domingo, 28 de novembro de 2010

A caminhada heroica


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Do nascimento à morte o homem vive a saga de ser o artífice de si mesmo. E neste caminhar constroi-se, passo a passo, mediante o exercício responsável da consciência.  Assim, é imprescindível que detenha o conhecimento imediato da sua finitude, e sinta a responsabilidade em relação à prática de modelos comportamentais que honrem a atualização da condição humana.  O tempo urge e é preciso caminhar.
A vulnerabilidade da performance humana baseada no exercício da consciência livre e responsável, reside na ausência de certezas definitivas. As escolhas são sempre empreendimentos de risco, fundamentadas em valores criados pelo próprio homem... pois mesmo os valores “revelados” passam pelo crivo da “existência”, o modo de ser peculiar do homem.  
A vida põe os homens diante de situações diferentes, mas o respeito aos valores inerentes a uma visão de mundo coerente garante a correção das escolhas de cada um no seu vir a ser. E o somatório destas escolhas define o rumo da História. No fundo, a lógica dessas escolhas tem como base um “valor” que vale o quanto de sentimento e determinação criativa o homem investe no ideal que fundamenta este valor... Dessa forma, transforma-se em “valor” um ideal humano absolutizado que passa a constituir referencial inquestionável, um critério de julgamento nas opções inevitáveis.
A formalização e a institucionalização dos valores se traduzem em cânones culturais que delimitam as regras do comportamento social. A cultura, guardiã da unidade social propõe comportamentos que podem não coincidir com o desejo dos indivíduos que os encenam em obediência à norma. Em atenção à ordem social, freqüentemente, o indivíduo se vê na contingência de sacrificar interesses particulares em favor do bem estar de todos. Neste ponto começam os conflitos psicossociais.
No processo de socialização cabe ao indivíduo disciplinar suas demandas egoístas mediante um esforço corretivo dirigido contra as tendências atávicas egocêntricas, o que exige auto-conhecimento e auto-controle... Amiúde, estas tendências são mais fortes do que o amor à verdade, à justiça, e o sentimento de solidariedade. E quando o “demônio” que habita o interior do homem, vence o “ anjo” que o rivaliza, abre-seno processo cultural uma porta para a mentira, a pirataria, o assassinato e as guerras  que transtornam o bem-estar social .
  Diante da batalha intestina, que o homem trava ao “existir”, o “eu” operante assume posturas diferentes. Sob a mira da crítica social, ou o homem adota uma atitude pragmática e cínica, à sombra do manto da cumplicidade coletiva culturalmente dissimulada; ou perde-se em equívocos que escondem tendências e propósitos inconfessos; ou, ainda, ingenuamente, vive a norma como se fosse uma ode à perfeição... Os que são criticamente conscientes dos equívocos culturais, mas não têm coragem para fazer-lhes oposição efetiva, vivem uma ambivalência incômoda que termina na omissão... Poucos são os que se sentem visceralmente comprometidos com o exercício da consciência responsável e vão à luta em prol da coerência do processo sócio-cultural, inspirados em princípios humanísticos. Este é o espaço dos conflitos existenciais cuja resolução revela a estatura moral das pessoas envolvidas.
Lamentavelmente o esforço cívico dos cidadãos de bem nem sempre é recompensado, prevalecendo  a proposta marota dos vivaldinos.  Os cidadãos de bem clamam, em desespero, a justiça divina. Ecoa entre eles o questionamento bíblico referente ao sofrimento dos justos e à vitória dos maus... Por que? A santa indignação, todavia, é injusta com o próprio Deus...
            A humanização se confunde com a gestão responsável da existência. Isso impõe compromisso assumido consciente e livremente pelo homem com os valores coletivos. Ao conceder ao homem a capacidade de escolher, o Criador colocou sobre seus ombros a missão de construir uma humanidade solidária. A responsabilidade é a contrapartida do privilégio de reter os dons da consciência e  da liberdade,  inéditos na natureza. Quando falta ao beneficiário destes dons a grandeza de espírito necessária para exercitá-los com integridade, prevalece o comportamento covarde, caviloso ou dissimulado, germe dos males que afligem o homem. Nunca a humanidade esteve tão exposta às conseqüências  da realização de interesses individuais e corporativos espúrios que minam as possibilidades reais do desenvolvimento humano.
É forçoso reconhecer que é o homem e não Deus quem deve ser  responsabilizado pelos erros que enodoam o curso da História...  Se Deus interviesse, tolheria a liberdade humana, subtraindo o fulcro da dignidade que conferira, gratuitamente, a sua criatura. No entanto fica de pé o convencimento de que para vencer os obstáculos ao exercício responsável da consciência é preciso contar com a ajuda de imponderáveis, reflexos de um poder transcendental que vela por nós. Ninguém vence esta batalha sozinho... E a Transcendência protetora (misericordiosa) está sempre no mais íntimo de nós mesmos, no “tu” infinito que nos constitui, cada um de nós, num “eu”, e que, lamentavelmente, o “outro” (o “tu” da convivência social) não consegue representar condignamente.
Mas só sobrevivemos até aqui porque há sempre um saldo positivo nos altos e baixos do convívio social... Creio em que a poupança gerada por estes saldos acumulados renderá o juro necessário para “financiar” o custo em bom senso, criatividade e determinação necessários à construção da comunidade humana.
Muitos conhecem a verdade complexa da realidade pessoal atrelada à História, e a responsabilidade implícita... Mas poucos são suficientemente corajosos para levar às últimas consequências, nas suas vidas, a prática da consciência livre e responsável. Todavia, a estes está destinada a tarefa ingente de sobreporem-se às circunstâncias em busca de soluções comunitárias para o convívio humano... soluções baseadas na verdade, na justiça e na solidariedade universal. A esses mutantes, precursores evolutivos do “Homo Sapiens éticus” caberá salvar o homem e a Terra do desastre que se anuncia, provocado pela insensatez do Homo sapiens sapiens.