TRIBUTO A RAUL DE LEONI (IV)
Em “Noturno”, um poema de inigualável beleza, Raul de Leoni pinta com tintas fortes o despertar da consciência para o vir a ser existencial, vivido numa intimidade sensível e cúmplice com a Natureza exuberante e plena de si... Nos seus versos de “símbolos profundos” o Poeta descreve uma viagem pelos meandros da existência, com lances poéticos e sutis nos quais se entremostram as lembranças que embasam a vivência de ser, e as imensas possibilidades humanas nem sempre adequadamente aproveitadas... Revela o momento sagrado em que a criança perde a inocência e vira homem, para num sofrimento responsável, distraído do “compasso das horas”, mergulhar em cogitações transcendentais. Ainda que perdida a “virgindade”, o homem permanece impávido num universo de incertezas.
“No parque antigo a noite era afetuosa e mansa
Sob a lenda encantada do luar...
Os pinheiros pensavam cousas longas,
Nas alturas dormentes e desertas...
O aroma nupcial dos jasmins delirantes
Diluindo um cheiro acre de resinas,
Espiritualizava e adormecia
O ar meigo e silencioso...
A ronda dos espíritos noturnos,
Em medrosos rumores,
Gemia entre os ciprestes e os loureiros...
Na penumbra dos bosques o luar
Entreabria clareiras encantadas,
Prateando o verde malva das latadas
E as doces perspectivas do pomar...
As nascentes sonhavam em surdina,
Numa tonalidade cristalina,
Monótonos murmurinhos,
Gorgolejos de águas frescas...
Sobre a areia de prata dos caminhos,
A sombra espiritual dos eucaliptos,
Bulindo ao sopro tímido da aragem,
Projetava ao luar desenhos indecisos,
Ágeis bailados, leves de arabescos,
Farândolas de sombras fugitivas...
E das perdidas curvas das estradas,
De paragens distantes
Como fantasmas de serenatas,
Ressonâncias sonâmbulas traziam
A longa, a pungentíssima saudade
De cavatinas e mandolinatas...
Lembro-me bem, quando em quando,
Entre as sebes escondidas,
Um insidioso grilo impertinente
Roendo um som estridente
Arranhava o silêncio.
No parque antigo a noite era afetuosa e mansa,
Sob a lenda encantada do luar...
Eu era bem criança e já possuindo
A sensibilidade evocadora
De um poeta de símbolos profundos,
Solitário e comovido,
No minarete do solar paterno,
Com os pequeninos olhos deslumbrados,
Passei a noite inteira, o olhar perdido,
No azul sonoro, o azul profundo, o azul eterno
Dos eternos espaços constelados...
Era a primeira vez que eu contemplava o mundo
Que eu via face a face o mistério profundo
Da fantasmagoria universal
No prodígio da noite silenciosa.
Era a primeira vez...
E foi aí talvez,
Que começou a história atormentada
Da minha alma curiosa dos abismos
Inquieta da existência e doente do além...
Filha da maldição do Arcanjo rebelado,,,
Sim, que foi nessa noite não me engano.
- Noite que jamais esquecerei –
Que – a alma ainda em crisálida – velando,
No minarete do solar paterno,
Diante da noite azul – eu senti e pensei
O meu primeiro sofrimento humano
E o meu primeiro pensamento eterno...
Como fora do Tempo e além do Espaço,
Ser sem princípio, espírito sem fim,
Sofria toda a humanidade em mim,
Nessa contemplação imponderável!
Já nem ouvia o trêmulo compasso
Das horas que fugiam pela noite,
Que os olhos soltos pela imensidade,
Numa melancolia comovida,
Imaginando cousas nunca ditas,
Todo eu me eterizava e me perdia
Na idéia das esferas infinitas
Na lenda universal das distâncias eternas...
No parque antigo a noite era afetuosa e mansa
Sob a lenda encantada do luar...
