivência mística.
Ora, a consciência humana atua no tempo espaço, onde tudo se define como realidades discretas, discerníveis pelo contraste. Mas as diferenças que marcam a diversidade das coisas no mundo, em alguma medida se opõem e se anulam no absoluto que as contém. Já no tempo histórico não há superposição dos contrários; se assim não fosse os contrários não se apresentariam isoladamente na exuberância de cada um. Desapareceriam como acontece quando se encontram uma partícula de antimatéria e outra de matéria - elas se aniquilam. Quando isto não acontece o espírito reconhece o mal como uma ruptura da unidade significativa do todo. Seguindo as pegadas do tomismo, doutrina escolástica de Tomaz de Aquino, o mal não teria uma existência real, mas seria ausência do bem.
Absorvida pela atemporalidade original toda realidade se resume à unidade absoluta, própria da transcendência inacessível à razão limitada à dinâmica do espaço-tempo. Exatamente por estar limitada pelo horizonte espaço-temporal cada situação se distingue para a consciência histórica, ao seu tempo, configurando a presença ou não do bem.
No contexto atemporal do absoluto transcendental que se convencionou denominar Deus, não há contrastes. Tudo é essencialmente perfeito na unidade absoluta. A superposição de todos os contrastes os anula instantaneamente, em benefício da unidade absoluta.
Como entidade espaço-temporal a perfeição da criação se prolonga na perfectibilidade humana através da prática consciente, livre e responsável da existência [1], capaz de caminhar no tempo à sombra das ações decorrentes de decisões que refletem a unidade significativa do todo absoluto, perfeito e amorável - Deus. A consequência disso é que o argumento do mal histórico não arranha a perfeição divina.



