quarta-feira, 22 de junho de 2011

Generosidade


O egoísmo é tão arraigado no ser humano que custa crer na verdadeira generosidade. Mas, convenhamos, no dia a dia se confirma o sacrifício que muitos fazem para atender às necessidades de terceiros. Todavia, analisando caso a caso há sempre um ganho secundário implícito na doação que se supõe generosa. Embora este ganho não seja considerado prioritário na motivação do benfeitor. Seja o reconhecimento da nobreza do gesto, que massageia o ego do doador... seja um retorno merecido, nesta vida... seja a recompensa esperada num outro nível de existência... seja o sentimento camuflado de “poder”, ao proporcionar ajuda. O ego posto a nu é, por suas características psicodinâmicas, um poço de interesses. Esta observação exclui qualquer crítica desabonadora... a constatação implícita faz parte da condição humana. Então, fundamentados numa introspecção honesta, poderíamos descartar, inteiramente, um interesse egóico escondido no comportamento generoso? Por exemplo, a intenção de prevenir críticas desairosas, ou de saldar uma dívida moral, livrando-se do sentimento de culpa previsível face à eventual omissão da ajuda ao “outro”... É difícil deixar de lado a idéia que a generosidade totalmente indiferente a qualquer retribuição é exclusiva da magnanimidade de Deus!!!... Talvez o que mais se aproxime de um gesto puro de generosidade humana resulte da empatia diante da carência do “outro”... E mesmo assim, com o gesto empático o benfeitor está, indiretamente, servindo a si mesmo. Esta constatação suscita cogitações sobre o comportamento dos santos que chegaram a doar a própria vida para dar testemunho da sua fé. A conduta dos mártires sugere a reconsideração da tese que vínhamos desenvolvendo. Todavia, caberia ainda perguntar: deixar-se-iam martirizar até a morte se não tivessem a certeza (pela fé) de merecer, depois, as primícias da presença de Deus?  Dever-se-á admitir que a ação caridosa dos justos resulta apenas do envolvimento no desejo de estarem contribuindo, direta ou indiretamente, para o bem-estar da comunidade humana? Sem dúvida, a generosidade assim configurada só poderia ser qualificada como divina. Para aceitar esta magnanimidade sem reservas, será preciso admitir a transfiguração do homem por intervenção de uma força mística que qualifique e potencialize a “vontade de sentido”[1] centrada em servir ao outro, contra a tendência do egoísmo enraizado. Nesta leitura mística da “doação total”, a verdadeira generosidade só se tornaria possível em função do estado de graça que corresponde à absorção da própria criatura no Criador. Experiência de rara ocorrência. Cita-se a afirmação de São Paulo, depois da conversão: “Já não sou eu que vivo, mas Cristo que vive em mim”.
É óbvio que no exercício da consciência responsável o homem é induzido a assumir um comportamento ético solidário em relação aos seus semelhantes.  Mas o esforço voluntário sustentado para atualização deste potencial ético, habitualmente, tem limites e exige sacrifícios. A superação de todos estes limites vai além do “dever”, projetando no homem a própria essência do “amor[2]”... sugerindo  uma intervenção supranatural.
Não estamos querendo minimizar a grandeza das pessoas verdadeiras, justas e caridosas que se sacrificam no cumprimento do seu ideal. Apenas queremos mostrar que a ação solidária não é espontânea, demanda uma elaboração, supomos, mesmo para os que têm vocação religiosa.
 A propósito dos problemas inerentes à análise e julgamento do comportamento generoso na prática cotidiana consideremos uma situação emblemática. Nela estão presentes os elementos psicológicos contraditórios implícitos nas ações formalmente generosas, e a demonstração da dificuldade de avaliar com certeza a natureza efetiva do comportamento generoso formalizado (politicamente correto).
São inúmeros os idosos inválidos que vivem sob os cuidados dos filhos... sós com uma cuidadora assalariada, num apartamento alugado.
