terça-feira, 3 de abril de 2012

Ninguém pode ter certeza...


          Numa perspectiva evolucionária o Universo toma conhecimento de si mesmo através do homem. Neste mesmo ato cognitivo assoma o pressuposto de uma consciência ordenadora do universo, que por seu caráter transcendental não é acessível à razão humana. Mas a ordem resultante pode ser pensada e sentida objetivamente em seu trajeto da matéria primitiva à vida consciente. A razão e a afetividade são as duas pontes que unem o ser consciente e o mundo. O intelecto progride relacionando noções em proposições[1], coordenando silogismos[2], preservando a estrutura sintática do discurso racional que visa descrever a realidade. Paralelamente o sentimento dá um colorido afetivo ao conhecimento, associando-o a uma vivência agradável ou desagradável. O conhecimento e o sentimento abordam os objetos para os quais convergem por caminhos diferentes, numa experiência existencial que sintetiza a razão e a afetividade.
A terceira dimensão psíquica humana é a vontade impulsora do ser consciente à escolha que preside a decisão do ato responsável, sob a influência preponderante, ora da razão ora do sentimento. Assim, no intervalo entre a consciência e o mundo constrói-se uma interface virtual que tem caráter cultural. A cultura é, pois, o cenário da dialética psicossocial, no qual a vontade compatibiliza o intelecto, a sensibilidade afetiva e a intuição do ser pessoal, com o ambiente físico e social em que o sujeito consciente está contextualizado. Nesse processo dinâmico se desenvolve o drama humano entre o amor à Verdade universal que reflete o divino, e a paixão que é ofuscação deste amor, por uma frágil representação humana, contingente, sob a forma de escravização do ego aos sentidos.
O pressuposto de uma consciência universal ordenadora implica numa cosmogênese monista espiritualista, condicionada à crença em que o Espírito Eterno é a matriz do cosmo e da consciência. Obviamente como substrato da consciência o espírito sobreviverá à morte biológica do homem, embora este não saiba o que virá depois da sua existência temporal. Contudo, é legítimo admitir que liberto dos sentidos, o espírito que vivenciou uma experiência histórica terá neste depois uma visão tão mais rica de verdade e de beleza, quanto mais o sujeito existencial tenha sido capaz de “amar”, de reconhecer a verdade e a beleza.
Ao longo da peregrinação do homem pelo mundo, na melhor hipótese, o fecho da vida pessoal inspirada numa cosmogonia espiritualista, deverá conduzir ao “amoroso desapego à vida” ou, pelo menos, a uma “aceitação compassiva da realidade”. A esperança de um depois, implícita nessa perspectiva minimiza a repercussão dolorosa do sentimento de finitude que fustiga o ser consciente. Mas a participação integral na Verdade Absoluta excede qualquer expectativa temporal.  Na individuação[3] bem sucedida, o estágio final de integração bio-psico-social do indivíduo assegura-lhe apenas a isenção da ira e do ressentimento, abrindo espaço para o perdão e a obediência à voz da consciência, comparável ao eco da Consciência Universal no ser pessoal.
          Deitando o olhar sobre o caminho percorrido pela humanidade, identificamos os tropeços que nos conduziram até o ponto em que estamos hoje, com a sobrevivência ameaçada pelas conseqüências dos nossos próprios desmandos. O homem teve e tem nas mãos a possibilidade de fazer da Terra um paraíso. Tragicamente, porém, alienado de uma visão global da sua realidade imanente / transcendente, foi cedendo às falácias do ego ambicioso, imediatista e dissimulado, perdendo a perspectiva comunitária em que o “eu” encontra sua plena realização no relacionamento com o “tu” do qual é indissociável no processo de individuação. E assim os equívocos na prática do livre arbítrio abriram espaço para a desordem, o sofrimento e a morte prematura.
