domingo, 30 de novembro de 2014

O idoso lúcido

                                                               Pudor
Quando fores descobrindo que o fulgor
Do teu ser se corrompe e a adolescência
Do teu gênio desmaia, perde a cor,
Entre penumbras em deliquescência,

Faze a tua sagrada penitência,
Fecha-te num silêncio superior,
Mas não mostres a tua decadência
Ao mundo que assistiu teu esplendor!

Foge de tudo para o teu nadir!
Poupa ao prazer dos homens o teu drama!
Que é mesmo triste para os olhos ver

E assistir, sobre o mesmo panorama,
A alegoria matinal subir
E a ronda dos crepúsculos descer.

                               Raul de Leoni


Consciente da própria finitude o homem reage inconformado ante o  envelhecimento e a morte. O soneto que prefacia o texto transparece uma atitude estoica, ou seja, de impassibilidade diante do infortúnio de envelhecer. Participando ou não dessa postura o idoso lúcido é sempre um crítico impiedoso de sua condição. Cônscio da própria decadência física estética e funcional assume a única postura decente para quem vive essa situação irreversível. Em respeito à própria dignidade e à sensibilidade dos demais cala a maior parte do tempo. E quando fala confere maior rigor à elaboração do seu discurso, selecionando melhor o teor de sua mensagem para torna-la objetiva e concisa. Dessa forma assegura-se de não ser repetitivo nos diálogos que protagoniza, ou invasivo da autonomia e tranquilidade dos que o cercam. Seguindo essa linha de comportamento, antes de falar pondera a coerência do que tem a dizer, sonda a verdade do que dirá e avalia o que sua intervenção pode acrescentar positivamente à realidade. Depois dessa triagem sobra muito pouco, quase nada para dizer, salvo nas oportunidades em que a experiência de vida do mais velho for solicitada para ajudar na solução de problemas pontuais. Obviamente a anosidade não é garantia de sabedoria. Todavia, quem já viveu muito uma existência analisada tem mais chance de ser sensato por haver acumulado maior experiência sobre como lidar com os percalços das relações humanas, garantia potencial de maior flexibilidade na solução das dificuldades que atropelam a convivência social. Todavia, neste ponto é oportuno salientar que numa participação social solidária, mais importante do que ter o conhecimento, é vivenciar um crescimento interior que envolva disciplina emocional, generosidade, e capacidade de tomar decisões.
O comportamento reservado e elaborado do idoso lúcido não é sinônimo de intransigência presunçosa. Ele não nega a dor moral das perdas que acompanham o passar dos anos, mas não se deixa afogar nelas nem as alardeia, antes procura alguma forma de compensá-las com os recursos de que ainda dispõe. Para suavizar o impacto da marcha biológica regressiva tenta ser tolerante no julgamento da desfiguração estética do envelhecimento,  e “desdramatiza” o sentimento de menos valia ao constatar a fragilidade física e o pobre desempenho funcional inerentes à idade. Consciente de sua autoavaliação objetiva realista, o idoso lúcido compreende sem ressentimento o distanciamento involuntário dos mais jovens que vivem ao ritmo de outro tempo e têm interesses diferentes. Sente-se bem quando é procurado por amigos, filhos e netos, mas não alimenta a  expectativa de ser o centro de suas atenções, e muito menos exige que o procurem, sem que essa postura ofusque o afeto que eles lhe inspiram.
É possível que alguns idosos conservem a criatividade e continuem cativando os circunstantes com sua capacidade de transmitir mensagens construtivas. Obviamente, quanto mais sábio e humilde for o idoso melhor aproveitará os seus talentos comunicativos. Mas é conveniente lembrar que mesmo os que não alcançam reproduzir um perfil excepcional podem tornar-se pessoas menos agressivas, mais tolerantes, em harmonia consigo mesmas. Com essas características, os que conservam as funções psíquicas superiores intactas, e estão dispostos a enfrentar corajosamente os revezes da idade com bom senso, sem mágoa, conseguem ser simpáticos e bem acolhidos por todos.
Faz parte da lucidez do idoso perceber que sua existência vai se tornando cada vez mais pobre de lances excitantes, prazerosos e, portanto, é urgente aprender a lidar com essa situação. A saída desse impasse depende dos quocientes intelectual e emocional do idoso, da visão de mundo na qual ele se contextualiza e de sua resiliência psíquica[1]. Uma resposta eficaz para as restrições que o afetam não exige, necessariamente, riqueza de conhecimento intelectual nem refinamento cultural, mas não dispensa a intuição do equilíbrio pessoal no exercício da razão, da sensibilidade afetiva e da vontade.