Os filhos se vêem na contingência de subvencionar as despesas dos pais alquebrados pela idade, porque a pensão que eles recebem não dá para cobrir as despesas com aluguel, cuidadores, alimentação, plano de saúde, medicamentos etc. Por alguma razão, peculiar a cada um, muitas vezes os filhos não querem abrigar os velhos “problemáticos” nas próprias casas. Porém, mesmo quando possuidores de recursos limitados e obrigações inadiáveis com a própria família (mulher e filhos) os descendentes, escrupulosos, têm pudor ou sentem ferida a vaidade diante da alternativa de colocar o ascendente num abrigo... E optam por brindá-lo com um “conforto” que não têm condição de bancar... O resultado é que todos, pelo menos teoricamente, se sacrificam financeiramente. O comportamento dos genitores (agora idosos e dependentes), durante a formação da prole deixou marcas diferentes, nem sempre positivas, em cada filho, refletidas, hoje, no tipo das relações filiais espontâneas.  Só Deus sabe o que se passa no íntimo de cada um... Afeto, gratidão, revolta, sentimento de culpa, e raiva contida... Impregnados desta mistura de sentimentos, impõem-se a obrigação de atender as necessidades básicas dos seus idosos, “sentindo”, intimamente, a sobrecarga econômica implícita, e o trabalho adicional a que se obrigam. A condição financeira precária dos descendentes gera dissensão entre eles. Sob pressão de cobranças mútuas, não conseguem unanimidade na divisão das responsabilidades assistenciais. Os velhos, por sua vez têm uma visão ingênua da situação de dependência em que vivem... Supervalorizam a aposentadoria que recebem e o que se convencionou chamar direitos paternos... avaliam, ressentidos, a ausência dos filhos, mas não conseguem inspirar-lhes admiração, nem liderá-los, tão pouco. Esta situação se arrasta, entremeada por crises polarizadas pelo aprofundamento das dificuldades materiais já mencionadas. E o custeio das necessidades do idoso no apartamento alugado torna-se pomo de discórdia entre os familiares que não conseguem uma distribuição equitativa de obrigações em relação à sua manutenção. Nesta conjuntura, pode-se imaginar a possibilidade de um conflito ético de certa forma monstruoso, mas compatível com a fragilidade da condição humana. Conscientemente, todos desejam a vida e felicidade do antepassado idoso; mas poder-se-ia afirmar com segurança que os descendentes mantenedores sacrificados financeiramente em virtude dos custos assistenciais assumidos estejam imbuídos só de pensamentos e sentimentos positivos de amor e carinho? Afinal sem o ônus a que os gerontes os obrigam estariam livres de um monte de problemas... Certamente os mantenedores não querem admitir, sequer, que tenham levantado, intimamente, esta questão e sofrem até com a possibilidade de haverem, num relance, vislumbrado em si mesmos a sombra de uma postura cruel... Mas... tudo é possível!
Voltemos ao questionamento original sobre a generosidade x egoísmo. No exemplo que acabamos de examinar, os velhos inválidos, ou quase, estão recebendo a melhor assistência que a família lhes pode oferecer. Todavia, haveria generosidade[3] pura no gesto dos descendentes que financiam as despesas do idoso? Ou o gesto generoso estaria condicionado ao cumprimento do “dever”, profilático do sentimento de culpa pela omissão? Ou estaria vinculado ao receio da crítica social?          De qualquer forma, o que é preciso valorizar é o ânimo dos descendentes em sacrificando-se para oferecer proteção ao idoso... mesmo que tenham de controlar a revolta, amansar a hostilidade, valorizando a alegria de servi-lo, e o desejo sincero de vê-lo feliz!
Everaldo Lopes


[1] Conceito central da Logoterapia – A força que move a psique nas relações consciência-mundo.
[2] Caridade – disposição espontânea favorável em relação a alguém em situação de inferioridade (física, moral, social etc.); compaixão, benevolência, piedade (Houaiss3)

[3] Caráter e sentimentos nobres, magnanimidade, liberalidade; disposição de dar com largueza, em quantidade maior do que o usual e o necessário.