quinta-feira, 3 de março de 2011

A norma e a exceção



A atividade prática absorve a maioria dos homens na luta pela sobrevivência, ou no afã de satisfazer o desejo de riqueza e de poder. Muitos não têm consciência de suas inquietações transcendentais... embora as vivam como superstições ou alguma prática religiosa primária. Não os afetam, explicitamente, questões teóricas, seja no campo da lógica, da ética ou da estética. Acomodam-se aos modelos culturais vigentes, preocupados tão somente com problemas de ordem prática, relacionados a interesses imediatos. Tendo em vista o comprometimento pessoal com a realidade, para alguns as situações problemáticas criadas no vir a ser existencial têm o matiz de tragédia; para outros elas se revestem de um colorido cômico; outros, ainda, as vivem sem analisá-las, repetindo a mesmice dos modelos consagrados pela tradição. Os que têm uma visão trágica do mundo transformam seu problema existencial em dilema e se condenam a suportar o rigor de uma realidade indesejável e fatal... aceitam, estoicamente, um carma de sofrimento, em vez de empenharem-se, corajosamente, na tarefa demiúrgica de reescrever seu próprio script... faltam-lhes criatividade e coragem de assumir responsabilidades inerentes a projetos existenciais mais arrojados. Os que têm uma propensão a enxergar o ridículo de situações psicossociais extravagantes que fazem rir, são mais perspicazes... percebem a comicidade de lances embaraçosos... e acabam rindo e fazendo rir das limitações humanas, sem talento, todavia, para ultrapassá-las. Finalmente os que são acólitos fiéis do “sistema”, entregam-se ao esforço de adaptação aos cânones vigentes, sem discussão. Neste afã se perdem da própria originalidade e, consciente ou inconscientemente, praticam certo cinismo pragmático... neste viés comportamental importa mais parecer do que ser. Assim caminham seres dotados de livre arbítrio, que desperdiçam seu potencial criativo, desfilando comportamentos padronizados. Perdidos em perplexidades eles se exaurem nas tentativas vãs de auto-afirmação pelo imediatismo sensual, necessariamente, egoísta e utilitário, e não conseguem “ancorar” a “existência” num ideal que lhe dê sentido.  Todos acomodados com práticas rotineiras, longe do risco da criação do “novo”. Sem espiritualidade, a necessidade de “transcender” fica reduzida a demandas da ordem do “ter”. Na correria do consumismo inconsequente, a satisfação destas demandas estruturadas num nível imediatista utilitário e sensual não preenche o vazio existencial. Tudo é artigo de consumo... bens materiais, fast-food, barzinhos e boates, sexo, amizades e até, contraditoriamente, as verdades de fé inerentes ao mundo do “ser”. Com certeza, “ter mais” é o que pretendem alcançar os que fazem a “norma”. Até mesmo quando tentam incorporar um comportamento “religioso” buscam, equivocadamente, “ter” as virtudes almejadas, e por isso não conseguem “ser” virtuosos. Em geral o consumista caminha inconformado com o próprio destino, sem um ancoradouro interior para o seu sentimento de “ser” pessoa. A “norma” é uma coletividade de indivíduos assim bitolados. A criatividade a determinação, a inventividade e o arrojo empreendedor decisivos para o progresso científico e tecnológico, por si sós, podem até enriquecê-los materialmente, porém não enaltecem os ideais superiores da “existência”.[1] Só o modo “ser de existir”[2] resgata o homem da tirania do egoísmo imediatista, abrindo-lhe o caminho para a realização pessoal mediante a prática da solidariedade comunitária. O homem só se realiza como pessoa na interação com os outros... este é o modo “ser de existir”... a base de uma sociedade centrada em pessoas, e não em coisas.
De longe em longe indivíduos privilegiados enxergam além do horizonte da “norma”... eles constituem as “exceções”. Homens talentosos e corajosos capazes de reescrever as diretrizes culturalmente normatizadas. Cientistas, Políticos reformadores, Educadores inovadores, Inventores originais, Místicos e, sobretudo, Artistas, descortinando horizontes novos forçam mudanças, provocando instabilidade social transitória inerente ao “passo” cultural para patamares evolutivos superiores.
