sábado, 25 de junho de 2016

Democracia e solidariedade



A condição fundamental para o pleno desenvolvimento do homem é a predisposição no sentido de  contribuir  positivamente para a construção  da comunidade humana universal. Esta contribuição pressupõe a disposição pessoal de aperfeiçoamento na prática da solidariedade[1]. Não há comunidade humana sem solidariedade no exercício da qual os indivíduos são movidos pela vontade que busca o bem do outro, todos inspirados no ideal comunitário humano. O comportamento solidário é que garante a integridade do processo político democrático e das relações econômicas que presidem as interações sociais da coletividade humana.
Quando enaltecemos a solidariedade sem analisar política e economicamente as relações humanas, o apelo à prática solidária pode parecer romântico. Todavia o chamamento implícito neste apelo para a convivência justa e fraterna entre os homens é basilar para a  conservação da espécie. Nunca é demais salientar que a Evolução, a partir do homem, já não depende do aperfeiçoamento biológico do indivíduo, mas da sua capacidade de organizar-se numa sociedade estruturada em relações interindividuais calcadas na busca efetiva da participação de todos no bem comum. A desobediência a essa orientação empobrece a sociedade humana. A prática do sistema capitalista baseada na competição entre os homens e no acúmulo de bens reforça este empobrecimento. Já temos uma longa experiência com o exercício deste sistema  econômico social que traz nas suas entranhas o egoísmo como força propulsora das ações humanas. Nessa linha de conduta socioeconômica será cada vez maior o número de excluídos das riquezas naturais e das produzidas pelo homem, reduzindo-se a um pequeno número os que gozam os privilégios dos bens acumulados. Ao longo da história, tal desequilíbrio cria situações em que sobressaem injustiças sociais inaceitáveis. É escandaloso o contraste de pessoas muito ricas vivendo ao lado de outras extremamente pobres que apenas sobrevivem em condições miseráveis. Como se vê, a forma capitalista de lidar com a riqueza das nações tem implicações sociais contrárias à prática solidária.  A conduta competitiva aética e o afã de acumular geram crises políticas e econômicas contaminadas pela corrupção, por conflitos e violência entre os homens.
A globalização da economia favoreceu a superacumulação de capitais, associada à “financeirização”[2] da economia. Situação em que o lucro do capital fundamenta-se na busca frenética de vantagens pecuniárias no mercado das ações de megaempresas que exploram o trabalho humano; o rendimento já não decorre, diretamente, da produção de bens e serviços, mas de aplicações rendosas do capital ocioso nas bolsas de valores. Livres de normas restritivas, os recursos monetários disponíveis para investimentos deslocam-se facilmente em busca da mão de obra mais barata onde quer que ela esteja. Enquanto isso, o trabalhador, sem recursos adequados para defender-se fica preso às pressões patronais, e deixa-se explorar a fim de sobreviver. Obviamente,  a prática da solidariedade entre os homens pode minimizar as injustiças inerentes ao exercício do capitalismo predador, mas permanece a vantagem dos que possuem o capital e os meios de produção. Anular  as consequências dessa diferença é o objetivo do processo de humanização da economia.
 Por outro lado, é notório que a doutrina democrática propõe o regime político mais adequado ao pleno desenvolvimento da humanidade. Mas a formalidade democrática dissociada da prática solidária abre  espaço para comportamentos lesivos a uma estruturação social que atenda efetivamente às exigências da comunidade humana universal. Os frutos humanitaristas da doutrina democrática dependem do quilate moral dos homens que fazem a democracia[3], embora a prática democrática exija mais do que a simples potencialidade moral dos indivíduos. Sem esquecer que à falta do rigor ético a cobiça e o egoísmo prevalecem, deformando as relações sociais e econômicas da coletividade humana. Por isso são poucos os exemplos de nações que praticam uma democracia plena. A falta de solidariedade tem ensejado comportamentos contrários à doutrina democrática original concebida como o governo do povo, pelo povo e para o povo. Ao fugir de suas diretrizes legítimas, a Democracia tende a transformar-se em plutocracia[4], marginalizando, economicamente, a maioria da população.  Em suas conferencias publicadas sob o título “Réquiem do sonho americano”, Noam Chomsky [5] citou um Estudo da Universidade de Princeton que concluiu: “70% da população norte-americana (brancos de classe média baixa, e minorias pobres de negros e latinos) não têm meios para influenciar a política de Washington.” Exatamente a porção maior da sociedade que, todavia, detém a menor cota do capital circulante fica marginalizada do poder que a doutrina democrática original lhe assegura. Essa impotência  política de porção tão expressiva da população de um país considerado exemplo de democracia no mundo é um testemunho da fragilidade política do sistema democrático dissociado da solidariedade. Vivemos na própria pele como é frustrante esta vivência de fragilidade experimentada pela maioria dos americanos inseridos no contexto sócio econômico e político dos EE UU da América do Norte. No Brasil, “53,8% do total de impostos arrecadados são pagos por brasileiros que ganham até três salários mínimos, e que representam 79% da população.” Informações fidedignas dão conta, ainda, de que entre nós só “28,5% da arrecadação provém dos que recebem de três a dez salários mínimos e apenas 17,7% da receita do Estado recaem sobre a classe média alta e as elites com rendimento superior a dez salários mínimos.” E é esta maioria frustrada da população de países ditos democráticos, que sustenta o Estado com os impostos que paga. O deslocamento do encargo de financiar o Estado para as costas dos mais pobres e classe média caminha paralelamente com a instalação da plutocracia. Os dados estatísticos citados são  uma demonstração  objetiva da injustiça de onerar os mais pobres, sob a proteção da lei.  Isso gera frustração e ódio contra as instituições, e, por extensão, as pessoas ficam desconfiadas e passam a temer umas às outras, chegando até a odiarem-se. Nesse clima de descontentamento e desorientação política, a mídia fabrica consensos de acordo com os interesses da classe dominante. 
  A situação descrita até agora nesse texto define panoramicamente o caos em que a humanidade está afundando enquanto não se articula um esforço comum para o desenvolvimento da prática efetiva da solidariedade entre os homens.
É oportuno salientar, porém, que não obstante a crise socioeconômica  em que estamos mergulhados, há sinais evidentes do ganho cultural de uma consciência cada vez maior de que a orientação solidária  do comportamento humano é a única saída para a sobrevivência da espécie. Como decorrência desta conscientização, crescem o apelo à empatia, à prática responsável do interesse recíproco entre os homens, e à força do chamamento à luta contra os crimes ecológicos. Há um entendimento cada vez mais amplo da necessidade de salvar a Natureza e incentivar a prática da solidariedade para salvaguardar o futuro da espécie humana.
Everaldo Lopes


[1] Entendida como relação de responsabilidade entre pessoas unidas por interesses comuns em prol da comunidade humana universal, de maneira que cada elemento        do grupo se sinta na obrigação moral de apoiar o(s) outro(s), numa dependência recíproca.
[2] O capital gerando renda desvinculada à produção de bens materiais ou serviços.
[3] Políticos partidários militantes ávidos de votos, mas nem sempre comprometidos com a coisa pública, e eleitores despreparados para exercer a cidadania.
[4] Dominação da classe capitalista, detentora dos meios de produção, circulação e distribuição de riquezas, sobre a massa proletária, mediante um sistema político e jurídico que assegura àquela classe o controle social e econômico.
(Aurélio)
[5] Linguista, filósofo, cientista cognitivo, comentarista e ativista político norte-americano, um dos representantes mais importantes dos pensadores modernos.