terça-feira, 16 de julho de 2019

Cosmogonia e psicodinâmica existencial




            Na perspectiva de uma visão monística espiritual da realidade, será válido admitir que as leis que regem o Universo são as mesmas que regem o pensamento. Aliás, dado que o espírito é eterno e a matéria efêmera, será melhor inverter a ordem desta sequência: as leis eternas do pensamento (espírito) regem, por extensão, o Universo, e ganham com isso uma expressão fenomenológica, pois o Universo reproduz o pensamento de Deus materializado. Essas Leis são a expressão formal do Espírito cifrado na natureza. Universo entendido como uma espacialização virtual do Espírito, que desde o primeiro momento ( o ¨Fiat¨) deu início à contagem regressiva (tempo cósmico) de volta ao princípio de tudo (espírito eterno - ,absoluto), fonte permanente da criação, onde tudo começa e termina. Na abordagem racional da realidade cósmica aplica-se com proveito a lógica matemática e linguística do pensamento, inerente à ordem do espírito, que tem no simbolismo dos números a sua representação mais radical, capaz de resumir numa fórmula a realidade do Universo (E=mc2, fórmula com a qual /Einstein representou o universo). Visto assim, como uma manifestação do espírito, o cosmo – “estado temporal de Deus” – revela-O na e pela consciência pessoal.
Através de “complexificações” crescentes, o cosmo, finalmente, produziu o homem, porta voz do Espírito Eterno, através da fluidez etérea do pensamento - subjetividade. Irrompe, assim, a consciência, pedra de toque da existência (prática da consciência responsável) fechando a “gestalt” do caos original ao “big bang”, da imensa simplicidade da nebulosa inicial à harmonia unitária do universo ilimitado. Depois de ganhar dimensão, o Espírito (cifrado no cosmo) se reconhece a si mesmo como dissemos, na e pela consciência pessoal. Tudo isso, na verdade, encerra um grande mistério que apenas se entremostra à intuição da completa noção de um mesmo ser em todos os seres incompletos que fazem a aparência fenomênica do mundo.
            E a vida? A vida e o mundo flutuam como sombras passageiras sobre o fundo misterioso da única realidade, inexplicada e inexplicável: o Espírito. Sobre este abismo a consciência se desdobra em pensamentos, ideias, vivências, lembranças, fragmentos da vida inconsciente, de experiências de prazer, de tristeza, de medo, de ansiedade, de angústia que perfazem a fenomenologia da subjetividade. Nesta brecha (a consciência) que se abre na estrutura monolítica do Universo, fundem-se o eterno e o temporal no bojo do presente (portal da eternidade), na busca permanente do amor e da sabedoria, à sombra da liberdade. O tique-taque do tempo histórico marca o compasso desta busca, através de caminhos tortuosos que se multiplicam em veredas, impondo ao homem fazer opções responsáveis em cada encruzilhada. Neste plano, a concepção sistêmica do “eu”, referencial da vida consciente, inclui a valorização de um perfil pessoal que atende à uma demanda histórica, cultural e social.  Para conservar o perfil idealizado, o ser consciente pode barganhar, mentir, distanciando-se da sua realidade mais profunda - o próprio Espírito incriado que é o substrato ontológico de tudo. Inutilmente preocupado com a instabilidade da sua dimensão temporal, o ser consciente tenta construir defesas que nunca chegam a tranquilizá-lo inteiramente, apenas aquietam momentaneamente a sua ansiedade. Condenado a existir (em liberdade), o ser consciente se dá conta da sua fragilidade e afana-se na construção de uma armadura de segurança. Todavia, a expectativa de insucesso gera mais ansiedade, angústia, e a consciência da finitude dá lugar ao pavor da morte e muito sofrimento moral. Se nos detivermos para analisar o dinamismo desse processo, descobriremos a natureza fantasmagórica das ameaças imaginadas que só subsistem enquanto são infladas pela forja do próprio medo. O medo que se tem do insucesso remonta ao temor do desfiguramento da autoimagem idealizada de competência e autonomia, o medo da fugacidade da vida. Teme-se dar testemunho de incompetência e de dependência, teme-se a morte. No rastro desses medos, a fantasia constrói na imaginação, situações grotescas de desmoralização e de brutal vassalagem à crítica alheia que, de tão valorizada tem poder arrasador sobre o “eu” faltoso. Por baixo de tudo isso reina o descrédito das virtualidades pessoais originais do “eu” que teme e treme diante do desconhecido antecipado pela imaginação. Estas veredas íngremes desviam a subjetividade da sua caminhada empós o verdadeiro amor e a sabedoria. É preciso silenciar os conflitos da subjetividade para escutar a voz de Deus (sabedoria).
            A discussão desses problemas é tão antiga quanto o texto bíblico. Lá já se falava, no estilo cultural da época, sobre o conflito vivido pelo ser consciente entre o tempo e a eternidade, no limite da liberdade contingente. Desde a mais remota antiguidade, sábios, santos e gurus de todos os credos têm discutido a regra de ouro da existência equilibrada, objetiva e tranquila, liberta de temores e ansiedades. Todos chegaram à mesma conclusão: “A cada dia basta a sua pena”. Esta sentença remete à  suprema sabedoria implícita na simplicidade ingênua de uma orientação existencial baseada na entrega consciente à vontade do Criador. Mas os fantasmas que cruzam, erráticos, a nossa mente, embaçam as lentes da razão, enfraquecem o equilíbrio psicofísico, sobrecarregando nossos dias com preocupações inúteis, desestabilizando a vida interior. Urge destruir, metodicamente, as visões fantasmagóricas.
