quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Ciência e Fé


Para construir sua existência o homem necessita dispor de valores[1] que não são dados pela Natureza. Eles são elaborados culturalmente, e se nutrem com o assentimento das pessoas. Numa sociedade antropocêntrica a legitimidade destes valores pode ser aferida pela utilização construtiva dos mesmos no vir a ser de todos os homens. Com este fundamento os valores humanos prescindem de um suporte metafísico. Eles nascem com a tese inscrita no ideal humanístico que objetiva a construção da comunidade humana universal.  O que não invalida os valores canônicos, até porque muitos destes preceitos de Direito Eclesiástico coincidem com a proposta humanística integral[2]. Mas a base laica da sociedade humana é a ética racional... enquanto num contexto religioso o que consagra a legitimidade do “valor” ético é uma autoridade incontestável, transcendental - Deus... um absoluto fora do alcance da razão temporal e, portanto, objeto de fé. De uma forma ou de outra, porém, é o indivíduo que assume inteira responsabilidade ao conferir poder determinante sobre seu comportamento, aos valores que adota como paradigmas éticos.
As regras de conduta se constituem, portanto, numa elaboração cultural de caráter laico ou religioso, inerente ao exercício da consciência responsável. Estas regras se estruturam sobre uma base racional ou a partir de uma crença; distinção que faz toda diferença entre a ética humanística e a ética religiosa ou canônica. É oportuno lembrar a dificuldade de conciliar a verdade racional e a verdade de fé. Sendo a verdade de fé tutelada por um absoluto sobre o qual nada se pode afirmar ou negar do ponto de vista estritamente racional, é comum certa resistência racionalista à assimilação de uma proposta mística. Ocorre que a fé é um dom que não se impõe, podendo o homem apenas cultivá-lo uma vez que todos somos dotados de predisposição à crença.  E quando a fé não é profunda, e a Ciência é incipiente incomoda a distância assinalada entre o fundamento laico e o fundamento místico do valor que dá suporte às regras de comportamento. No fundo, inclino-me a pensar que a razão e a fé são complementares na abordagem gnosiológica da realidade “toda”... alguém já as comparou aos dois olhos da alma[3].
A outorga pelo homem a si mesmo do poder de legislar em causa própria seria pretensiosa, se não fosse a autoridade que lhe é conferida pela condição humana entendida como consciência livre e responsável. Senão vejamos. A consciência reflexiva implica num distanciamento subjetivo entre a percepção da realidade e a resposta aos seus estímulos. Neste espaço virtual, tendo em vista a integridade existencial, a consciência reflexiva responsável impõe-se analisar racionalmente as respostas possíveis, e escolhe uma que contemple a construção da comunidade humana universal, salvaguardando a harmonia social. Em defesa desta harmonia, por coerência, o ser consciente obriga-se moralmente a fazer sua escolha recair numa resposta construtiva aplicável a todos os homens. Neste contexto, os valores humanos desenham-se como um imperativo moral com características absolutas, dentro dos limites da condição humana. O que implica na adesão à VERDADE como representação fiel das partes constitutivas da realidade, e no respeito à COERÊNCIA LÓGICA das relações implícitas das diferentes partes da totalidade (a realidade toda) que por sua vez é determinante da integração das mesmas[4].  Obedecendo a esses critérios, o homem identifica-se com os valores fundados racionalmente e confirma-os mediante o compromisso com uma prática coerente, definindo no seu comportamento uma ética legítima na linha humanística laica. Todavia, a razão imanente não anula (nem poderia) uma transcendência absoluta que dê suporte definitivo aos valores existenciais, num nível ético-religioso. Mas esta transcendência não é indispensável para justificar os valores éticos que emergem do exercício da consciência livre e responsável do homem.