Foi nessa noite antiga
Que se desencantou para a vertigem
A suave virgindade do meu ser!
Já a lua transmontava as cordilheiras...
Cães ladravam ao longe, em sobressalto;
No pátio das mansões, na granja das herdades,
O cântico dos galos estalava
Desoladoramente pelos ares,
Acordando distâncias esquecidas...
E então, num silencioso desencanto,
Eu fui adormecendo lentamente,
Enquanto
Pela fria fluidez azul do espaço eterno
Em reticências trêmulas sorria
A ironia longínqua das estrelas...”[1]
O desfecho deste poema fala de um desencanto experimentado sem medos e sem mágoas, impregnado de uma paz construída à sombra da humilde aceitação da realidade,.. É diferente daquele epílogo, intensamente desejado, de uma felicidade vivida na plenitude do “ser”. O Poeta não ignora esta aspiração apoteótica; mas também sabe que a realização pessoal é condição sine qua non para a vivência da felicidade plena... afinal, esta é sempre o corolário de ações criativas e livres... A felicidade não acontece quando o espírito se afana em buscá-la por ela mesma... A felicidade não é algo que exista por si. Ela caminha como um efeito paralelo inerente à porfia inteligente e criativa que leva a realizações significativas. Quem alcança realmente ser feliz não busca a felicidade, mas a ação criativa, visando projetos que guardam íntima relação com os valores em torno dos quais gira a existência pessoal. Nessa perspectiva, em atualizando os próprios talentos num projeto de reconhecido significado, nenhuma preocupação existe de ser feliz e, no entanto, a felicidade acompanhará o empenho voluntário na realização deste projeto.
Mas, longe de buscar uma explicação de como alcançar a Felicidade o Poeta prefere decantá-la tal como a sentem as almas simples. E acaba concluindo que é vivendo a espontaneidade das posturas e ações despojadas que se é verdadeiramente feliz...
“Basta saberes que és feliz
Já o serás, na verdade, muito menos;
Na árvore amarga da meditação,
A sombra é triste e os frutos têm venenos.
Se és feliz e não o sabes, tens na mão
O maior bem entre os mais bens terrenos
E chegaste à suprema aspiração,
Que deslumbra os filósofos serenos.
Felicidade... Sombra que só vejo
Longe do pensamento e do desejo,
Surdinando harmonias e sorrindo.
Nessa tranqüilidade distraída,
Que as almas simples sentem pela Vida,
Sem mesmo perceber que estão sentindo.”[2]
Seja a felicidade este fruto colhido enquanto se constrói a existência, ou a simples intimidade ingênua com os mistérios do “ser”, é preciso defendê-la contra as ameaças sorrateiras que espreitam o vir a ser do homem, na sombra dos seus próprios desejos inconfessados. Que se não perca alguém no sonho de uma felicidade quimérica, e nem ouse empreender o seu objetivo sem atentar para as circunstâncias predadoras... Há que administrar, também, as próprias fraquezas, reconhecendo-as, para transformá-las em virtudes, pela suave rebelião da humildade, no despojamento bondoso da alma que, todavia, permanece inteira, criativa, valente e comedida. A nobre visão do Poeta aconselha que em qualquer circunstância deve-se sustentar a dignidade de ser homem...
“Quando fores sentindo que o fulgor
Do teu Ser se corrompe e a adolescência
Do teu gênio desmaia e perde a cor,
Entre penumbras em deliquescência;
Faze a tua sagrada penitência,
Fecha-te num silêncio superior,
Mas não mostres a tua decadência
Ao mundo que assistiu teu esplendor!
Foge de tudo para o teu nadir!
Poupa ao prazer dos homens o teu drama!
Que é mesmo triste para os olhos ver
E assistir, sobre o mesmo panorama,
A alegoria matinal subir
E a ronda dos crepúsculos descer...”[3]
Everaldo Lopes
Continua)