Na busca da paz interior parece-me elucidativa e até apropriada, a analogia que se pode estabelecer entre a dinâmica dos fenômenos físicos e dos psicodinâmicos. Por exemplo, da mesma forma que cargas elétricas contrárias se anulam, catexes (energias psíquicas aplicadas) opostas também se anulam. Daí poder-se esperar, por um mecanismo análogo, a anulação intrínseca e imediata de sentimentos e emoções contrários postos nos confrontos subjetivos, seguindo-se a dissipação das vivências desagradáveis decorrentes de eventuais conflitos. Já registrei na minha própria experiência interior o desaparecimento instantâneo de medos, ansiedades, angústias, a partir do confronto analítico dos elementos psíquicos contraditórios implícitos numa situação traumática, no caso, desencadeante de vivência indesejável. Os estados interiores são construídos por emoções, sentimentos, e ideias cujas polaridades se ajustam a situações específicas. De qualquer forma, em cada situação há sempre uma polaridade discernível dos elementos psíquicos implicados (emoções, sentimentos, Ideias). Descrevendo a situação, expondo a polaridade das catexes envolvidas, sem qualquer preocupação de julgar ou condenar, ensejamos a oportunidade do colapso em que catexes opostas se anulam. Isto tem sido descrito como terapia de colapso.
No plano psicanalítico o eu se sente tanto mais seguro quanto mais se visualiza próximo da sua imagem idealizada, e se compraz de ser assim reconhecido pelos circunstantes. Os desencontros interiores geram voos libertários da consciência, mas deixados à sua própria sorte podem também perpetuar equívocos e conflitos. Neste contexto, para dissimular demandas sensuais interditas, ou o indivíduo consegue integrá-las no quadro dos valores inerentes à autoimagem idealizada, revisando sua visão de mundo, ou sentir-se-á culpado. Então, instalam-se conflitos, sentimentos de culpa, pudores dolorosos que ferem a autoestima e criam turbulências na subjetividade. Uma simples mudança de perspectiva na mirada interior pode alterar, radicalmente, o resultado da experiência subjetiva. Por exemplo, sem descer a detalhes práticos, o abandono da rigidez moralista, em favor do comportamento flexível, objetivo, honesto, mas tolerante, consciente da contingência humana necessariamente imperfeita, favoreceria, e muito, uma “gestalt” integrativa, suavizando conflitos e sentimentos negativos. Para quebrar a rigidez e iniciar a renovação, basta que o “eu” culpado se pergunte e tente responder: por que esta submissão a uma autoimagem idealizada? Existem razões significativas para defendê-la? Quais são elas? Por que atrelar o vir a ser existencial a uma expectativa de riscos fantasmagóricos temidos como se fossem reais? A mudança de perspectiva, mensageira da paz, pode ocorrer espontaneamente em função dos mecanismos de remanejamento automático das energias psíquicas.  Mas, haverá uma maneira de induzir esta alteração de forma consciente e deliberada? Sim, libertando o “eu” sufocado pela vivência de estar à mercê de uma situação irremediável, permitindo-o assumir o seu próprio controle, tendo em vista que tudo é provisório, nada é definitivo. Para isso basta objetivar o núcleo do conflito e assumir a postura de um observador atento, empenhado em descrever, detalhadamente, todos os elementos do problema (da situação) sem qualquer preocupação ética de condenar ou aprovar. Dessa forma o eu “vê” e “delimita” o problema desencadeante da ansiedade ou medo e, descrevendo-o, em detalhes, vai alinhando as características (elementos) positivas e negativas da situação problemática. Não raro a vivência desagradável se desvanece como por encanto. Com este movimento interior estabelece-se uma distância entre o “eu” e o problema subjetivo, abrindo espaço para o exercício da crítica objetiva diante da escolha a ser feita. O “eu” transcende a relação consciência/mundo, e, liberto, reconhecendo a parceria surreal do seu “self” com o Espírito incriado, pode escolher o caminho que mais lhe convier. Mas, para manter o equilíbrio interior, é necessário que o “eu” consciente tenha a humildade para vivenciar sua fragilidade sem desabar. É preciso ser humilde para aceitar as próprias fraquezas e, ainda assim, continuar segurando a mão de Deus. Toda vez que falo Deus, tenho-me diante de uma PRESENÇA que dá suporte à minha própria existência e a do Universo, não de um simples conceito limite. É oportuno salientar aqui que sem atentar para a misericórdia infinita de Deus, ter-se-á sempre uma visão antropomórfica do amor divino. E ao reconhecer um Deus infinitamente misericordioso nós, suas criaturas, nos sentimos confiantes, numa relação mútua assimétrica na qual o Criador se faz nosso cúmplice por sua misericórdia. Deus é tão grande que seria presunçoso querer negociar com Ele um suposto merecimento alcançado mediante ações virtuosas. Nossas ações são uma extensão dos valores universais que nos propomos praticar através de opções pessoais marcadas pela Verdade (fidelidade a Deus e à sua Criação); não devem ser vinculadas à expectativa de ganhos pessoais. Todavia, tudo de bom podemos esperar da misericórdia divina.
O psicodinamismo da alma humana resume o reencontro do Espírito consigo mesmo, mediante relações interpessoais entrelaçadas, por um ato de fé, na unidade divina das três pessoas distintas anunciadas no dogma da trindade divina. A humanidade se engaja nessa trindade, identificando-se ao Deus Filho e cultivando o amor entre Pai e filho. A “gestalt” que envolve o cosmo e a consciência se confunde com um absoluto inominado; não tem expressão verbal ou numérica, revela-se, porém, na experiência mística do UNO.
Ao final dessas considerações, reconheço o quanto elas foram importantes para me aproximar de Deus, ao estilo do filho pródigo, confiante, unicamente, na misericórdia divina. Aconchegado nas dobras desse manto de misericórdia, permito-me conversar com Deus, expondo-Lhe minhas ansiedades, meus temores, minhas necessidades, mas reconhecendo, antecipadamente, a minha condição de criatura, pelo que devo repetir indefinidamente: seja feita a Tua Vontade.

