sábado, 28 de julho de 2012

A missão do Filósofo


O Filósofo aspira a entender a essência das coisas, mas a capacidade racional de conhecer a realidade esbarra no fenômeno.  O discurso filosófico se desenvolve, então, como uma construção especulativa integrante cuja credibilidade se apoia em sua coerência lógica quando da incorporação dos fenômenos singulares numa totalidade complexa harmoniosa. Contextualizando os fenômenos num todo significativo o Filósofo constrói uma visão de mundo e nesta construção depara a necessidade de admitir que um imponderável misterioso permeia a realidade cósmica e psicossocial. As especulações filosóficas envolvem, portanto, abstrações que transcendem a objetividade científica, na tentativa de jogar alguma luz  sobre o elemento indefinível que trespassa o real concreto.
A realidade sobre a qual o Filósofo se debruça inclui o Universo e o homem. Uma longa evolução ensejou a emergência das funções psíquicas superiores inerentes à consciência reflexiva, à racionalidade, ao sentimento e à vontade. Utilizando-se dessas funções o homem assume o comando do seu próprio devir (existência)[1] e é capaz de intervir no mundo do qual faz parte. Para isso é fundamental o exercício da “liberdade de..., e da liberdade para...”[2], como veremos logo mais.
A crítica racional se dá conta da fragilidade do processo gnosiológico que apreende o fenômeno sem penetrar-lhe a essência. Então, curiosa da verdade metafísica, a razão se empenha em abstrações cada vez mais abrangentes que a levam, afinal, à proposta de um absoluto, absurdo racional no qual, todavia, o homem busca arrimar o sentido último de seu vir a ser. A busca de sentido é uma exigência do ser consciente. Ao configurar uma visão de mundo[3] o homem identifica os valores que orientam coerentemente suas escolhas, imprimindo um sentido na existência. Esta mundividência representa um absoluto que dá suporte aos valores éticos no devir pessoal.
Para o Filósofo, a primeira questão que se coloca no processo gnosiológico é: onde está a verdade? No objeto ou no pensamento? Na coisa concreta ou na ideia que resulta da sua percepção? A resposta a esta indagação define duas correntes filosóficas opostas: o Materialismo que prioriza o objeto (a coisa), e o Idealismo que prioriza a ideia (o conceito da coisa). Mal começa a caminhada filosófica já se abre uma bifurcação na abordagem da realidade “consciência / mundo” cuja unidade o homem só pode experimentar mediante uma vivência mística. No centro desta realidade o homem descobre-se perplexo como um ser carente desejoso de orientação segura, envolvido com uma determinada linha cultural[4] que lhe aponta diretrizes. Surpreende-se livre para questionar os valores que lhe são culturalmente impostos, consciente, porém, de que não pode dispensar inteiramente a cultura em que está imerso. E para criticá-la precisa objetiva-la num esforço subjetivo disciplinado incomum para os ingênuos representantes incondicionais dessa mesma cultura. Somente o homem capaz de manter a distância crítica necessária analisa o processo cultural respondendo de forma pessoal coerente e responsável às suas exigências pessoais quando estas conflitam com o estabelecido culturalmente. E o faz, não sem luta e determinação, mudando sua própria realidade individual (a existência é uma obra sua) e a sociedade em que vive. Assim, torna-se evidente que, além da “liberdade de” dizer “não” aos velhos condicionamentos, é fundamental o exercício da “liberdade para” agir dessa ou daquela forma inovadora inerente às mudanças necessárias. Feita a escolha, no exercício da “liberdade de” afirma-se a atividade voluntária esclarecida, e na prática da “liberdade para” manifesta-se a criatividade humana.
De uma coisa se tem certeza. É indispensável ao homem um chão cultural feito de normas e preceitos, para que possa caminhar no seu devir com os outros no mundo, tecendo as malhas da “existência”. Este lastro acaba preenchendo o “nada absoluto” sobre o qual o homem se constrói... “vazio” que é fonte de angústia[5]. Alguém pode não concordar com todos os valores da cultura em que nasceu, mas para descarta-los quando não os aprova necessita criar outros. E para que estes venham a medrar é preciso que sejam aceitos por uma massa crítica expressiva da sociedade. Sem isso, qualquer comportamento destoante dos padrões vigentes será considerado imoral para o grupo, e rejeitado como um implante que não vinga. Neste preâmbulo fica evidente a intimidade entre o exercício da consciência reflexiva livre e responsável, as possibilidades da “existência”, e a ordem social. As interações psicossociais desta intimidade urdem o tecido cultural que ganha aspectos diferentes de acordo com o grau de desenvolvimento humano, de peculiaridades étnicas e ambientais. Para salvaguardar o núcleo essencial (universal) do fenômeno humano é de grande ajuda a tentativa do Filósofo de lograr o discernimento efetivo da realidade total, unindo seus aspectos cósmico, psicossocial e histórico, embora pareça impossível um entendimento tão completo. Mesmo assim a curiosidade filosófica continua a instigar o homem a prosseguir na faina demiúrgica para alcançar a mais completa compreensão do mundo e de si mesmo. Como resultado desse esforço se constroem os sistemas filosóficos na tentativa heroica de explicar o homem e o mundo contextualizando-os num todo indissociável, um absoluto.
Lembro-me de um texto emblemático que li há muitos anos no prefácio de Uma História da Filosofia, em que o autor dizia ser o Filosofar uma tarefa inacabada e, contudo, referindo-se ao esforço filosofante concluía como se falasse em nome de todos os homens, com o próprio Criador: “No entanto, Senhor, que maior prova podemos dar de nossa dignidade, senão este soluço que rola de século em século e vai se derramar aos pés de Vossa Majestade!”
Na verdade, mais do que um “soluço” a Filosofia abre  janelas na subjetividade para realidades cada vez mais abrangentes em busca do Absoluto inabordável pela razão. Na tentativa de integrar a existência pessoal num todo significativo, à falta de uma experiência mística autêntica, a prática filosófica intelectualmente cativante aquieta o espírito do homem sem obriga-lo às exigências da fé em dogmas institucionalizados numa igreja convencional. As religiões tradicionais têm o mérito histórico de guardar o tesouro das “mensagens existenciais” deixadas por grandes líderes espirituais da Humanidade. Mas não se pode institucionalizar uma “mensagem existencial”, da mesma forma que não se pode “ensina-la”, mas apenas aponta-la!... Daí a dificuldade pedagógica das Igrejas de fazê-la chegar ao coração dos seus fieis. Mesmo assim as organizações eclesiais, incarnando as fraquezas humanas que as fazem por vezes caminhar na contramão, têm desempenhado seu papel histórico no resgate das mais nobres virtudes do homem.
                                   Everaldo Lopes            


[1] Modo de ser peculiar do homem, caracterizado pelo exercício da consciência responsável.
[2] De Erich Fromm em “Medo à liberdade”. Conceitualmente, “liberdade de” (libertação de velhos condicionamentos),  “liberdade para” (executar a intuição criativa).
[3] Compreensão geral do universo e da posição que nele ocupa o homem.
[4] Cultura – O conjunto de características humanas que não são inatas, e que se criam e se preservam ou aprimoram através da comunicação e cooperação entre indivíduos em sociedade. (Nas ciências humanas opõe-se por vezes à ideia de natureza ou de constituição biológica e está associada a uma capacidade de simbolização considerada própria da vida coletiva e que é a base das interações sociais.) Dic. De Aurélio.
[5] Heidegger, Martim