A condição fundamental
para o pleno desenvolvimento do homem é a predisposição no sentido de contribuir
positivamente para a construção
da comunidade humana universal. Esta contribuição pressupõe a disposição
pessoal de aperfeiçoamento na prática da solidariedade[1].
Não há comunidade humana sem solidariedade no exercício da qual os indivíduos
são movidos pela vontade que busca o bem do outro, todos inspirados no ideal
comunitário humano. O comportamento solidário é que garante a integridade do
processo político democrático e das relações econômicas que presidem as interações
sociais da coletividade humana.
Quando enaltecemos a
solidariedade sem analisar política e economicamente as relações humanas, o
apelo à prática solidária pode parecer romântico. Todavia o chamamento
implícito neste apelo para a convivência justa e fraterna entre os homens é
basilar para a conservação da espécie. Nunca
é demais salientar que a Evolução, a partir do homem, já não depende do aperfeiçoamento
biológico do indivíduo, mas da sua capacidade de organizar-se numa sociedade estruturada
em relações interindividuais calcadas na busca efetiva da participação de todos
no bem comum. A desobediência a essa orientação empobrece a sociedade humana. A
prática do sistema capitalista baseada na competição entre os homens e no
acúmulo de bens reforça este empobrecimento. Já temos uma longa experiência com
o exercício deste sistema econômico
social que traz nas suas entranhas o egoísmo como força propulsora das ações
humanas. Nessa linha de conduta socioeconômica será cada vez maior o número de
excluídos das riquezas naturais e das produzidas pelo homem, reduzindo-se a um
pequeno número os que gozam os privilégios dos bens acumulados. Ao longo da
história, tal desequilíbrio cria situações em que sobressaem injustiças sociais
inaceitáveis. É escandaloso o contraste de pessoas muito ricas vivendo ao lado
de outras extremamente pobres que apenas sobrevivem em condições miseráveis. Como
se vê, a forma capitalista de lidar com a riqueza das nações tem implicações
sociais contrárias à prática solidária. A conduta competitiva aética e o afã de
acumular geram crises políticas e econômicas contaminadas pela corrupção, por conflitos
e violência entre os homens.
A globalização da
economia favoreceu a superacumulação de capitais, associada à “financeirização”[2]
da economia. Situação em que o lucro do capital fundamenta-se na busca
frenética de vantagens pecuniárias no mercado das ações de megaempresas que
exploram o trabalho humano; o rendimento já não decorre, diretamente, da
produção de bens e serviços, mas de aplicações rendosas do capital ocioso nas
bolsas de valores. Livres de normas restritivas, os recursos monetários disponíveis
para investimentos deslocam-se facilmente em busca da mão de obra mais barata
onde quer que ela esteja. Enquanto isso, o trabalhador, sem recursos adequados para
defender-se fica preso às pressões patronais, e deixa-se explorar a fim de
sobreviver. Obviamente, a prática da solidariedade
entre os homens pode minimizar as injustiças inerentes ao exercício do
capitalismo predador, mas permanece a vantagem dos que possuem o capital e os
meios de produção. Anular as
consequências dessa diferença é o objetivo do processo de humanização da
economia.