domingo, 30 de junho de 2019

Roteiro espiritual



           
            Ter fé é mais do que fazer uma simples opção, racionalmente justificada. Há que ser uma escolha radical, envolvendo inteligência e sentimento; é crer em algo ainda que seja absurdo. Sendo um absoluto o objeto intangível da crença, logicamente, não se encontra na razão o instrumento mais eficaz de abordagem do objeto de fé; há que lembrar a afirmação pascaliana[1]. Como as outras virtudes, a fé não é uma construção, é uma dádiva. Pode-se, como se costuma dizer, cultivá-la. Mas, evidentemente, para  cultivá-la, é preciso que ela exista. E é minha convicção que o embrião da fé existe sempre no íntimo de todos nós. Ninguém conseguiria viver diante das incertezas da vida e do mundo, sem alguma âncora para confiar em um dos eventos prováveis ou improváveis da existência. A própria natureza assintótica[2] da verdade imobilizar-nos-ia em dúvidas não fora a crença na veracidade do que percebemos através dos sentidos. Talvez, os que admitem ter perdido a fé, apenas se neguem a cultivá-la! É este cultivo que as igrejas tentam implementar. Mas na medida em que se institucionaliza, a mensagem eclesial empacotada em dogmas rígidos, amesquinha-se como vivência existencial; ainda que se pretenda exaltá-la pela revelação contida nos livros sagrados e pelo apoio na credibilidade das instituições que assumiram a missão evangelizadora. Assim, o cristão, por exemplo, crê em Deus, mas em cada caso específico (católico romano, protestante, copta, grego, etc) precisa acreditar na sua Igreja que, por suposto, encampou a exclusividade da origem divina como Instituição. Todavia, as Igrejas são organizações religiosas históricas. Como tais, têm um pé na falibilidade humana. A fé em Deus tem raízes existenciais, as Igrejas como instituições históricas, amarram-se em incidentes temporais; são úteis para assegurar a transmissão catequética  da mensagem salvífica, mas não são necessárias para a contextualização do indivíduo numa “gestalt”[3] existencial teocêntrica, embora possam facilitá-la para as almas simples carentes de autonomia.
            Para muitos de nós, a imposição de um credo seria traumática. É verdade que esta forma de reagir implica no orgulho humano ou, pelo menos, na falta de humildade. Em face disso, entre muitos de nós, a fé praticada não é tão pura (inspirada, ingênua) quanto seria desejável.  Constitui-se num estado de espírito do qual participa a dúvida superada instante a instante por uma profissão da crença no testemunho da própria realidade num Ser superior, absoluto criador. Lucubrações filosóficas sobre o objeto de fé assim como as peculiaridades  de uma crença podem jogar alguma luz sobre a questão, aproximando mais o postulante, de uma visão compreensiva da sua convicção de fé. Correlacionando o ato de fé com as demandas transcendentais da alma humana, pode-se abrir uma nova frente de abordagem. Não mais, a partir da discussão sobre a veracidade do objeto transcendental da fé, inalcançável pela razão; mas a partir da necessidade de transcendência absoluta, premente no ser consciente, portanto, muito próxima e nossa conhecida. O dogma de fé pretende preencher a lacuna perturbadora existente entre a demanda de um absoluto pela consciência emergente, e  este mesmo absoluto (objeto de fé); entre o homem (contingente), e o Ser Necessário (Criador); entre  a eternidade e o tempo, entre a realidade que transcende os limites da razão e a que conhecemos e podemos comprovar. Nesta perspectiva, o dogma passará a se justificar como forma de atender a uma necessidade ontológica da existência consciente; se assim se pode falar, a necessidade de uma âncora absoluta para a subjetividade. O objeto da fé (o absoluto) já não será, então, um elemento estranho, totalitário, que se põe autoritário diante do crente, mas uma necessidade  da existência anelante, desamparada, “desassossegada”. Embora inabordável pela razão, o objeto de fé será assim melhor “assimilado”, pelos que não gozamos o privilégio da simplicidade, como opção amparada por uma visão compreensiva da realidade carente e misteriosa que envolve o “ser consciente”. Visão compreensiva no sentido da aceitação, no contexto existencial da necessidade do dogma, para fechar uma “gestalt” pessoal. A outra opção é deixar a gestalt aberta, cultivando  a atitude estoica, na qual o indivíduo se consome em desassossego sem assumir a responsabilidade de afirmar seu objeto de fé. Há testemunho histórico de que muitos já conseguiram fechar com sucesso sua “gestalt” pessoal, seguindo as pegadas da primeira opção (a aposta da fé); não será  muito inteligente, pois, desdenhar dessa possibilidade e deixar-se afundar no desespero. Chegar a Deus através de uma visão racional do Universo que, embora parcial, se completa numa tese coerente, compreensiva, da realidade pessoal sedenta de absoluto, é também um caminho. Acredito que o livro “La Gnose de Princeton” escrito por Raymond Ruyer foi o primeiro esforço sistematizado nesse sentido. Não obstante as lições de catecismo recebidas na infância, esta foi a minha trilha, abandonada e retomada tantas vezes... Nessa busca descobri que a solução do “problema humano” não é da ordem intelectual, metafísica, mas uma experiência mística – expressão vivenciada da participação na unidade do todo universal. O clímax da conversão é a viragem interior orientada pelo vislumbre intelectual da necessidade de um absoluto, para a participação existencial nesse absoluto. Neste ponto é que entra a graça – o empurrãozinho misericordioso no contexto de uma experiência de fé. Depois disso, presumo que a repercussão existencial seja a mesma, para o crente comprometido com sua verdade interior sem rodeios intelectuais caprichosos, que aceitou com simplicidade o seu objeto de fé, ou para aquele que palmilhou as trilhas íngremes de lucubrações filosóficas preparatórias. Qualquer que tenha sido o caminho percorrido, o importante é a aceitação incondicional de Deus (Espírito absoluto, causa e finalidade de tudo quanto existe), e da ordem inerente ao Espírito cifrado no universo.
            Nesta gnose, se assim podemos falar, a espiritualidade trans-intelectual a que chegamos pelo caminho da abordagem compreensiva da realidade universal incluída a consciência pessoal, as noções de graça, merecimento, virtude, adquirem conotações que se afastam um pouco das interpretações  beatas. Na nossa abordagem se torna evidente o caráter assimétrico da  relação criatura  / Criador, não obstante a parceria virtual de ambos. O Criador jamais poderia ser influenciado por sua criatura. Consequência disso é  a certeza de que não podemos influir nas decisões divinas, e a ideia de que as conquistas vantajosas que fazemos, não são o fruto do nosso mérito, mas extensões práticas de uma ordem divina da qual passamos a ser obreiros entusiasmados, comprometendo nessa direção o nosso quefazer histórico, como colaboradores da criação divina. No seguimento da nossa experiência existencial, chegamos, todavia, a compreender que a   distância imensurável que separa a criatura do Criador se dissipa ao calor da “certeza” inquestionável, tranquilizadora, da infinita misericórdia de Deus. Dessa forma, numa visão metafísica e espiritual da existência encontramos o suporte para uma psicologia dinâmica que preside os ajustes da subjetividade e suavizam o fragor da luta entre os elementos contraditórios da humana condição. Nesta linha do pensamento, confirma-se a ideia de que o homem é um ser intrinsecamente religioso.


