A prática democrática sem o apoio
da cidadania plena leva ao poder pessoas sem espírito público, incompetentes e
inescrupulosas. Generalizando, podemos dizer serem poucos os políticos
profissionais que escapam, no mínimo, ao rótulo de burocratas muito bem pagos pela
república, que no exercício dos mandatos fazem mais política eleitoreira do que
trabalham para o Estado e, consequentemente, para o povo. Lamentavelmente a
maioria deles deixa em segundo plano os interesses da coletividade e, pior,
alguns se envolvem em escândalos de corrupção. No fim o povo continua sem
saúde, sem educação, sem segurança, sem transporte coletivo além de
empobrecido, enquanto os vivaldinos enchem os bolsos com proventos, jetons
polpudos e outras vantagens pecuniárias oficiais e extraoficiais. Esse quadro
já é por demais conhecido, e suscita uma discussão sobre a possibilidade e o
valor do voto consciente e responsável. Os eleitores despreparados, que são
maioria, não avaliam o candidato aos cargos eletivos do governo por seu quilate
moral e amor à causa pública. Por outro lado a falta de candidatos ilibados
(utopia?) não oferece alternativa ao eleitor esclarecido que acaba votando dentre
os que disputam a preferência nas urnas os supostamente melhores, embora saiba
que eles não preenchem os requisitos de um servidor público exemplar. Assim, os eleitos com o voto popular nem sempre reúnem
as condições morais e técnicas desejáveis! Um agravante é que o eleitor consciente se ressente da falta de
credibilidade das informações sobre a vida e personalidade dos que pleiteiam
cargos eletivos. Os debates públicos televisionados podem revelar o
conhecimento dos candidatos em relação aos problemas que afligem a
coletividade, mas não medem a capacidade de resolvê-los, nem a disposição de
fazer coincidir depois da posse a prática administrativa com o discurso
pré-eleitoral. O resultado da eleição se torna ainda menos seletivo em
consequência da corrupção envolvendo a compra de votos. Tudo isso arranha o
ideal democrático porque todos os votos nivelados por baixo têm o mesmo peso. Assim,
numa democracia todos contribuem voluntária ou involuntariamente para as
distorções que maculam o regime. E o resultado desastroso também atinge todos. A
má escolha contribui para os desmandos administrativos, privando o povo das
melhorias que seriam possíveis contando com
os recursos orçamentários existentes. Não obstante, convenhamos, a
Democracia ainda continua sendo o melhor dentre os regimes políticos
conhecidos. Por isso apesar das dificuldades é imperioso que nos empenhemos em
defesa do rigor das práticas democráticas. É perceptível a deformação produzida
pelo Capitalismo corrompido por comportamentos aéticos. Pode-se mesmo dizer que
os problemas cruciais da sociedade humana, hoje, decorrem do fato de estarmos
vivendo num mundo dominado por uma economia caracterizada pela competição
desenfreada e pelo acúmulo de riqueza nas mãos de uma minoria. Essa realidade
que não se esconde à análise socioeconômica mais elementar gera uma herança
perversa que ameaça as expectativas menos pessimistas para a humanidade, neste
começo de milênio. As nações estão divididas entre as ricas, as pobres e muito
pobres. As primeiras explorando desumanamente estas últimas, mas todas elas
ricas e pobres deformadas pela ambição individual e de corporações privadas. Essa
orientação direciona mal a elaboração e execução dos precários orçamentos dos
países pobres e impede o investimento nas ações desenvolvimentistas de que
carecem. Suas populações, salvo um reduzido número de privilegiados da fortuna
são mal alimentadas, sem educação e sem assistência à saúde. Um clima perfeito para as distorções do
processo democrático responsáveis pela manutenção no poder dos profissionais da
política mais interessados em engordar as próprias contas bancárias do que em
promover políticas públicas benéficas para o povo. Estas distorções perpetuam um ciclo vicioso de miséria física e
moral. A má distribuição do bem comum nos contextos nacional e internacional