A consciência de um passado já longo e de um futuro que mingua, inevitavelmente anuncia a proximidade da  morte dos que já viveram mais de dois terços de suas vidas, o que os leva a pensar nela com mais frequência. Aparentemente não há como negar o clima de fim de  festa no último terço de suas vidas. Mas o idoso lúcido sabe que pode optar por não fazer da velhice um ritual de desistência da vida que ainda flui no seu corpo já muito vivido, e assumirá esta opção com proficiência tanto maior quanto maior for seu envolvimento com uma atividade criativa. Não se pode prever até quando o idoso sadio conservará sua lucidez, compatibilizando-a com uma atividade criativa que lhe confira o prazer de viver!  Certamente nessa evolução influem fatores socioeconômicos, pessoais, culturais e genéticos, além da mundividência na qual o homem assume uma posição definida, seja numa visão de mundo espiritualista, ou materialista. O idoso materialista evoluirá coerentemente para uma postura apática, indiferente que no vocabulário cético estoico se confunde com a ataraxia[2]. O idoso espiritualista encarna uma visão mística  inerente à fé em um dinamismo absoluto eternamente criativo que permanece na sua criatura. No homem este dinamismo alimenta a esperança de vida eterna como individualidade espiritual pessoal. Promessa que suaviza a aceitação da finitude biológica à qual está condenado. A entrega incondicional do sujeito consciente a um absoluto transcendental ameniza o sentimento de orfandade de uma existência desgarrada e vazia, razão do distanciamento de si mesmo que ameaça o idoso. Mas o pleno resultado prático desta entrega, traduzido em paz e serenidade, só se evidencia quando esta entrega está embasada numa crença autêntica que absorve inteiramente o homem de qualquer idade predisposto a crer numa transcendência absoluta sem questionar. Não se produz o mesmo efeito entre os mais racionais que recorrem a argumentos especulativos metafísicos para justificar a adesão intelectual a uma transcendência absoluta. A vivência de pertencimento a um todo significativo faz toda diferença no desdobramento da conduta do idoso lúcido. Alguns homens teimam em afirmar que podem  conviver sem sobressalto com a ideia de ser a morte biológica o seu fim definitivo; não sei até que ponto se pode confiar na integridade existencial desta afirmação! Em verdade é realmente mais razoável admitir o “dinamismo absoluto” que criou o cosmo e a vida, manifestando-se por fim como pessoa[3] no exercício das funções psíquicas superiores do homem. Como individualidade espiritual este dinamismo absoluto continua presente nas suas criaturas e sobreviverá à morte física do indivíduo. Nesta linha de raciocínio o místico aposta na comunidade universal de todas as consciências integradas na unidade do absoluto transcendental no qual se manifesta a perfeição por toda eternidade. Tudo isso pode encontrar respaldo em especulações filosóficas, mas a razão por si só não promove  a vivência de participação neste absoluto transcendental. Reafirmo, pois, o que disse no fechamento do texto anterior: felizes os que experimentam a vivência autêntica dessa expectativa mística amparados por uma fé ingênua,  prescindindo de cogitações filosóficas.
Obviamente, em qualquer dos casos, o sofrimento por doença é um complicador que cada  um terá de enfrentar de acordo com as reservas morais remanescentes! Em todo caso, embora seja o homem um ser de cultura, na ausência de uma experiência mística aquietadora, o idoso pode ainda confiar na ajuda da natureza para resolver os problemas criados por ela mesma; afinal, nascer e morrer são fenômenos que obedecem aos determinismos da natureza, e todos acabamos cumprindo nosso destino natural. A responsabilidade que pesa sobre o homem consiste em empenhar-se  para crescer e envelhecer com dignidade, cultivando a generosidade numa convivência social solidária.     

  Everaldo Lopes   





[1] Capacidade de recuperação depois de uma agressão emocional.
[2] Estado em que a alma, pelo equilíbrio e moderação da escolha de prazeres sensíveis e espirituais atinge o ideal supremo de felicidade: a imperturbabilidade;
[3] Pessoa –Individualidade física e espiritual, portadora de qualidades quais sejam a racionalidade, a consciência de si, a capacidade de agir conforme fins determinados e o discernimento de valores éticos.