[1] “O coração tem razões que a própria razão desconhece”.
[2] Assíntota- Reta que é tangente a uma curva no infinito; reta limite da família de tangentes a uma curva quando o ponto de tangência tende para o infinito.



[3] Um todo que justifica as suas partes.

sábado, 18 de maio de 2019

Alegria


Alegria.

Ser alegre é um privilégio dos que conseguem viver cada momento, imbuídos de otimismo. Ou seja, viver instante a instante um vir a ser marcado pela expectativa de que prevalecerá  a melhor dentre as possibilidades que se abrem diante da vida pessoal. Por trás desta expectativa nos deparamos, porém, intimidados, com a consciência de nossa própria finitude. Há sempre um limite. A certeza deste limite deve estimular-nos a redobrar esforços para alcançar, no mais breve espaço de tempo, as realizações às quais nos propomos; mas esta certeza também pode deprimir.  Pois a morte pessoal concebida como fatalidade nos faz sentir permanentemente ameaçados tal como sentira-se o invejoso Dâmocles ao receber do Rei Dionísio o trono ambicionado[1].
O desejo fundamental do ser consciente é o da superação da própria finitude, que só conseguirá realizar na experiência de existir em plenitude, uma forma de ser problemática, em face da efemeridade inerente ao ser temporal. Embora na unidade do ser absoluto no qual tudo se integra a morte não exista, a lembrança desta é uma ameaça permanente nas elaborações da subjetividade de cada um de nós seres temporais conscientes, e se nos apresenta como uma nuvem ensombrecendo os prazeres que cada um vivencia no seu dia a dia. No fundo tudo converge no desdobramento da luta do ser consciente para conviver com seus limites temporais. Mas esta luta, fruto da consciência de nossa finitude não faz sentido uma vez que não existimos, enquanto seres históricos, fora do tempo e do espaço; para sermos, precisamos estar inseridos no universo físico e é imperioso aceitar a impermanência do ser temporal, abraçando-a conscientemente, para manter a unidade absoluta sem a qual nada existiria. Ou seja, falando por cada um de nós: todo esforço no sentido de empoderar-me se resume na luta em prol da unidade do todo que me eterniza. Em cada mudança me realizo ao contribuir para a unidade do todo. Só assim ganha sentido para o indivíduo a precariedade da comunidade humana. O grande problema do homem é a dificuldade de cada um impregnar-se com a perfeição do todo absoluto, integrando-o, sem tergiversar, sem qualquer restrição, mesmo consciente da condição momentânea de ser temporal. O universo, incluindo nossa própria existência está governado por leis eternas inerentes ao próprio Criador (Deus). Um místico dirá: Tudo faz parte do plano de Deus para fazer-nos caminhar sob sua vontade, garantindo a unidade universal.
 Compete-nos, obviamente, preencher os pressupostos no sentido de alcançar o êxito desejado na existência de cada um sem conflitar com a harmonia do todo universal. Esta atitude positiva implementada inteligentemente será a alavanca dos acontecimentos cuja evolução determinará o desfecho favorável dos projetos que alimentamos centrados numa existência plena de realizações e satisfação pessoal. Esta perspectiva  positiva  demandará que encaremos a responsabilidade de criar condições favoráveis à realização dos projetos existenciais concebidos e sustentados pela esperança de que o melhor está por vir. É salutar a predisposição para a alegria de viver assumida conscientemente na espera confiante da realização de um projeto global intensamente desejado. Como uma construção mental esta expectativa independe da realidade aparente e é assumida a partir do momento em que nos esforçamos para construir um projeto coerente,   apostando nele. Assim, mesmo que depois não venha a tornar-se realidade, no momento em que jogamos todas as fichas na realização projetada já se produzem os efeitos subjetivos esperados, antecipando-se, ou melhor, confundindo-se, na vivência existencial de cada um, com a concretização do projeto no qual se está empenhado. Nesta perspectiva o ser consciente pode superar os medos inerentes à consciência dolorosa da impermanência de tudo, suavizando a angústia existencial e ampliando, na subjetividade, os limites temporais da realidade física.
