Pudor
Quando fores descobrindo que o fulgor
Do teu ser se corrompe e a
adolescência
Do teu gênio desmaia, perde a cor,
Entre penumbras em deliquescência,
Faze a tua sagrada penitência,
Fecha-te num silêncio superior,
Mas não mostres a tua decadência
Ao mundo que assistiu teu esplendor!
Foge de tudo para o teu nadir!
Poupa ao prazer dos homens o teu
drama!
Que é mesmo triste para os olhos ver
E assistir, sobre o mesmo panorama,
A alegoria matinal subir
E a ronda dos crepúsculos descer.
Raul de Leoni
Consciente da própria finitude o homem reage inconformado ante o envelhecimento e a morte. O soneto que
prefacia o texto transparece uma atitude estoica, ou seja, de impassibilidade
diante do infortúnio de envelhecer. Participando ou não dessa postura o idoso lúcido é sempre um crítico
impiedoso de sua condição. Cônscio da própria decadência física estética e
funcional assume a única postura decente para quem vive essa situação
irreversível. Em respeito à própria dignidade e à sensibilidade dos demais cala
a maior parte do tempo. E quando fala confere maior rigor à elaboração do seu
discurso, selecionando melhor o teor de sua mensagem para torna-la objetiva e concisa.
Dessa forma assegura-se de não ser repetitivo nos diálogos que protagoniza, ou
invasivo da autonomia e tranquilidade dos que o cercam. Seguindo essa linha de
comportamento, antes de falar pondera a coerência do que tem a dizer, sonda a
verdade do que dirá e avalia o que sua intervenção pode acrescentar
positivamente à realidade. Depois dessa triagem sobra muito pouco, quase nada
para dizer, salvo nas oportunidades em que a experiência de vida do mais velho for
solicitada para ajudar na solução de problemas pontuais. Obviamente a anosidade
não é garantia de sabedoria. Todavia, quem já viveu muito uma existência
analisada tem mais chance de ser sensato por haver acumulado maior experiência sobre
como lidar com os percalços das relações humanas, garantia potencial de maior
flexibilidade na solução das dificuldades que atropelam a convivência social. Todavia,
neste ponto é oportuno salientar que numa participação social solidária, mais
importante do que ter o conhecimento, é vivenciar um crescimento interior que
envolva disciplina emocional, generosidade, e capacidade de tomar decisões.
O comportamento reservado e elaborado do idoso lúcido não é sinônimo de
intransigência presunçosa. Ele não nega a dor moral das perdas que acompanham o
passar dos anos, mas não se deixa afogar nelas nem as alardeia, antes procura
alguma forma de compensá-las com os recursos de que ainda dispõe. Para suavizar
o impacto da marcha biológica regressiva tenta ser tolerante no julgamento da
desfiguração estética do envelhecimento, e “desdramatiza” o sentimento de menos valia ao
constatar a fragilidade física e o pobre desempenho funcional inerentes à idade.
Consciente de sua autoavaliação objetiva realista, o idoso lúcido compreende sem
ressentimento o distanciamento involuntário dos mais jovens que vivem ao ritmo
de outro tempo e têm interesses diferentes. Sente-se bem quando é procurado por
amigos, filhos e netos, mas não alimenta a expectativa de ser o centro de suas atenções,
e muito menos exige que o procurem, sem que essa postura ofusque o afeto que
eles lhe inspiram.
É possível que alguns idosos conservem a criatividade e continuem cativando
os circunstantes com sua capacidade de transmitir mensagens construtivas. Obviamente,
quanto mais sábio e humilde for o idoso melhor aproveitará os seus talentos
comunicativos. Mas é conveniente lembrar que mesmo os que não alcançam
reproduzir um perfil excepcional podem tornar-se pessoas menos agressivas, mais
tolerantes, em harmonia consigo mesmas. Com essas características, os que
conservam as funções psíquicas superiores intactas, e estão dispostos a
enfrentar corajosamente os revezes da idade com bom senso, sem mágoa, conseguem
ser simpáticos e bem acolhidos por todos.
Faz parte da lucidez do idoso perceber que sua existência vai se
tornando cada vez mais pobre de lances excitantes, prazerosos e, portanto, é
urgente aprender a lidar com essa situação. A saída desse impasse depende dos
quocientes intelectual e emocional do idoso, da visão de mundo na qual ele se
contextualiza e de sua resiliência psíquica[1].
