terça-feira, 22 de janeiro de 2013

O momento humano



         O momento humano: a “existência” [1]
    A comparação entre os decênios da vida humana e os bilhões de anos de existência da Terra reduz o ciclo biológico do homem a algo insignificante na linha do tempo. Mas cada homem é um ente especial; a sua “existência” é um absoluto dentro da imensidão cósmica. No momento de exercer o livre arbítrio, o homem assume uma dignidade inédita na Natureza, como indivíduo consciente. O seu devir passa a ser o resultado de uma interação peculiar entre o sujeito da consciência e as pessoas e coisas ao seu redor.  Nesta interação o homem decide, cria, seja no confronto com seu semelhante, seja na sua relação com as “coisas”. No primeiro caso ele se depara com alguém igualmente livre, num relacionamento intersubjetivo no qual incidem problemas[2] específicos que dificultam o diálogo. Dificuldades que apontam para a necessidade do controle ético do comportamento humano social.
Existir para o homem é trabalhar o desafio que lhe é feito para a construção de si mesmo. Este empenho se resume na dinâmica psicossocial que preside a individuação[3] e socialização concomitantes. Processos que envolvem o exercício das funções psíquicas superiores do homem[4] aplicadas às relações do indivíduo consigo mesmo e com sua circunstância. Isto é o que faz da “existência” humana algo diferente de todas as outras existências. Exercitando a consciência e a liberdade o homem é responsável pelo seu vir a ser histórico; torna-se senhor de si mesmo na medida em que se submete a um darma[5], e aceita responsavelmente o seu carma[6]; transcende-se quando mergulha, desamparado, no «novo»[7], motivado pelo desejo de encontrar um sentido  para sua vida; ganha sabedoria quando aprende a distinguir o que pode, do que não pode ser mudado; dignifica-se pela coragem de implementar a mudança do que pode e deve ser mudado; supera-se  vencendo o egoísmo que impede o comportamento solidário; pensa, emociona-se, ama, cria, e em cada um desses momentos assume sua realidade pessoal apoiada sobre o abismo do nada[8]. Ao transpor este abismo o homem vivencia a descoberta das imensas possibilidades de realização dentro da sua própria insignificância temporal. Assume a necessidade de estruturar sua “existência” na convivência com seus semelhantes, pelo respeito dispensado à dignidade do outro. Finalmente, vivendo a aventura de ser-consciente-no-mundo o homem se dá conta da urgência de aprender a abandonar-se, diante do inevitável, à teia de um processo psicossocial complexo no qual intervêm variáveis imponderáveis que escapam à análise racional; é o momento em que busca apoio em pressupostos vivenciais e intuitivos[9]. Sobre tudo isso, o homem sabe que nada se constrói de realmente grandioso, sem autenticidade. À falta deste sinete, as manifestações humanas são caricaturas das virtudes que alardeiam, não retratam uma verdade existencial.
A análise simultânea dos processos de individuação e socialização evidencia a primazia da união entre os homens. Mas é impossível vivenciar este sentimento de unidade sem reverenciar uma transcendência que a todos envolva por igual, seja um ideal histórico, seja um absoluto transtemporal. Este é o fundamento da religiosidade pura, não contaminada pelo esforço eclesial da institucionalização[10] de uma mensagem revelada. Sem o apoio de uma revelação, o selo de legitimidade do procedimento social fundamenta-se na universalidade do benefício das decisões estruturadas nas relações humanas solidárias. Então, o indivíduo torna-se acessível ao outro, sem ficar vulnerável; será sensível à beleza e à harmonia, sem parecer patético; será contemplativo, intuitivo, mas, também comunicativo, analítico; tornar-se-á participativo sem sufocar os demais; respeitoso da dignidade dos outros, enquanto guardião da sua própria; curioso do «novo», mas consciente de sua responsabilidade nas escolhas que faz.
A paz subjetiva é o sinal inconfundível de que corpo e alma  conseguem sintetizar no comportamento pessoal o  verdadeiramente humano. Os prazeres da carne desfrutados na cama e na mesa, não são propriamente humanos sem um toque espiritual de respeito e ternura; os prazeres da alma, consubstanciados no conhecimento, na contemplação estética, no sentimento do dever cumprido e do sagrado, para serem humanos precisam ter a marca da emoção enraizada na vibração de todos os coloides orgânicos.
    Não seria exagero afirmar que o “momento humano” é o instante supremo da Evolução em que o “Dinamismo Absoluto Eternamente Criativo” se revela anunciando sua Criação. Na projeção deste movimento infinito se apagam todas as contradições inerentes à realidade fenomênica. Fazendo uma analogia grosseira, na perspectiva cósmica a Física teórica também prevê o nivelamento de todas as diferenças de potencial, pelo crescimento da entropia[11] que culmina com a morte do Universo. A esta imobilidade mortal levam os desdobramentos práticos da 2ª lei da Termodinâmica. Mas, ao contrário, na perspectiva existencial a anulação de todas as contradições resulta da integração da consciência numa realidade infinitamente maior, inalcançável pela razão temporal. A inteligência criativa do homem já representa no curso da Evolução uma tendência oposta ao caos energético previsto pela lei Física. A criatividade humana deixa entrever que a entropia não será o fim do Universo e sim o portal para o mundo das “essências”, em que a consciência participará de um princípio intangível, o “logos”[12], absoluto donde emergem as leis que dão consistência aos processos de transformação da matéria↔energia e ao comportamento dos sistemas nesses processos. Esta especulação remete à intuição genial do Apóstolo João: “No princípio era o Verbo, e o Verbo era  Deus...”                                                                                                                      Everaldo Lopes


[1] Exercício responsável da consciência que implica na capacidade pessoal de decidir e agir livremente. Para os existencialistas, o modo de ser próprio do homem.
[2] Discutimos esses problemas  num dos primeiros textos deste blog, intitulado “A arte de conviver”.
[3] Processo  por meio do qual uma pessoa se torna consciente de sua individualidade.  C.G. Jung (1875-1961)

[4] Consciência reflexiva, intuição criativa, vontade, livre arbítrio, amor.
[5] Conjunto de preceitos morais e religiosos; conformidade com a lei.
[6] Ações humanas e suas consequências
[7] Que nunca foi visto, sem precedentes; original
[8] Não há um protótipo do homem na Natureza. Neste quadro em branco o homem  precisa inventar-se e estabelecer os próprios limites nas suas relações coletivas.
[9] O que coloca o homem diante da alternativa de praticar  um ato de fé.
[10] A formalização de uma mensagem existencial tem a missão histórica de perpetuá-la, embora as vicissitudes deste processo turve a pureza existencial da mensagem.
[11] Medida da quantidade de desordem de um sistema.
[12] O Logos significava inicialmente a palavra escrita ou falada - o Verbo. Mas a partir de filósofos gregos como Heraclito passou a ter um significado mais amplo. Logos passa a ser um conceito filosófico traduzido como razão, tanto como a capacidade de racionalização individual ou como um princípio cósmico da Ordem e da Beleza. (Internet-Wikipédia)