O
Filósofo aspira a entender a essência das coisas, mas a capacidade racional de
conhecer a realidade esbarra no fenômeno.
O discurso filosófico se desenvolve, então, como uma construção especulativa
integrante cuja credibilidade se apoia em sua coerência lógica quando da incorporação
dos fenômenos singulares numa totalidade complexa harmoniosa. Contextualizando
os fenômenos num todo significativo o Filósofo constrói uma visão de mundo e nesta
construção depara a necessidade de admitir que um imponderável misterioso permeia
a realidade cósmica e psicossocial. As especulações filosóficas envolvem,
portanto, abstrações que transcendem a objetividade científica, na tentativa de
jogar alguma luz sobre o elemento
indefinível que trespassa o real concreto.
A
realidade sobre a qual o Filósofo se debruça inclui o Universo e o homem. Uma
longa evolução ensejou a emergência das funções psíquicas superiores inerentes
à consciência reflexiva, à racionalidade, ao sentimento e à vontade. Utilizando-se
dessas funções o homem assume o comando do seu próprio devir (existência)[1] e é
capaz de intervir no mundo do qual faz parte. Para isso é fundamental o
exercício da “liberdade de..., e da liberdade para...”[2],
como veremos logo mais.
A
crítica racional se dá conta da fragilidade do processo gnosiológico que
apreende o fenômeno sem penetrar-lhe a essência. Então, curiosa da verdade
metafísica, a razão se empenha em abstrações cada vez mais abrangentes que a
levam, afinal, à proposta de um absoluto, absurdo racional no qual, todavia, o
homem busca arrimar o sentido último de seu vir a ser. A busca de sentido é uma
exigência do ser consciente. Ao configurar uma visão de mundo[3] o
homem identifica os valores que orientam coerentemente suas escolhas, imprimindo
um sentido na existência. Esta mundividência representa um absoluto que dá
suporte aos valores éticos no devir pessoal.
Para
o Filósofo, a primeira questão que se coloca no processo gnosiológico é: onde
está a verdade? No objeto ou no pensamento? Na coisa concreta ou na ideia que
resulta da sua percepção? A resposta a esta indagação define duas correntes
filosóficas opostas: o Materialismo que prioriza o objeto (a coisa), e o
Idealismo que prioriza a ideia (o conceito da coisa). Mal começa a caminhada
filosófica já se abre uma bifurcação na abordagem da realidade “consciência /
mundo” cuja unidade o homem só pode experimentar mediante uma vivência mística.
No centro desta realidade o homem descobre-se perplexo como um ser carente desejoso
de orientação segura, envolvido com uma determinada linha cultural[4] que
lhe aponta diretrizes. Surpreende-se livre para questionar os valores que lhe são
culturalmente impostos, consciente, porém, de que não pode dispensar inteiramente
a cultura em que está imerso. E para criticá-la precisa objetiva-la num esforço
subjetivo disciplinado incomum para os ingênuos representantes incondicionais dessa
mesma cultura. Somente o homem capaz de manter a distância crítica necessária analisa
o processo cultural respondendo de forma pessoal coerente e responsável às suas
exigências pessoais quando estas conflitam com o estabelecido culturalmente. E
o faz, não sem luta e determinação, mudando sua própria realidade individual (a
existência é uma obra sua) e a sociedade em que vive. Assim, torna-se evidente
que, além da “liberdade de” dizer “não” aos velhos condicionamentos, é
fundamental o exercício da “liberdade para” agir dessa ou daquela forma
inovadora inerente às mudanças necessárias. Feita a escolha, no exercício da
“liberdade de” afirma-se a atividade voluntária esclarecida, e na prática da
“liberdade para” manifesta-se a criatividade humana.