Uma resposta eficaz para as restrições que o afetam não exige, necessariamente,
riqueza de conhecimento intelectual nem refinamento cultural, mas não dispensa
a intuição do equilíbrio pessoal no exercício da razão, da sensibilidade
afetiva e da vontade.
A consciência de um passado já longo e de um futuro que mingua, inevitavelmente
anuncia a proximidade da morte dos que
já viveram mais de dois terços de suas vidas, o que os leva a pensar nela com
mais frequência. Aparentemente não há como negar o clima de fim de festa no último terço de suas vidas. Mas o
idoso lúcido sabe que pode optar por não fazer da velhice um ritual de
desistência da vida que ainda flui no seu corpo já muito vivido, e assumirá
esta opção com proficiência tanto maior quanto maior for seu envolvimento com
uma atividade criativa. Não se pode prever até quando o idoso sadio conservará
sua lucidez, compatibilizando-a com uma atividade criativa que lhe confira o
prazer de viver! Certamente nessa
evolução influem fatores socioeconômicos, pessoais, culturais e genéticos, além
da mundividência na qual o homem assume uma posição definida, seja numa visão
de mundo espiritualista, ou materialista. O idoso materialista evoluirá
coerentemente para uma postura apática, indiferente que no vocabulário cético
estoico se confunde com a ataraxia[2].
O idoso espiritualista encarna uma visão mística inerente à fé em um dinamismo absoluto
eternamente criativo que permanece na sua criatura. No homem este dinamismo alimenta
a esperança de vida eterna como individualidade espiritual pessoal. Promessa
que suaviza a aceitação da finitude biológica à qual está condenado. A entrega
incondicional do sujeito consciente a um absoluto transcendental ameniza o sentimento
de orfandade de uma existência desgarrada e vazia, razão do distanciamento de
si mesmo que ameaça o idoso. Mas o pleno resultado prático desta entrega, traduzido em paz e serenidade, só
se evidencia quando esta entrega está embasada numa crença autêntica que absorve
inteiramente o homem de qualquer idade predisposto a crer numa transcendência
absoluta sem questionar. Não se produz o mesmo efeito entre os mais racionais que
recorrem a argumentos especulativos metafísicos para justificar a adesão
intelectual a uma transcendência absoluta. A vivência de pertencimento a um
todo significativo faz toda diferença no desdobramento da conduta do idoso
lúcido. Alguns homens teimam em afirmar que podem conviver sem sobressalto com a ideia de ser a
morte biológica o seu fim definitivo; não sei até que ponto se pode confiar na
integridade existencial desta afirmação! Em verdade é realmente mais razoável
admitir o “dinamismo absoluto” que criou
o cosmo e a vida, manifestando-se por fim como pessoa[3]
no exercício das funções psíquicas superiores do homem. Como individualidade
espiritual este dinamismo absoluto continua presente nas suas criaturas e sobreviverá
à morte física do indivíduo. Nesta linha de raciocínio o místico aposta na
comunidade universal de todas as consciências integradas na unidade do absoluto
transcendental no qual se manifesta a perfeição por toda eternidade. Tudo isso
pode encontrar respaldo em especulações filosóficas, mas a razão por si só não
promove a vivência de participação neste
absoluto transcendental. Reafirmo, pois, o que disse no fechamento do texto
anterior: felizes os que experimentam a vivência autêntica dessa expectativa
mística amparados por uma fé ingênua, prescindindo
de cogitações filosóficas.
Obviamente, em qualquer dos casos, o sofrimento por doença é um
complicador que cada um terá de
enfrentar de acordo com as reservas morais remanescentes! Em todo caso, embora
seja o homem um ser de cultura, na ausência de uma experiência mística
aquietadora, o idoso pode ainda confiar na ajuda da natureza para resolver os
problemas criados por ela mesma; afinal, nascer e morrer são fenômenos que
obedecem aos determinismos da natureza, e todos acabamos cumprindo nosso destino
natural. A responsabilidade que pesa sobre o homem consiste em empenhar-se para crescer e envelhecer com dignidade, cultivando
a generosidade numa convivência social solidária.
Everaldo
Lopes
[1]
Capacidade de recuperação depois de uma agressão emocional.
[2]
Estado em que a alma, pelo equilíbrio e moderação da escolha de prazeres
sensíveis e espirituais atinge o ideal supremo de felicidade: a
imperturbabilidade;
[3]
Pessoa –Individualidade física e espiritual, portadora de qualidades quais
sejam a racionalidade, a consciência de si, a capacidade de agir conforme fins
determinados e o discernimento de valores éticos.