Os efeitos catastróficos que ameaçam a humanidade, hoje, é o resultado das más escolhas que o homem vem fazendo ao longo dos tempos, ora preso à alienação ingênua análoga à de Chapeuzinho Vermelho que, sorrindo e cantarolando, vai parar na “barriga do lobo”; ora estimulado pela má fé articulada, maliciosamente, contra a Verdade.  Em ambos os casos o homem malversa os seus dons, ignorando-os ou usando-os destrutivamente. Não se lhe pode negar a participação no processo que levou a humanidade à derrocada a que assistimos... Mas também não se lhe pode ocultar o potencial resolutivo das contradições nas quais se embarafustou. Potencial eminentemente pessoal que se manifesta na criatividade construtiva. Portanto nem tudo está perdido, podemos apostar nos dons criativos do homem, contra a tentação dos descaminhos destrutivos. Considerando tudo isso, seria oportuno indagar: diante do Tribunal da consciência reta, o homem seria julgado culpado ou inocente? Eu diria sem medo de errar: responsável, sempre, mas, culpado? Não consigo afirmá-lo com tanta certeza. A verdade é que, alienada e ingenuamente, ou por má fé, o homem imperfeito, mas perfectível fez um joguinho de interesses mesquinhos e acabou sofrendo as conseqüências dos seus próprios despautérios. Neste “joguinho” entram inúmeras variáveis, algumas incompletamente conhecidas ou, momentaneamente fora de controle, sem contar com a possibilidade de outras totalmente ignoradas. Essa inconsistência sobre a qual se constrói a existência tem levado muita gente a afirmar: “O homem é um animal que não se deve levar a sério.” Mas esta afirmação revela uma forma equivocada de avaliação do homem, embora sedutora por sua irônica descontração. A questão básica é que não podemos jogar fora ou ignorar o dom da liberdade. Estamos condenados a ser livres, dizia Sartre.  Não há como fugir da responsabilidade de escolher. Não levar o homem a sério seria ignorar a dignidade de que ele se reveste ao exercitar o livre arbítrio. E isso seria, no mínimo, uma maneira leviana de tratar o fenômeno humano. Por outro lado o veredito condenatório será sempre arbitrário por mais justo que pareça, porque nenhum julgamento é capaz de esgotar o exame de todas as variáveis que levaram à prática de um delito. É inevitável um resíduo de incerteza. E por isso mesmo, para não interromper a dinâmica do vir a ser existencial, em toda decisão é indispensável assumir corajosamente a incerteza irredutível, passando por cima da dúvida implícita nos desdobramentos da realidade em que os problemas são indecidíveis.
Tudo começa com o exercício do livre arbítrio na atualização da condição humana. Para escolher é preciso ter critérios e estes não são dados pela Natureza, são, sim, construídos pelo próprio homem. É o homem que define o ponto de corte das suas possibilidades. É o homem que cria as regras do jogo, isto é, do seu comportamento, traçando um perfil pessoal. Porém, se a estrutura psíquica e biológica é uma manifestação do próprio Espírito ordenador, não seria uma afirmação vazia dizer-se que existe um conhecimento inato do bem e do mal ( a voz da consciência) que pode levar-nos pela mão ao porto seguro. Mas somos livres para atender ou não este apelo. Assim o homem é duplamente responsável... responsabilidade inerente à sua condição de “ser livre”, que se reafirma na de honrar as regras do jogo criadas pelo próprio homem.
 Esta visão da realidade humana permite afirmar: A existência é um processo de risco que se desenrola através de escolhas pessoais intransferíveis. O homem jamais pode ter certeza absoluta sobre o acerto da escolha a que está obrigado, mas é preciso que a faça e viva sua opção até as últimas consequências, transformando-a em decisão e no ato pertinente. Não há outra maneira de conhecer a verdade existencial que nos propomos senão experimentando as nossas escolhas. E, então, no momento da decisão que antecede a ação, o homem corre o risco total, sem garantias de sucesso e sem retorno. No fim, encontrará a plenitude ou o desespero. No fundo, tudo se resume em exercitar a liberdade, na autodeterminação do ser pessoal. E isto envolve, necessariamente, a coragem de ser. Um adendo se faz necessário. Quem escolhe e decide à luz da consciência reta jamais desespera. Mas o único refúgio totalmente seguro para todas as incertezas do homem é a confiança na Providência Divina, obviamente, para os que creem.
                              Everaldo Lopes Ferreira


[1] Expressão linguística de uma operação mental (o juízo), composta de sujeito, verbo (sempre redutível ao verbo ser) e atributo, e passível de ser verdadeira ou falsa.( Houaiss3)

[2] Raciocínio dedutivo estruturado formalmente a partir de duas proposições (premissas), das quais se obtém por inferência uma terceira (conclusão) [p.ex.: "todos os homens são mortais; os gregos são homens; logo, os gregos são mortais"](Houaiss3)

[3] Processo por meio do qual uma pessoa se torna consciente de sua individualidade, de acordo com C.G. Jung (1875-1961)