O Artista, por sua sensibilidade invulgar constitui um grupo à parte...  ele têm um lugar peculiar, dentro do concerto social. Para o Artista o ideal é captar e representar a essência das coisas. Nesta perspectiva sonha com a obra prima, fruto de sua criatividade... ideal que se configura no desejo de apreender a essência e a beleza do mundo, dos homens, do “ser”.  Nesta busca incansável, sua alma é um turbilhão de imagens, símbolos, formas, cores e sons onde a inspiração vai colher a matéria prima para exprimir intuições sutis. A perfeição que ele persegue faz contra ponto com o torturante sentimento da incapacidade de transmitir a unidade harmônica vislumbrada por trás da realidade fenomênica que se exprime em contrastes. Avoluma-se, então, no espírito do Artista o anseio irreprimível e transbordante de revelar esta unidade harmoniosa, através da sua pena, do pincel, do cinzel, ou trabalhando a escala musical, e até o próprio corpo numa coreografia. Para ele se torna, desde então, imperioso escrever, pintar, cinzelar, compor, tocar, representar, dançar... e muitas vezes sua criação se aproxima do ideal perseguido. É o momento de glória do Artista. É tão intensa a experiência do ideal estético que, por mais perfeitas que fossem a poesia, a tela, a escultura, a composição musical, a performance interpretativa vocal ou instrumental, a coreografia, o Artista ainda não teria conseguido dizer tudo sobre sua intuição do belo inefável. E assim, a beleza deslumbrante aos olhos e ouvidos dos demais lhe parece ainda pobre diante do projeto original concebido por sua sensibilidade refinada. “Por que não falas?” Disse Michelangelo, “transtornado”, ao seu Moisés - escultura de beleza estética deslumbrante. Esta é a angústia do Artista... a de não poder ultrapassar os próprios limites e, todavia, sentir-se obrigado por uma força interior que o domina, a tentar alcançar a meta inalcançável. Suponho que a propalada arrogância do artista é mais uma explosão da sua revolta face à “incapacidade” de transmitir a harmonia escondida no seu mundo de possibilidades infinitas.
Livre de preocupações grosseiras, o Artista se doa ao seu trabalho, tendo em vista melhorar a própria performance, sonhando com poder revelar seu mundo invisível... Os Artistas se comprazem com o entusiasmo criativo! Empolgados pela inventividade, concebem o novo, e esta vivência os projeta nas culminâncias de uma experiência viva de liberdade... a liberdade do criador. Acho que há um pouco do Artista em cada indivíduo que se transcende, criativamente, em busca de algo além do imediatismo prático da “norma” estabelecida. 
Mas tudo tem seu lugar e significado na dinâmica de um mundo holístico, perfeito. Os homens comuns, os que seguem a “norma” garantem a estabilidade social, por tenderem a repetir o passado. Os que veem além da “norma”, os “excepcionais”, é que fazem a diferença no curso da História da Humanidade. A “tradição” e a “novidade”, respectivamente, a “norma” e a “exceção” rivalizam, mas se necessitam, no processo histórico, para fazer andar o trem da Evolução sem descarrilar. Não há um equilíbrio mensurável entre a “instabilidade” criativa da exceção e a “solidez” conservadora da “norma”. Os homens criativos, inventores, reformadores, Inspirados, paladinos das Artes vão à frente, rasgando horizontes novos, enquanto os normais garantem a estabilidade necessária à vida social. É assim que a Evolução tem caminhado depois do advento da consciência. As conquistas excepcionais construídas com talento e genialidade só são culturalmente absorvidas pela “norma” depois de um processo psicossocial longo e por vezes doloroso...
            Se existissem óculos especiais para tornar visível o brilho dos espíritos iluminados por seus dons “excepcionais”, certamente veríamos no cortejo humano, ao longo do tempo, pontinhos luminosos espalhados e distantes um dos outros. Os gênios e os talentos excepcionais acontecem raramente, e deixam marcas culturais emblemáticas no século em que viveram.
            Extrapolando as consequências evolutivas da “norma” e da “exceção” é forçoso reconhecer que um mundo só de “Artistas” seria caótico; mas um mundo só de homens comuns (normais) seria apático e enfadonho. Seguramente, a “norma” sem as “exceções” faria da história humana uma terrível monotonia, por sua mesmice repetitiva; mas as “exceções” sem a “norma” atropelariam a caminhada histórica pela incapacidade de promoverem uma organização social minimamente estável e coerente.
Everaldo Lopes    
           


[1] Modo de ser próprio do homem.
[2]Erich Fromm. Consulte o livro “Ter e Ser”