Por outro lado, é notório que a doutrina
democrática propõe o regime político mais adequado ao pleno desenvolvimento da
humanidade. Mas a formalidade democrática dissociada da prática solidária abre espaço para comportamentos lesivos a uma
estruturação social que atenda efetivamente às exigências da comunidade humana
universal. Os frutos humanitaristas da doutrina democrática dependem do quilate
moral dos homens que fazem a democracia[3],
embora a prática democrática exija mais do que a simples potencialidade moral
dos indivíduos. Sem esquecer que à falta do rigor ético a cobiça e o egoísmo prevalecem,
deformando as relações sociais e econômicas da coletividade humana. Por isso
são poucos os exemplos de nações que praticam uma democracia plena. A falta de
solidariedade tem ensejado comportamentos contrários à doutrina democrática original
concebida como o governo do povo, pelo povo e para o povo. Ao fugir de suas
diretrizes legítimas, a Democracia tende a transformar-se em plutocracia[4],
marginalizando, economicamente, a maioria da população. Em suas conferencias publicadas sob o título
“Réquiem do sonho americano”, Noam Chomsky [5]
citou um Estudo da Universidade de Princeton que concluiu: “70% da população
norte-americana (brancos de classe média baixa, e minorias pobres de negros e
latinos) não têm meios para influenciar a política de Washington.” Exatamente a
porção maior da sociedade que, todavia, detém a menor cota do capital circulante
fica marginalizada do poder que a doutrina democrática original lhe assegura.
Essa impotência política de porção tão expressiva
da população de um país considerado exemplo de democracia no mundo é um
testemunho da fragilidade política do sistema democrático dissociado da
solidariedade. Vivemos na própria pele como é frustrante esta vivência de fragilidade
experimentada pela maioria dos americanos inseridos no contexto sócio econômico
e político dos EE UU da América do Norte. No Brasil, “53,8% do total de
impostos arrecadados são pagos por brasileiros que ganham até três salários
mínimos, e que representam 79% da população.” Informações fidedignas dão conta,
ainda, de que entre nós só “28,5% da arrecadação provém dos que recebem de três
a dez salários mínimos e apenas 17,7% da receita do Estado recaem sobre a
classe média alta e as elites com rendimento superior a dez salários mínimos.” E
é esta maioria frustrada da população de países ditos democráticos, que
sustenta o Estado com os impostos que paga. O deslocamento do encargo de financiar
o Estado para as costas dos mais pobres e classe média caminha paralelamente
com a instalação da plutocracia. Os dados estatísticos citados são uma demonstração objetiva da injustiça de onerar os mais pobres,
sob a proteção da lei. Isso gera
frustração e ódio contra as instituições, e, por extensão, as pessoas ficam desconfiadas
e passam a temer umas às outras, chegando até a odiarem-se. Nesse clima de
descontentamento e desorientação política, a mídia fabrica consensos de acordo
com os interesses da classe dominante.
A situação descrita até agora nesse texto define
panoramicamente o caos em que a humanidade está afundando enquanto não se
articula um esforço comum para o desenvolvimento da prática efetiva da
solidariedade entre os homens.
É oportuno salientar,
porém, que não obstante a crise socioeconômica em que estamos mergulhados, há sinais
evidentes do ganho cultural de uma consciência cada vez maior de que a
orientação solidária do comportamento
humano é a única saída para a sobrevivência da espécie. Como decorrência desta
conscientização, crescem o apelo à empatia, à prática responsável do interesse
recíproco entre os homens, e à força do chamamento à luta contra os crimes
ecológicos. Há um entendimento cada
vez mais amplo da necessidade de salvar a Natureza e incentivar a prática da
solidariedade para salvaguardar o futuro da espécie humana.
Everaldo Lopes
[1]
Entendida como relação de responsabilidade entre pessoas unidas por interesses
comuns em prol da comunidade humana universal, de maneira que cada
elemento do grupo se sinta na
obrigação moral de apoiar o(s) outro(s), numa dependência recíproca.
[2]
O capital gerando renda desvinculada à produção de bens materiais ou serviços.
[3]
Políticos partidários militantes ávidos de votos, mas nem sempre comprometidos
com a coisa pública, e eleitores despreparados para exercer a cidadania.
[4] Dominação da classe capitalista, detentora dos
meios de produção, circulação e distribuição de riquezas, sobre a massa
proletária, mediante um sistema político e jurídico que assegura àquela
classe o controle social e econômico.
|
(Aurélio)
[5]
Linguista,
filósofo,
cientista cognitivo, comentarista e ativista político norte-americano,
um dos representantes mais importantes dos pensadores modernos.