sábado, 31 de maio de 2014

Frustração do ideal democrático

A prática democrática sem o apoio da cidadania plena leva ao poder pessoas sem espírito público, incompetentes e inescrupulosas. Generalizando, podemos dizer serem poucos os políticos profissionais que escapam, no mínimo, ao rótulo de burocratas muito bem pagos pela república, que no exercício dos mandatos fazem mais política eleitoreira do que trabalham para o Estado e, consequentemente, para o povo. Lamentavelmente a maioria deles deixa em segundo plano os interesses da coletividade e, pior, alguns se envolvem em escândalos de corrupção. No fim o povo continua sem saúde, sem educação, sem segurança, sem transporte coletivo além de empobrecido, enquanto os vivaldinos enchem os bolsos com proventos, jetons polpudos e outras vantagens pecuniárias oficiais e extraoficiais. Esse quadro já é por demais conhecido, e suscita uma discussão sobre a possibilidade e o valor do voto consciente e responsável. Os eleitores despreparados, que são maioria, não avaliam o candidato aos cargos eletivos do governo por seu quilate moral e amor à causa pública. Por outro lado a falta de candidatos ilibados (utopia?) não oferece alternativa ao eleitor esclarecido que acaba votando dentre os que disputam a preferência nas urnas os supostamente melhores, embora saiba que eles não preenchem os requisitos de um servidor público exemplar.  Assim, os  eleitos com o voto popular nem sempre reúnem as condições morais e técnicas desejáveis!  Um agravante é que  o eleitor consciente se ressente da falta de credibilidade das informações sobre a vida e personalidade dos que pleiteiam cargos eletivos. Os debates públicos televisionados podem revelar o conhecimento dos candidatos em relação aos problemas que afligem a coletividade, mas não medem a capacidade de resolvê-los, nem a disposição de fazer coincidir depois da posse a prática administrativa com o discurso pré-eleitoral. O resultado da eleição se torna ainda menos seletivo em consequência da corrupção envolvendo a compra de votos. Tudo isso arranha o ideal democrático porque todos os votos nivelados por baixo têm o mesmo peso. Assim, numa democracia todos contribuem voluntária ou involuntariamente para as distorções que maculam o regime. E o resultado desastroso também atinge todos. A má escolha contribui para os desmandos administrativos, privando o povo das melhorias que seriam possíveis contando com  os recursos orçamentários existentes. Não obstante, convenhamos, a Democracia ainda continua sendo o melhor dentre os regimes políticos conhecidos. Por isso apesar das dificuldades é imperioso que nos empenhemos em defesa do rigor das práticas democráticas. É perceptível a deformação produzida pelo Capitalismo corrompido por comportamentos aéticos. Pode-se mesmo dizer que os problemas cruciais da sociedade humana, hoje, decorrem do fato de estarmos vivendo num mundo dominado por uma economia caracterizada pela competição desenfreada e pelo acúmulo de riqueza nas mãos de uma minoria. Essa realidade que não se esconde à análise socioeconômica mais elementar gera uma herança perversa que ameaça as expectativas menos pessimistas para a humanidade, neste começo de milênio. As nações estão divididas entre as ricas, as pobres e muito pobres. As primeiras explorando desumanamente estas últimas, mas todas elas ricas e pobres deformadas pela ambição individual e de corporações privadas. Essa orientação direciona mal a elaboração e execução dos precários orçamentos dos países pobres e impede o investimento nas ações desenvolvimentistas de que carecem. Suas populações, salvo um reduzido número de privilegiados da fortuna são mal alimentadas, sem educação e sem assistência à saúde.  