De
uma coisa se tem certeza. É indispensável ao homem um chão cultural feito de
normas e preceitos, para que possa caminhar no seu devir com os outros no mundo,
tecendo as malhas da “existência”. Este lastro acaba preenchendo o “nada absoluto”
sobre o qual o homem se constrói... “vazio” que é fonte de angústia[5]. Alguém
pode não concordar com todos os valores da cultura em que nasceu, mas para descarta-los
quando não os aprova necessita criar outros. E para que estes venham a medrar é
preciso que sejam aceitos por uma massa crítica expressiva da sociedade. Sem
isso, qualquer comportamento destoante dos padrões vigentes será considerado
imoral para o grupo, e rejeitado como um implante que não vinga. Neste
preâmbulo fica evidente a intimidade entre o exercício da consciência reflexiva
livre e responsável, as possibilidades da “existência”, e a ordem social. As
interações psicossociais desta intimidade urdem o tecido cultural que ganha
aspectos diferentes de acordo com o grau de desenvolvimento humano, de peculiaridades
étnicas e ambientais. Para salvaguardar o núcleo essencial (universal) do
fenômeno humano é de grande ajuda a tentativa do Filósofo de lograr o discernimento efetivo da realidade total, unindo seus aspectos cósmico, psicossocial
e histórico, embora pareça impossível um entendimento tão completo. Mesmo assim
a curiosidade filosófica continua a instigar o homem a prosseguir na faina
demiúrgica para alcançar a mais completa compreensão do mundo e de si mesmo. Como
resultado desse esforço se constroem os sistemas filosóficos na tentativa
heroica de explicar o homem e o mundo contextualizando-os num todo
indissociável, um absoluto.
Lembro-me
de um texto emblemático que li há muitos anos no prefácio de Uma História da
Filosofia, em que o autor dizia ser o Filosofar uma tarefa inacabada e, contudo,
referindo-se ao esforço filosofante concluía como se falasse em nome de todos
os homens, com o próprio Criador: “No
entanto, Senhor, que maior prova podemos dar de nossa dignidade, senão este
soluço que rola de século em século e vai se derramar aos pés de Vossa
Majestade!”
Na
verdade, mais do que um “soluço” a Filosofia abre janelas na subjetividade para
realidades cada vez mais abrangentes em busca do Absoluto inabordável pela
razão. Na tentativa de integrar a existência pessoal num todo significativo, à
falta de uma experiência mística autêntica, a prática filosófica
intelectualmente cativante aquieta o espírito do homem sem obriga-lo às
exigências da fé em dogmas institucionalizados numa igreja convencional. As
religiões tradicionais têm o mérito histórico de guardar o tesouro das “mensagens
existenciais” deixadas por grandes líderes espirituais da Humanidade. Mas não
se pode institucionalizar uma “mensagem existencial”, da mesma forma que não se
pode “ensina-la”, mas apenas aponta-la!... Daí a dificuldade pedagógica das
Igrejas de fazê-la chegar ao coração dos seus fieis. Mesmo assim as
organizações eclesiais, incarnando as fraquezas humanas que as fazem por vezes caminhar
na contramão, têm desempenhado seu papel histórico no resgate das mais nobres
virtudes do homem.
Everaldo
Lopes
[1] Modo de
ser peculiar do homem, caracterizado pelo exercício da consciência responsável.
[2] De Erich
Fromm em “Medo à liberdade”. Conceitualmente, “liberdade de” (libertação de
velhos condicionamentos), “liberdade
para” (executar a intuição criativa).
[3]
Compreensão geral do universo e da posição que nele ocupa o homem.
[4] Cultura
– O conjunto de características humanas que não são inatas, e que se criam e se
preservam ou aprimoram através da comunicação e cooperação entre indivíduos em
sociedade. (Nas ciências humanas opõe-se por vezes à ideia de natureza ou de
constituição biológica e está associada a uma capacidade de simbolização
considerada própria da vida coletiva e que é a base das interações sociais.)
Dic. De Aurélio.
[5]
Heidegger, Martim