O tempo é um sumidouro de presentes que se sucedem  interminavelmente. A expectativa positiva de realizações futuras desejadas minimiza o sentimento da efemeridade do vir a ser pessoal; enfatizá-la (a expectativa) fortalecerá o ânimo para prosseguir na jornada existencial, libertando-a da armadilha da inanição provocada pelo desespero que espreita a consciência da própria contingência. Ao perder a esperança, o ser consciente mergulha num beco  sem saída, limitado à realidade incômoda de sua temporalidade. Pois viver o presente significa ultrapassá-lo, ou seja, para que haja futuro é preciso que o presente morra. Este é o ponto de partida de uma contradição insolúvel representada pelo desejo de ser eterno que colide com a efemeridade essencial inerente à própria natureza do mundo temporal. A solução seria viver o presente absoluto, ideal incompatível com a estrutura temporal da existência enquanto realização humana. Todavia, a visão pessoal positiva do vir a ser existencial, inclusive a noção de eternidade que se consegue projetar, em pensamento, vale como real na medida em que a vivenciamos plenos de fé, como algo atual ou possível. A distância entre o real vivido e o possível fica reduzida pela intensidade volitiva inerente à força do  ideal projetado e pela abordagem criativa inteligente das circunstâncias na caminhada em direção ao objetivo desejado, o que  confere a cada momento o sabor de uma realização. A consciência confiante da disposição de alcançar o objetivo colimado caracteriza a sanidade mental, até mesmo quando, sem negar a realidade cremos (temos fé) no aparentemente impossível.  Ainda que a vida se consuma, inexoravelmente em presentes fugidios, no momento de um auto de fé vale aquilo  em que cremos e não a realidade temporal aparente, passageira. Nisto reside a força de quem ama. Pois amar é mergulhar confiante na harmonia da unidade do universo na qual tudo ganha realidade na perfeição do uno indivisível, o absoluto - Deus - princípio e fim de tudo que existe, inclusive a própria consciência. A alternativa empobrecida desta vivência de totalidade é esperar que as circunstâncias fragmentárias de um vir a ser incerto nos conduza a realizações capazes, apenas, de proporcionar, episodicamente, uma alegria de viver ameaçada, todavia, pela morte como termo inevitável de tudo, inclusive do que mais amamos. Nisso consistiria, simplesmente, estar alegre, ou seja, ser envolvido por uma eventualidade feliz, essencialmente transitória, diferente de uma conquista existencial capaz de influir na maneira de lidar com a efemeridade e suas consequências, das quais participamos.
A experiência vivida de uma visão holística de nossa própria existência eliminará o preconceito da velhice, incorporando sem trauma a realidade imediata de estar morrendo minuto a minuto, na medida em que entendemos que o todo é que conta e disciplina a delimitação  das partes que o integram e esse todo é eterno.
Historicamente, almejo encontrar uma atividade que tenha repercussão comunitária, ou, que torne realidade um elo unificante entre os que nos cercam, dando sentido e (re) significando a minha própria finitude. Nesse contexto já se percebe um dilema insolúvel: envelhecer é ruim, mas não sofrer a ação do tempo é uma maldição - reporto-me ao tema do filme que vi recentemente, “A estranha história de Adaline” no qual uma filha se faz passar por vovó para não constranger a mãe que, por estranho sortilégio, não envelhecera.
Vale a pena repetir: meu envelhecimento pessoal, no contexto da unidade universal (absoluta) faz parte da própria criação; descartá-lo é uma aberração. Anulá-lo no contexto universal, para libertar-me do todo e tornar-me independente é contraditório e suicida. Logo me dou conta de que esta independência não tem consistência alguma, uma vez que não existo fora do universo, e este não dispensa toda contribuição pessoal. Para ser precisamos estar inseridos n´ele (o Universo), abraçá-lo conscientemente, para manter sua unidade absoluta sem a qual nada existiria. O grande problema humano é aceitar essa entrega sem qualquer restrição, sem tergiversar. Pois, numa linguagem mística, “Seja sorrindo, seja chorando, tudo faz parte do plano de Deus para completar a sua obra, fazendo-nos crescer” em harmonia com o todo universal, integrando-nos cada vez mais na unidade do absoluto. Esta aceitação é que garante a verdadeira alegria de viver - ser alegre.
Exemplificando, uma composição musical só nos toca profundamente quando fixa um momento significativo na vida do compositor, momento em que ele foi um significante verdadeiro. Só por isso a música conserva-se uma fonte de inspiração. Um ouvinte momentaneamente empolgado vibra de emoção na mesma frequência , remetendo-se à essência de sua natureza romântica... Ser significante e captar o significado original de uma mensagem romântica são os elementos que distinguem uma experiência existencial autêntica. Eu próprio me ponho a assuntar nos momentos em que me sinto desapaixonado ou vazio de insights originais e fico deprimido com a sensaboria  do meu vir a ser divorciado de um sentido sublime (autêntico). Na verdade, olhando minha vida em retrospecto descubro que só vivi realmente nos momentos  em que amei ou criei alguma coisa. Não é o que a gente pensa ou diz que nos faz felizes, mas o que a gente sente e momentaneamente nos aproxima da unidade absoluta, mergulhado num todo indivisível. Não importa o que a gente sente, mas o que enche cada instante a nossa mente (razão e sensibilidade) com expectativas positivas, originais, que raiam o infinito; isso sim, significa ser alegre.
Everaldo Lopes