resulta em boa parte das mazelas da economia capitalista comandada pelo livre
mercado frequentemente aético. E reflete-se nos desníveis econômicos
caracterizados por classes sociais de alta renda e de baixa ou nenhuma renda
(os miseráveis). As consequências político sociais extremas dessa ordem
econômica perversa influem de modo importante no desencadeamento da violência urbana e do terrorismo
internacional. Quando os oprimidos chegam ao limite de sua resistência perdem
os controles conscientes e apelam para as soluções irracionais. O cidadão
esclarecido vê tudo isso e pouco, ou quase nada pode fazer individualmente para
reverter o processo cuja inércia só poderá ser contida por uma força social
capaz de induzir os líderes mundiais e locais a reavaliar a política econômica nos
níveis internacional e nacional, de tal forma que todos os povos de grandes e
pequenas nações possam eliminar a pobreza e promover o desenvolvimento humano. A
expectativa dessa reviravolta para melhor inclui, obviamente, a reordenação
construtiva das iniciativas responsáveis dos países ricos e pobres, tendo em
vista prioritariamente o desenvolvimento humano paralelo à organização de uma sociedade
solidária, e não apenas o crescimento econômico. Essa reavaliação seria a base
de um esforço gigantesco para a edificação da comunidade humana. Pode-se
imaginar a grandiosidade dessa revolução socioeconômica. Mas, embora possa
parecer bombástica a afirmação que se segue, sem esta revolução a humanidade
estará ameaçada de retornar à barbárie. O desalento do observador atento vem
com a constatação de que são bem mais numerosos os descomprometidos com o
processo de construção da comunidade humana, por alienação ou falta de caráter.
Mergulhado nessa realidade hostil o verdadeiro humanista sente-se um inocente
útil aviltado pelas tramoias políticas, sociais e econômicas, carente do poder
de fogo para combatê-las.
Sem dramatizar, é preciso reconhecer a dificuldade
de alcançar resultados mais consistentes e mais rápidos na construção da
comunidade humana através dos meios democráticos sordidamente viciados pelos
exploradores da massa ignara. Nas circunstâncias atuais, a intolerância, a
mentira e as cavilações são largamente praticadas nos meios sociais, político e
econômico, obstruindo os canais da organização democrática da sociedade. Os
cidadãos íntegros ciosos da responsabilidade social são boicotados nas suas
iniciativas pelo embuste dos políticos e empresários corrompidos, e pela
ignorância alienante de uma grande maioria dos que fazem a sociedade dita “organizada”.
As denuncias contra a incompetência, a
politicagem e o descompromisso com a coisa pública são sepultadas pela
avalanche de mentiras com que os militantes espertalhões ludibriam o povão. Todavia
sei que não são poucos os que, sem condições de implementar ações socialmente construtivas
fazem uma militância de atitude para manter aceso o ideal de competência,
verdade e justiça no trato da coisa pública. Por isso alimento a certeza de que
ainda contamos com boa reserva moral entre os cidadãos do mundo inteiro à
espera, quiçá, de uma liderança política que os aglutine e de uma oportunidade
efetiva de intervenção no processo social e econômico. Confio em que as
mentiras, os acordos cavilosos, a corrupção um dia se envenenarão com a própria
peçonha. Então, a verdade há de prevalecer, libertando a consciência
responsável para exercer o seu papel na construção de um mundo novo e melhor.
Quando? Não sei. Mas é preciso que cultivemos o amor à verdade e à justiça,
enquanto os vândalos da ética sócio-política
e econômica estão à solta espalhando imposturas. Corro o risco de parecer
ingênuo, mas alimento a expectativa de que se não for possível mudar, já, esse processo
político e socioeconômico despudorado que nos sufoca hoje, os que se mantiveram
fiéis aos ideais de verdade e de justiça hão de multiplicarem-se para constituir
um grupo numeroso capaz de garantir a vitória da verdade sobre a mentira, do
bem sobre o mal.
Everaldo Lopes