Na verdade, com o advento da consciência reflexiva e da liberdade que lhe é inerente, a Evolução abre espaço para a emergência de um ser problemático (o homem). Na circularidade lógica da sua realidade complexa (“consciência / mundo”) a condição humana justifica-se no processo evolucionário pelo exercício da consciência reflexiva[5] que torna possível a organização social humana por livre escolha e não por um determinismo instintivo. A consciência reflexiva (responsável), diferença específica do “Homo Sapiens sapiens” é o lance mais ousado desse processo evolutivo. Mas o conhecimento puro não basta para fazer a escolha correta, tendo em vista um valor assumido. Esta escolha demanda a participação integrada da inteligência, da vontade e da intuição potencializadas pela adesão a um princípio comunitário soberano. Portanto constitui-se numa operação subjetiva complexa que demanda elevado grau de socialização (isenção de sentimentos egóicos), o que permite imaginar que o próximo passo evolutivo seria a emergência do “Homo Sapiens Eticus”. Esta nova espécie do gênero humano seria capaz de desenvolver a capacidade de priorizar as escolhas solidárias que cimentam a comunidade humana, garantindo o desiderato da própria Evolução. Aliás, a História da humanidade demonstra que esses mutantes já existem e faz alguns milênios que alguns deles vêm promovendo revoluções culturais importantes.
Voltando à questão da resistência à proposta mística, atualmente, as conquistas da Física Quântica e o conhecimento mais profundo da realidade cósmica na qual estamos contextualizados abrem espaço para a aceitação tácita de uma transcendência absoluta. Assim, as aquisições da Física Quântica[6] dão suporte especulativo a uma espiritualidade esclarecida que enriquece a abordagem convencional das religiões baseadas em revelações codificadas num contexto eclesial catequético. Enquanto o cientificismo míope pode levar, equivocadamente, à oposição entre a razão e a fé, um conhecimento mais profundo ajuda a superar o impasse. Em “O Ativista Quântico” o Físico e Pensador Amit Goswami chega a ser convincente “ao explicar de forma acessível os fundamentos da Física Quântica (que associam a realidade física) e o potencial ilimitado da consciência”. Estes avanços científicos não conferem fé ao incrédulo, nem apazigua o homem inquieto... mas abre uma porta para maior intimidade intelectual entre a realidade física e a metafísica, oferecendo algum respaldo teórico para “criar o que não se vê”... é assim que Unamuno define o ato de fé.
De qualquer forma é irrefutável a afirmação que não é preciso ter fé num absoluto transcendental para arrimar o comportamento ético e a dignidade humana. Mas não há unanimidade em relação a esta afirmação. Tomamos como exemplo emblemático dessa discordância várias falas de Ivan, um dos personagens de “Os Irmãos Karamazov”, obra prima da literatura mundial escrito por Dostoiévski em 1879. Em momentos diferentes, Ivan descreve seu ponto de vista cujo conteúdo se resume em uma frase muito repetida: “Se Deus não existe tudo é permitido”. Renovo aqui a contestação que fiz há mais de 20 anos numa edição limitada do livro que intitulei: “Ser Homem, um desafio”. Não. O comportamento ético não se fundamenta na crença em Deus, mas na dignidade inerente à condição humana. O que não afeta, absolutamente, a soberania do Criador, ao contrário O glorifica com o testemunho nobre do comportamento ético de sua criatura.    
  Everaldo Lopes.               


[1] Valor – Princípio  ou norma que, por corporificar um ideal de perfeição ou plenitude moral, deve ser buscado pelos seres humanos. Dic. Houaiss3

[2] Vide «Humanismo Integral » de Jacques Maritain
[3] Guerra Junqueiro em a Velhice do Padre Eterno
[4] Construção holística
[5] Em postagens anteriores já mostramos a substituição no processo evolucionário, dos determinismos físico-químicos e biológicos pelas escolhas da consciência livre no sentido da organização social comunitária... Obviamente, tais escolhas só se concretizarão com a participação da vontade.
[6] Vide postagem anterior intitulada “ Devaneio especulativo I”.