[1] Depois de sentar-se no trono ele olhou distraidamente para cima e notou que havia uma espada presa por um fio acima dele, apontando para sua cabeça.

sexta-feira, 22 de março de 2019

A perspectiva do fim


A perspectiva do fim.
(Uma abordagem existencial).

               Antes da aceitação elaborada de sua finitude o ser consciente fica refém do medo, da expectativa ansiosa e da angústia. O sofrimento é diretamente proporcional à desesperança da superação de nossa contingência finita.  Este sentimento é inerente à própria consciência reflexiva, diria, algo inevitável posto que o próprio vivente tem ciência antecipada do seu fim, e a finitude biológica anunciada lhe sabe uma sentença fatal, mesmo antes de saber-se portador de grave enfermidade. Em face desta antinomia todos vivemos num equilíbrio existencial precário depois que perdemos a ignorância infantil da própria fragilidade.
               Ao passar dos anos, o olhar adulto sobre o devir humano destaca o medo da morte agravado pela ideia da sua proximidade. Mesmo descartando os exageros hipocondríacos, as pessoas sofrem ao confrontar seu limite temporal, numa perspectiva realista. A vivência será devastadora se não tivermos aprendido a amar, se não praticarmos a generosidade, ou não nos sentirmos amados! É compreensível que nessas circunstâncias, em luta contra medos e incertezas nos perguntemos: - Como reverter esta situação? A resposta é óbvia: Optando pela prática do otimismo e do comportamento generoso, esforçando-nos para respeitar e cuidar do outro, dando assim um passo largo em direção ao amor. Só a prática do amor liberta o homem dos seus limites existenciais.
               O exercício da generosidade começa quando aprendemos a desenvolver empatia e descobrimos em nós mesmos as fraquezas do outro, o que nos faz assumir uma postura solidária mostrando sermos capazes de oferecer amor, ou, pelo menos, o respeito que o outro merece. Evidentemente, todos esses movimentos interiores só produzem os efeitos esperados quando vividos existencialmente e não apenas formalmente.
O amor ao semelhante, a uma causa ou ideal significativo é o grande antídoto para o medo da morte. E não há empreitada maior e mais respeitável do que a da autoafirmação comunitária de cada um de nós, como pessoa, sob a égide da verdade e da justiça, no esforço de buscar, constantemente, o bem honesto cuja dimensão social fundamenta-se na solidariedade. O compartilhamento comunitário é uma tarefa heroica que exige autoconhecimento, humildade, disciplina emocional, objetividade, e não dispensa a ajuda da misericórdia divina tal é a sua envergadura.  Pois o esforço exigido pela elaboração positiva do sentimento de que tudo é provisório nesta vida demanda um espírito superior e inspiração divina. Ouso dizer que sem uma visão mística da própria existência, será muito difícil a realização cabal da vivência humana de serenidade, e se tornará  deprimente o confronto de cada um  com a própria condição de simples mortal. É preciso reconhecer que o amor (caridade) ancora sua eficácia na misericórdia divina, e o envolvimento existencial com um absoluto que nos empolga é o antídoto definitivo para o “mal” do qual o homem é autor e vítima. Fora deste contexto místico a convivência com os nossos limites resultará sempre numa gestalt aberta, geratriz de expectativa inquieta; e a vitória sobre o mal será sempre uma vitória de Pirro em que o vencedor amarga seu feito no próprio sucesso.
A autoafirmação pessoal exitosa começa com o reconhecimento de que somos perecíveis, mas  a nossa dignidade cresce com o exercício  da consciência responsável de uma missão a  cumprir neste mundo, apesar de nossa impermanência. É verdade que somos contraditórios,  mas querermos elaborar, com simplicidade, as antinomias da existência, esforçando-nos, finalmente, para acolher com respeito o irmão, sem cultivar mágoas ou ressentimentos. Nessa caminhada o amor à verdade não nos deixará enveredar  pelos descaminhos  da condenação leviana do outro, livrando-nos da intemperança e da cavilação.