Um clima perfeito para as distorções do processo democrático responsáveis pela manutenção no poder dos profissionais da política mais interessados em engordar as próprias contas bancárias do que em promover políticas públicas benéficas para o povo. Estas distorções  perpetuam um ciclo vicioso de miséria física e moral. A má distribuição do bem comum nos contextos nacional e internacional resulta em boa parte das mazelas da economia capitalista comandada pelo livre mercado frequentemente aético. E reflete-se nos desníveis econômicos caracterizados por classes sociais de alta renda e de baixa ou nenhuma renda (os miseráveis). As consequências político sociais extremas dessa ordem econômica perversa influem de modo importante no desencadeamento da  violência urbana e do terrorismo internacional. Quando os oprimidos chegam ao limite de sua resistência perdem os controles conscientes e apelam para as soluções irracionais. O cidadão esclarecido vê tudo isso e pouco, ou quase nada pode fazer individualmente para reverter o processo cuja inércia só poderá ser contida por uma força social capaz de induzir os líderes mundiais e locais a reavaliar a política econômica nos níveis internacional e nacional, de tal forma que todos os povos de grandes e pequenas nações possam eliminar a pobreza e promover o desenvolvimento humano. A expectativa dessa reviravolta para melhor inclui, obviamente, a reordenação construtiva das iniciativas responsáveis dos países ricos e pobres, tendo em vista prioritariamente o desenvolvimento humano paralelo à organização de uma sociedade solidária, e não apenas o crescimento econômico. Essa reavaliação seria a base de um esforço gigantesco para a edificação da comunidade humana. Pode-se imaginar a grandiosidade dessa revolução socioeconômica. Mas, embora possa parecer bombástica a afirmação que se segue, sem esta revolução a humanidade estará ameaçada de retornar à barbárie. O desalento do observador atento vem com a constatação de que são bem mais numerosos os descomprometidos com o processo de construção da comunidade humana, por alienação ou falta de caráter. Mergulhado nessa realidade hostil o verdadeiro humanista sente-se um inocente útil aviltado pelas tramoias políticas, sociais e econômicas, carente do poder de fogo para combatê-las.
Sem dramatizar, é preciso reconhecer a dificuldade de alcançar resultados mais consistentes e mais rápidos na construção da comunidade humana através dos meios democráticos sordidamente viciados pelos exploradores da massa ignara. Nas circunstâncias atuais, a intolerância, a mentira e as cavilações são largamente praticadas nos meios sociais, político e econômico, obstruindo os canais da organização democrática da sociedade. Os cidadãos íntegros ciosos da responsabilidade social são boicotados nas suas iniciativas pelo embuste dos políticos e empresários corrompidos, e pela ignorância alienante de uma grande maioria dos que fazem a sociedade dita “organizada”.   As denuncias contra a incompetência, a politicagem e o descompromisso com a coisa pública são sepultadas pela avalanche de mentiras com que os militantes espertalhões ludibriam o povão. Todavia sei que não são poucos os que, sem condições de implementar ações socialmente construtivas fazem uma militância de atitude para manter aceso o ideal de competência, verdade e justiça no trato da coisa pública. Por isso alimento a certeza de que ainda contamos com boa reserva moral entre os cidadãos do mundo inteiro à espera, quiçá, de uma liderança política que os aglutine e de uma oportunidade efetiva de intervenção no processo social e econômico. Confio em que as mentiras, os acordos cavilosos, a corrupção um dia se envenenarão com a própria peçonha. Então, a verdade há de prevalecer, libertando a consciência responsável para exercer o seu papel na construção de um mundo novo e melhor. Quando? Não sei. Mas é preciso que cultivemos o amor à verdade e à justiça, enquanto  os vândalos da ética sócio-política e econômica estão à solta espalhando imposturas. Corro o risco de parecer ingênuo, mas alimento a expectativa de que se  não for possível mudar, já, esse processo político e socioeconômico despudorado que nos sufoca hoje, os que se mantiveram fiéis aos ideais de verdade e de justiça hão de multiplicarem-se para constituir um grupo numeroso capaz de garantir a vitória da verdade sobre a mentira, do bem sobre o mal.

Everaldo Lopes