               Advirto-me de que no desvario de uma perspectiva existencial infantilmente crédula, surpreendemos-nos buscando segurança nas fantasias, ancorados em arrimos discutíveis que desejáramos transformar em fortalezas inexpugnáveis. Parafraseando, diria: algo assim como alguém que se imagina seguro porque sua poupança é expressiva. Na verdade ele não está a salvo de nada além da carência econômica imediata, porque no frigir dos ovos, tudo passa, nada é definitivo. Situação equivalente é a do homem que cuida com esmero do seu condicionamento físico e imagina-se livre das doenças que acometem os sedentários e glutões. Todavia a proteção conferida pelos cuidados preventivos realmente existe, mas é limitada, porque há fatores genéticos cujo determinismo o exercício físico e a dieta sadia retardam, mas não anulam totalmente. Todos esses cuidados são recomendáveis, mas na avaliação dos seus resultados não se pode confundir a menor probabilidade de ocorrência de um mal, com a segurança de estar definitivamente livre dele. É bom sentirmo-nos confiantes na reserva vital que um bom condicionamento físico nos garante, tal como é compensador ter um sono tranquilo por nos sentir libertos de aperturas financeiras, confiando na poupança acumulada. Porém, mais sábio do que fiar-se em defesas vulneráveis, é vivenciar que a maior segurança consiste na aceitação humilde objetivamente posta da insegurança total, confiante na misericórdia divina. Isto equivale a investir num arrimo interior absoluto (Deus), o sustento íntimo que só a fé nos confere, necessário para continuar de pé quando tudo ao redor está ruindo. E ao aceitar com serenidade a insegurança total, com fé na proteção da misericórdia divina, nada mais sobra para causar insegurança. Certamente esta aceitação é o resultado difícil de uma ascese rigorosa ao longo do processo de individuação.
Estamos morrendo todo o tempo, esta é a condição da própria vida; não se pode viver sem morrer, instante a instante, na medida em que  vivemos. E nesta perspectiva não se consegue superar a vivência da dicotomia vida / morte senão mediante a inserção pessoal numa experiência mística que transcenda a antinomia do nosso vir a ser contingente, incluindo-se o ser consciente num todo absoluto significativo, mediante uma experiência existencial de confiança no amor divino universal.
               A consciência reflexiva depende, operacionalmente, do servomecanismo biopsíquico desenvolvido no homem através do sistema nervoso central. Neste evento singular na história da vida (revolução cognitiva), transpomos um pseudo-hiato entre a infraestrutura biológica e a superestrutura dos sentimentos e do pensamento logicamente articulado. Considerando o todo - a gestalt consciência mundo - esse hiato virtual representa a dobra[1] entre a bioquímica dos neurônios cerebrais e o pensamento, entre o biológico e o espiritual, entre a ciência fenomênica imanente e a dimensão metafísica do ser que se transcende pela consciência. É neste pseudo-hiato que se insere a experiência mística, da prática Zen ao êxtase descrito por São João da Cruz. Este é o momento em que o espírito onipresente, mas imperceptível, mostra-se da maneira mais ostensiva, urdindo pela fé um contraponto autoconsciente na polifonia da vida.[2] Exatamente por isto a complexidade humana não se exaure no fenômeno biopsicológico e exige o arremate místico para consumar-se. No pseudo-hiato entre o biológico e o existencial se evidencia o Deus inconsciente de que fala Victor Frankel, ubíquo, apenas vivenciado no  subjetivismo do ser consciente como um Alter-Ego que, recursivamente, acaba espelhando o próprio ego individual. É que o Absoluto se revela à nossa contingência e conversa conosco na mais total intimidade, embora escutemos apenas a nossa voz e vejamos apenas a nós mesmos. É que se dá a conhecer o mistério tremendo da parceria entre a imanência e a transcendência, entre o homem e Deus.
               Se a solução do problema humano não é racional, filosófica, porém mística, a oração será o instrumento adequado para proteger o homem contra a devastação do medo da morte e da angústia existencial. Despindo-me do racionalismo frio, retomo a postura ingênua para, numa conversa honesta com o Criador, evocar as condições do momento existencial perfeito numa Oração.

                                                  Oração

Deus permita-me a graça de vivenciar a unidade consciência - mundo, na intersecção das dimensões imanente e transcendente do meu eu mais profundo.
Amparado pelo mistério da relação criatura–Criador, só em Ti encontro a força necessária para cumprir a missão que me reservaste neste mundo, alimentando a esperança de alcançar a paz interior, elaborando com simplicidade as antinomias da existência, acolhendo com respeito meu irmão, sem cultivar mágoas ou ressentimentos, perfilhando na comunhão fraterna a paternidade amorosa de Deus.
           
Everaldo Lopes                               




[1] Conceito epistemológico definido por Deleuse.
[2] Um dia, a humanidade inteira, oceano em calma,
 há de fazer numa só oração reunida, da razão e da fé os dois olhos da alma, da verdade e da crença
 os dois polos do mundo. Antero de Quental em A velhice do Padre Eterno.